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quarta-feira, 6 de março de 2024

O IV Domingo da Quaresma: Domingo Laetare

Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância de suas consolações” (cf. Is 66,10-11).

O IV Domingo da Quaresma é conhecido também como Domingo Laetare, em referência à antífona de entrada: Laetáre, Ierúsalem...

Os “motivos” dessa alegria são a proximidade da Páscoa, na qual a Igreja acolherá novos filhos pelo sacramento do Batismo, e a chegada da primavera no hemisfério norte, como veremos ao longo dessa postagem.

A cruz, venerada pelos bizantinos no centro da Quaresma

1. A origem do Domingo Laetare

Entre os séculos IV e V os fiéis de Rito Bizantino começaram a solenizar a metade da Quaresma e da Páscoa com festas em honra de Cristo como Mediador entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5).

Na quarta-feira da IV semana da Páscoa, o 25º dia desse Tempo, com efeito, os bizantinos celebram a festa do “Meio-Pentecostes” (ou Meso-Pentecostes), recordando o texto de Jo 7,14: “Quando a festa já estava pela metade, Jesus subiu ao Templo para ensinar...”. O convite de Jesus a beber da “água viva” (Jo 7,37-38), por sua vez, precede a leitura do Evangelho da samaritana no domingo seguinte (Jo 4,5-42).

A metade da Quaresma, porém, oscila entre a terceira e a quarta semanas nas diversas tradições, uma vez que há diferentes formas de contar os “40 dias”.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Quaresma.

No Rito Bizantino a Quaresma começa na segunda-feira da 7ª semana antes da Páscoa, de modo que a “metade” desse Tempo, do qual se exclui a Semana Santa, é celebrada no III Domingo, conhecido como Domingo da Santa Cruz [1].
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Exaltação da Santa Cruz.

No Rito Romano, por sua vez, a Quaresma originalmente começava no 6º domingo antes da Páscoa, de modo que a “hebdomada mediana” (semana média) tradicionalmente era a quarta.

Como “eco” do citado Domingo da Santa Cruz, em Roma fixou-se como “igreja estacional” para o IV Domingo da Quaresma a Basílica da Santa Cruz em Jerusalém (Santa Croce in Gerusalemme), na qual conservam-se algumas das supostas relíquias da Paixão e sob a qual Santa Helena (†330) teria mandado espalhar terra de Jerusalém.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre as estações quaresmais romanas.

Basílica da Santa Cruz “em Jerusalém” (Roma)

Vários textos litúrgicos desse Domingo, portanto, faziam referência à “cidade santa”, como a célebre antífona de entrada: “Laetáre, Ierúsalem...” - “Alegra-te, Jerusalém...”, tomada da terceira parte do Livro de Isaías (Is 56–66), expressando a alegria do povo de Israel em retornar a casa após o exílio da Babilônia.

Outro texto recorrente nesse domingo era o Salmo 121 (122), composto para as peregrinações ao Templo: “Que alegria, quando ouvi que me disseram: ‘Vamos à casa do Senhor!’. E agora nossos pés já se detêm, Jerusalém, em tuas portas” (vv. 1-2).

Dado o simbolismo da “Jerusalém celeste”, a Igreja, que São Paulo indica como “nossa mãe” (Gl 4,26), na Idade Média, sobretudo na Inglaterra, o IV Domingo da Quaresma era um dia dedicado às mães.

Nesse domingo os fiéis costumavam também visitar a Catedral, “igreja-mãe” da Diocese (cf. Cerimonial dos Bispos, nn. 42ss), ou a igreja onde haviam sido batizados, como memória do Sacramento em vista da Páscoa.

2. O IV Domingo da Quaresma e o itinerário batismal

A Quaresma é um tempo essencialmente batismal (cf. Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 109). O Domingo Laetare, com efeito, acolhia o segundo escrutínio dos catecúmenos em preparação para os Sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal.

Assim, durante um período haviam dois formulários de Missa para esse dia: um para o segundo escrutínio, centrado no Evangelho da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41); e outro sem relação com o itinerário batismal, no qual se proclamava o Evangelho da multiplicação dos pães (Jo 6,1-15).

Não obstante, alguns liturgistas interpretaram a leitura desse Evangelho aqui como uma alusão à multidão dos catecúmenos que seriam “alimentados” com os Sacramentos na Vigília Pascal.

Cura do cego de nascença

De toda forma, a partir do pontificado de São Gregório Magno (†604), os escrutínios seriam transferidos para os dias de semana da Quaresma e ampliados de três a sete, número associado à “plenitude”.

Os dois escrutínios mais solenes eram celebrados na quarta-feira e no sábado da IV semana da Quaresma, a “hebdomada mediana”, com uma série de sugestivos ritos: a entrega dos quatro Evangelhos, do Símbolo da fé (Creio) e da oração do Senhor (Pai-nosso), a abertura dos ouvidos...

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II resgatou a celebração dos três escrutínios nos Domingos III, IV e V da Quaresma. Assim, enquanto alguns textos do IV Domingo fazem referência à alegria pela proximidade da Páscoa (como a célebre antífona de entrada e a nova coleta), outros destacam o simbolismo do Batismo como “iluminação” (como o Evangelho do Ano A, o Prefácio próprio e a antífona da Comunhão).

3. A bênção da “rosa de ouro”

Um costume tipicamente romano para o IV Domingo da Quaresma é a bênção da “rosa de ouro” presidida pelo Papa.

Essa bênção está relacionada ao início da primavera no hemisfério norte, com o desabrochar das flores, e à mencionada “adoração da cruz” pelos bizantinos no domingo anterior, quando esta é ornada com flores e “ungida” com líquido perfumado.

A origem desse costume é incerta; o Papa Leão IX (†1054) o menciona como algo já conhecido. Provavelmente a princípio se tratava de uma homenagem com flores naturais que o Papa oferecia diante das relíquias da Santa Cruz na igreja estacional desse domingo.

Logo, porém, a rosa natural seria substituída por uma “rosa de ouro” (rosa aurea) que, após a Missa, o Papa doava ao Prefeito de Roma ou a outro dignatário presente.

Rosa de ouro - Santuário Nacional de Aparecida (2017)

A partir do século XI surge o costume de enviar a rosa a um nobre, a uma cidade ou a uma igreja. O Papa Urbano II (†1099), por exemplo, presenteou Fulque IV (†1109), Conde de Anjou (França), com uma “rosa de ouro” em 1096, no contexto da Primeira Cruzada.

A princípio a “rosa” era enviada tanto a homens como a mulheres. Com o tempo seria entregue sobretudo a mulheres, preferindo-se para os homens outras condecorações, como espadas. A Princesa Isabel (†1921), com efeito, recebeu essa honra do Papa Leão XIII (†1903) em 1889, após assinar a “Lei Áurea” no ano anterior.

A partir do Concílio Vaticano II a “rosa de ouro” passou a ser entregue apenas a igrejas, sobretudo a importantes santuários marianos ao redor do mundo. O Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, por exemplo, recebeu três rosas, dos Papas São Paulo VI (†1978) em 1967, Bento XVI (†2022) em 2007 e Francisco em 2017.

O rito da bênção da “rosa de ouro” desenvolveu-se provavelmente entre os séculos XIV e XV, com pequenas variações. O formato da “rosa” também variou ao longo do tempo, desde uma única flor dourada até um grande vaso com várias flores.

A bênção tinha lugar na capela privada da residência pontifícia, junto à Basílica do Latrão, a Catedral de Roma: após uma oração na qual se destacava o seu simbolismo espiritual, o Papa “ungia” a rosa com um bálsamo (ou, em alguns períodos, com o próprio óleo do Crisma), a aspergia com água benta e incensava.

O centro da flor, onde era derramado o bálsamo, costumava ser fechado com uma pedra preciosa, em geral vermelha, cor associada ao sangue derramado por Cristo em sua Paixão, ideia reforçada pelos “espinhos” da rosa [2].

Papa Paulo VI infunde o bálsamo em uma “rosa de ouro”

Após a bênção, tinha lugar a breve procissão do Palácio Lateranense até a Basílica da Santa Cruz “em Jerusalém”. Nessa procissão o Papa levava a rosa na mão esquerda, enquanto com a direita abençoava os fiéis. Quando, porém, a rosa tinha maiores dimensões, era conduzida por um clérigo.

Na Basílica da Santa Cruz se celebrava a Missa, presidida pelo primeiro dentre os Cardeais Presbíteros (Protopresbítero) ou pelo próprio Papa. Este costumava proferir a homilia com a “rosa de ouro” na mão, explicando aos fiéis o seu significado espiritual e exortando-os a exalar no mundo “o bom odor de Cristo” (cf. 2Cor 2,14-15).

Após a Missa, a rosa era entregue ao destinatário, se estivesse presente em Roma, ou enviada através de um “Portador da Rosa” ou “Guardião da Rosa”, que podia ser um Cardeal, um Núncio Apostólico, outro membro da Cúria ou um nobre romano.

Atualmente a rosa é entregue pessoalmente pelo Papa ao visitar algum santuário ou enviada por um Legado. Em 2017, por exemplo, o Cardeal Giovanni Battista Re, então Vice-Decano do Colégio Cardinalício, foi o encarregado de entregar a “rosa de ouro” ao Santuário Nacional de Aparecida.

No dia 08 de dezembro de 2023, por sua vez, o Papa Francisco entregou pessoalmente uma “rosa de ouro” à Basílica de Santa Maria Maior em Roma, depositando-a diante da célebre imagem da Salus populi romani.


4. O uso da cor rosa no Domingo Laetare

O sugestivo rito da bênção da “rosa de ouro” inspirou a designação do IV Domingo da Quaresma como “Dominica de Rosa” (Domingo da Rosa), enriquecendo-o a partir do final da Idade Média com uma série de particularidades litúrgicas:
- a permissão de ornar o altar com flores, omitidas durante o resto da Quaresma;
- o uso mais amplo dos instrumentos musicais, que durante esse Tempo devem apenas sustentar o canto;
- a possibilidade de substituir os paramentos roxos típicos da Quaresma por paramentos de cor rosa (cf. Cerimonial dos Bispos, n. 252; Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, nn. 17.25).

O uso da cor rosa, que sempre foi facultativo, é testemunhado pela primeira vez no século XIII em Nápoles (Itália). Contudo, só seria acolhido em Roma no final do século XVI, após a promulgação do Missale Romanum pelo Papa São Pio V (†1572).

Posteriormente, por analogia, a possibilidade de usar paramentos na cor rosa seria estendida ao III Domingo do Advento, chamado “Domingo Gaudete”, que, sobretudo quando o Natal cai em um domingo, marca a metade desse Tempo litúrgico.

Ó Deus, que por vosso Filho realizais de modo admirável a reconciliação do gênero humano, concedei ao povo cristão correr ao encontro das festas que se aproximam, cheio de fervor e exultando de fé. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.
(Coleta do IV Domingo da Quaresma)

Papa Francisco preside a Missa do Domingo Laetare (2019)

Notas:

[1] Para saber mais sobre o Domingo da Santa Cruz e a festa do “meio-Pentecostes”, confira: DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 90-91.106-107

[2] Sobre o simbolismo bíblico e teológico da rosa e das flores em geral, confira:
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 163.312-313.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 104-105.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 76.

ALSTON, George Cyprian. Laetare Sunday. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 8, 1910.  Disponível em: New Advent.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 764-769.

ROCK, P. M. J. Golden Rose. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 6, 1909. Disponível em: New Advent.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 116-119.

Imagens: Wikimedia Commons.

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