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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Homilia do Papa Bento XVI: Missa da Noite de Natal (2011)

Confira a seguir a Homilia proferida pelo Papa Bento XVI (†2022) na Solenidade do Natal do Senhor de 2011. Em sua reflexão o Pontífice recorda a iniciativa do presépio de Greccio” realizada por São Francisco de Assis na Noite de Natal de 1223, que completa 800 anos neste 2023.

Solenidade do Natal do Senhor - Missa da Noite
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica Vaticana
Sábado, 24 de dezembro de 2011

Amados irmãos e irmãs!
A leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente com a palavra «apparuit», que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit - manifestou-se». Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Hb 1,1; leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais: Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há de intuir a partir das palavras. Ele «manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: «Manifestou-se a bondade de Deus... e o seu amor pelos homens» (Tt 3,4). Para os homens do tempo pré-cristão - que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário -, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. «Manifestou-se a bondade de Deus... e o seu amor pelos homens»: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.

O Papa Bento XVI junto à imagem do Menino Jesus

Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a Liturgia cita um texto tirado do Livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: «Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da Paz. Grande será o seu reino e a paz não há de ter fim...» (Is 9,5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tinha em mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível. Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano, se diz: o seu nome será “Deus forte”, “Pai para sempre”. Estamos perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico, apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus forte; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto em uma «paz sem fim». Antes, o profeta falara de uma espécie de «grande luz» e, a propósito da paz emanada d’Ele, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue, seriam lançados ao fogo (cf. Is 9,1.3-4).

Deus manifestou-Se... como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, Vos manifestastes como menino e Vos mostrastes a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz.  Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo fato de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.

Natal é epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz em um menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa das festas» - mais do que todas as outras solenidades - e celebrou-a com «solicitude inefável» (2 Celano, 199; Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava palavras de ternura como se faz com os meninos - refere Tomás de Celano (ibid.). Para a Igreja antiga, a festa das festas era a Páscoa: na Ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudara radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objetiva das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no Mistério Pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele descobriu, em uma profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este fato de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado em uma manjedoura. A Ressurreição pressupõe a Encarnação. O Filho de Deus visto como menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando a fé em amor. «Manifestou-se a bondade de Deus... e o seu amor pelos homens»: esta frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acariciá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um segundo centro em uma festa que é, antes de tudo, uma festa do coração.

Tudo isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica alegria e a verdadeira luz.

Francisco fazia celebrar a santíssima Eucaristia sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1 Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para que, «onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado», Jesus Cristo, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite Santa de Greccio, Francisco - como diácono que era - cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos cânticos natalícios dos Frades (cf. 1 Celano, 85-86: Fontes, 469-470). Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.

Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma entrada com um metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar do Nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais profunda, pela qual queremos nos deixar tocar nesta Noite Santa: se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão «iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus. Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade de um menino recém-nascido. Celebremos assim a Liturgia desta Noite Santa, renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de migrantes, pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o Nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amém.

Bento XVI na Missa da Noite de Natal
24 de dezembro de 2011

Fonte: Santa Sé.

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