Páginas

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A Oitava do Natal

Quando se completaram os oito dias... deram-lhe o nome de Jesus” (Lc 2,21).

Assim como a Páscoa da Ressurreição, a Solenidade do Natal do Senhor é enriquecida no Rito Romano com uma Oitava, isto é, com uma celebração prolongada por oito dias, de 25 de dezembro a 01 de janeiro.

Nascimento de Jesus (Charles Le Brun)

1. Simbolismo do número “oito” e origem da Oitava do Natal

Na tradição cristã, o número oito é associado ao domingo, o “dia do Senhor”, que é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo dia da semana, no qual tem lugar a nova criação iniciada na Ressurreição do Senhor (cf. Mt 28,1 e paralelos) [1].

Assim, logo as grandes festas passaram a ser enriquecidas com uma “oitava”, tanto como uma celebração prolongada por oito dias quanto como um “eco” da festa apenas no oitavo dia (octava dies).

A primeira a ser celebrada foi a Oitava da Páscoa, já a partir dos séculos III-IV, e que corresponde ao primeiro modelo: uma celebração prolongada por oito dias, nos quais tinham lugar as “catequeses mistagógicas” aos neófitos (aqueles que haviam recebido os sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal).

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a Oitava da Páscoa.

Também no século IV se celebrava no Oriente a Oitava da Epifania, de 06 a 13 de janeiro. Vale lembrar que nessa época a Epifania celebrava tanto o nascimento do Senhor quanto sua manifestação aos povos.

A partir do século V, porém, as Igrejas do Oriente acolheram a celebração ocidental do nascimento do Senhor no dia 25 de dezembro e as Igrejas do Ocidente acolheram a festa da Epifania a 06 de janeiro.

Para saber mais, confira nossas postagens sobre a história da Solenidade do Natal do Senhor e sobre a história da Solenidade da Epifania.

A peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou a Terra Santa em meados do século IV, testemunha a celebração da Oitava da Epifania tanto em Jerusalém como em Belém: “Durante oito dias, celebra-se com todo este júbilo e esplendor... Em Belém, durante toda esta oitava, todos os dias há este esplendor e esta festa...” [2].

Em Roma, após a proclamação do dogma da Maternidade Divina de Maria no Concílio de Éfeso (431), o oitavo dia após o Natal passou a ser celebrado como festa em honra da Santa Mãe de Deus.

Vemos aqui a influência das “festas associadas” ou “festas decorrentes” da tradição oriental: após a celebração de um evento da história da salvação recordam-se os personagens que participaram dele [3]. No Rito Bizantino, por exemplo, se celebra a “Sinaxe da Mãe de Deus” em 26 de dezembro, no dia seguinte ao Natal.

Note-se que não temos aqui uma oitava como celebração prolongada por oito dias, como na Páscoa, mas apenas dois dias de festa: o primeiro (25 de dezembro) e o oitavo (01 de janeiro).

No final do século VII, porém, quando o Papa Sérgio I (†701), de origem síria, popularizou diversas celebrações orientais em Roma, incluindo várias festas marianas [4], a celebração da Mãe de Deus a 01 de janeiro perdeu importância, passando a ser simplesmente a “Oitava do Natal” (In Octava Nativitatis Domini).

Vitral em honra da Mãe de Deus (Mater Dei)

Posteriormente, entre os séculos XIII e XIV, Roma acolheria a Festa da Circuncisão do Senhor no dia 01 de janeiro. Esta tem sua origem na Espanha, em meados do século VI, quando começa a organizar-se o Rito Hispano-Mozárabe a partir da cidade de Toledo.

Uma vez que nesse Rito a Festa da Mãe de Deus é celebrada no dia 18 de dezembro, oito dias antes do Natal, no dia 01 de janeiro, em consonância com o Evangelho (Lc 2,21), foi instituída a Festa da Circuncisão do Senhor (In Circuncisione Domini).


2. Os santos da Oitava do Natal, “companheiros de Cristo”

Em Jerusalém e Constantinopla, entre os séculos IV-V (antes da acolhida da celebração do Natal no dia 25 de dezembro, quando ainda se celebrava o nascimento do Senhor na Epifania, a 06 de janeiro), os últimos dias do mês de dezembro eram dedicados à celebração de alguns santos:
25 de dezembro: Rei Davi e São Tiago, o “irmão do Senhor”
26 de dezembro: Santo Estêvão
27 de dezembro: São Pedro e São Paulo
28 de dezembro: São Tiago Maior e São João Evangelista

Rupert Berger em seu Dicionário de Liturgia Pastoral (pp. 165-166) propõe uma interessante tese para a origem dessas festas: no mês de dezembro os judeus celebram a festa de Hannukah, em honra da Dedicação do Templo de Jerusalém em 164 a. C., no contexto da revolta dos Macabeus [5].

Após a destruição do Templo no ano 70, os judeus passaram a celebrar a festa em Hebron, onde, segundo a tradição, encontram-se os túmulos dos patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó e suas esposas, exceto Raquel, que estaria sepultada em Belém).

A celebração dos Apóstolos e de outros santos importantes nos últimos dias de dezembro pelos cristãos, portanto, seria um paralelo a essa memória dos Patriarcas celebrada pelos judeus.

Essa tradição foi paulatinamente acolhida pelas Igrejas Orientais, mesclando-se com outros costumes. Por exemplo, a festa de São Pedro e São Paulo logo foi transferida para a data romana de 29 de junho. Também São Tiago Maior passou a ser celebrado em outras datas (25 de julho no Rito Romano, 30 de abril no Rito Bizantino).

São João Evangelista, por sua vez, é celebrado no Rito Bizantino em duas datas: 08 de maio e 26 de setembro. No Rito Romano, porém, conservou-se sua festa em dezembro, transferida posteriormente para o dia 27, como veremos adiante.

O Rito Bizantino conservou nos últimos dias de dezembro a festa de Santo Estêvão, transferida para o dia 27 de dezembro (dando lugar à Sinaxe da Mãe de Deus no dia 26), e dos Santos Davi e Tiago, o “irmão do Senhor”, que após a acolhida da festa do Natal no dia 25 de dezembro passaram a ser celebrados no domingo após o Natal, junto com São José.

Vitral representando a Natividade com os santos da Oitava:
Santo Estêvão, Santos Inocentes e São João

Entre os séculos VI e VII essas celebrações dos santos passaram às Igrejas do Ocidente (norte da África, Roma, França), mesclando-se com tradições locais, incluindo a Festa dos Santos Inocentes, isto é, as crianças martirizadas por Herodes após o nascimento de Jesus (cf. Mt 2,16-18), uma “festa associada” ou “festa decorrente” ligada ao Natal.

Posteriormente essa Festa dos Santos Inocentes também seria acolhida no Rito Bizantino, sendo celebrada no dia 29 de dezembro, uma vez que no dia 28 se celebram os Mártires de Nicomédia, mortos durante a perseguição do Imperador Diocleciano no início do século IV.

No Rito Romano, a ordem dessas três celebrações foi fixada da seguinte forma:
26 de dezembro: Santo Estêvão, Diácono e Protomártir
27 de dezembro: São João, Apóstolo e Evangelista
28 de dezembro: Santos Inocentes, Mártires

Como podemos ver, diferentemente da comemoração dos Santos Inocentes, as celebrações de Santo Estêvão e São João não são “festas associadas” ao Natal, surgindo a partir de uma tradição distinta.

Não obstante, sobretudo no final da Idade Média, os teólogos buscaram associar essas três festas hagiológicas ao Natal, identificando esses santos como “comites Christi” (companheiros de Cristo) ou “comites Sponsi” (companheiros do Esposo).

O Bispo francês Guilherme Durando (†1296), por exemplo, propôs em sua obra Rationale divinorum officiorum uma associação desses santos a três formas de martírio: voluntário e real (Estêvão); voluntário, mas não real (João); real, mas não voluntário (Santos Inocentes).

Essa espécie de “tríduo” após o Natal traçava um paralelo com uma espécie de “tríduo” que se celebrava a partir do século IX após a Páscoa, nos primeiros três da Oitava. Dada sua riqueza litúrgica, porém, essas três festas merecem ser tratadas mais detalhadamente em postagens futuras.

As festas de 26 a 28 de dezembro, com efeito, logo foram enriquecidas com vários textos próprios: orações, hinos, sequências... Além disso, possuíam precedência inclusive sobre o Domingo dentro da Oitava do Natal.

Ou seja, quando o dia 26, 27 ou 28 caía no domingo, celebrava-se a festa do respectivo santo. Os textos da Missa do domingo eram então recitados no dia 30 de dezembro.

Nos outros dias da Oitava, por sua vez, celebravam-se as memórias de São Thomas Becket, Bispo e Mártir (29 de dezembro), e São Silvestre I, Papa (31 de dezembro), com alguns textos próprios e outros retomados do Natal.

A Virgem com o Menino circundados pelos Santos Inocentes
(Peter Paul Rubens)

3. A Oitava do Natal hoje

Durante o final da Idade Média houve uma “proliferação” de oitavas nas celebrações do Senhor, da Virgem Maria e dos santos. Essas seriam em sua maioria suprimidas pelo Papa Pio XII (†1958), decisão confirmada pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965).

O novo calendário litúrgico, com efeito, conservou apenas as Oitavas da Páscoa e do Natal. A Oitava da Páscoa é mais solene, tendo precedência sobre todas as Solenidades e Festas. Nos dias de semana da Oitava do Natal, em contrapartida, é possível celebrar as memórias dos santos ou mesmo Missas para diversas necessidades e votivas, se houver verdadeira razão pastoral (cf. Instrução Geral do Missal Romano, 3ª edição, n. 306).

No dia 01 de janeiro, conclusão da Oitava, foi suprimida a Festa da Circuncisão do Senhor, resgatando-se a celebração mais antiga da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. Não obstante, a Circuncisão e a imposição do Nome de Jesus são recordadas em alguns textos desse dia, como no Evangelho (Lc 2,16-21).

As celebrações de Santo Estêvão, São João e dos Santos Inocentes foram conservadas nos dias 26 a 28 de dezembro, com o grau de Festa. Contudo, não possuem mais a precedência sobre o domingo.

No Domingo dentro da Oitava do Natal, pois, se celebra atualmente a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José. Esta celebração de caráter devocional foi instituída no início do século XX, sendo celebrada até então no domingo após a Epifania (o qual acolheu a Festa do Batismo do Senhor).

Quando o dia 25 de dezembro cai em um domingo, por sua vez, a Festa da Sagrada Família é celebrada no dia 30 de dezembro.

Com a reforma litúrgica, os dias 29, 30 e 31 foram enriquecidos com textos próprios, permanecendo a possibilidade de celebrar as Memórias facultativas de São Thomas Becket e de São Silvestre nos dias 29 e 31. A partir do pôr-do-sol do dia 31 de dezembro, porém, celebra-se já a Solenidade da Santa Mãe de Deus (I Vésperas).

Quanto às leituras, além das Solenidades e Festas com textos próprios em composição harmônica, no dia 29 de dezembro começa a leitura semicontínua da 1ª Carta de João, enquanto o Evangelho traz alguns relatos da infância do Senhor (cf. Elenco das Leituras da Missa, nn. 95-96).

Além disso, retomam-se vários textos do Tempo do Natal, tanto na Missa como na Liturgia das Horas (Prefácios, hinos...).

“Ó Deus invisível e todo-poderoso, que dissipastes as trevas do mundo com a vinda da vossa luz, volvei para nós o vosso olhar, a fim de que proclamemos dignamente a maravilhosa natividade de vosso Filho Unigênito. Que convosco vive e reina, na unidade do Espírito Santo. Amém”
(Coleta de 29 de dezembro, 5º dia na Oitava do Natal - Missal Romano, 2ª edição, p. 156).

Tríptico com cenas da Infância do Senhor
(Adriaen Isenbrandt)

Notas:
[1] Sobre o simbolismo bíblico e teológico do número “oito”, confira:
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, p. 345.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 160-162.

Em relação ao domingo como “oitavo dia” confira o n. 106 da Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II e a Carta Apostólica Dies Domini do Papa São João Paulo II, particularmente os nn. 23-26.

[2] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta), nn. 11-12. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 450.

[3] cf. BERGER, Rupert. Festa associada. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 165-166.

[4] Dentre as festas popularizadas pelo Papa Sérgio I estão a Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), a Anunciação (25 de março), a Dormição-Assunção de Maria (15 de agosto), a Natividade de Maria (08 de setembro) e a Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).

[5] cf. DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 242-244.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 100-105.

BERGER, Rupert. Oitava. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 272-273.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 703-715.

Imagens: Wikimedia Commons.

Nenhum comentário:

Postar um comentário