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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Leitura litúrgica da Primeira Carta de Pedro (1)

“Aproximai-vos do Senhor, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e honrosa aos olhos de Deus” (1Pd 2,4).

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já analisamos quatro das sete “Cartas Católicas” do Novo Testamento (NT), assim chamadas porque dirigidas a toda a Igreja: as três Cartas de João e a Carta de Tiago.

Nesta postagem daremos continuidade a esta proposta com um percurso pela leitura da Primeira Carta de Pedro (1Pd) na Liturgia do Rito Romano.

São Pedro (Matthias Stom)

1. Breve introdução à Primeira Carta de Pedro

No primeiro versículo da Carta o autor se apresenta como: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo” (1Pd 1,1). A maioria dos estudiosos defende que esta autoria é simbólica. Pedro morreu entre 64 e 68; contudo, diversos elementos presentes na Carta situam sua redação nos anos 80. Portanto, seu autor provavelmente era um discípulo do Apóstolo, que buscava para manter vivos seus ensinamentos.

Embora associada a Roma (1Pd 5,13), chamada de “Babilônia”, a obra está dirigida “aos estrangeiros da Diáspora” (1Pd 1,1), provavelmente pequenas comunidades formadas tanto por cristãos de origem pagã quanto de origem judaica, “espalhados” pela Ásia Menor após a destruição de Jerusalém no ano 70 e que se consideravam “dispersos” em um mundo onde os cristãos eram minoria.

A Carta pode ser dividida em três partes dentro de uma “moldura epistolar”:
Introdução: 1Pd 1,1-12: Saudação (vv. 1-2) e “ação de graças” (vv. 3-12);
1ª parte: 1Pd 1,13–2,10: Afirmação da dignidade do cristão;
2ª parte: 1Pd 2,11–4,11: Exortação a um bom testemunho diante dos pagãos;
3ª parte: 1Pd 4,12–5,11: Exortações para o momento presente;
Conclusão: 1Pd 5,12-14: Conclusão e saudações finais.

Já na primeira parte a Carta toma a forma de uma “homilia batismal” dirigida aos neófitos, isto é, aos recém-batizados, exortando-os a assumir a vida nova que receberam pelo sacramento.

Na segunda parte temos um dos “códigos domésticos” do NT (1Pd 2,13–3,12), no qual o autor exorta vários grupos sobre o comportamento do cristão, chamado a dar um bom testemunho diante dos pagãos: os cidadãos diante dos governantes, os servos com seus senhores, os esposos (sobretudo em casamentos mistos, entre cristãos e pagãos), enfim, todos os cristãos, que devem tratar-se como irmãos.

Ainda nesta parte se reflete sobre a atitude cristã diante da “perseguição”. A exortação ao respeito pelas autoridades parece indicar que não se trata de uma perseguição “até a efusão do sangue”, mas sim uma “rejeição” dos pagãos aos valores cristãos.

O autor recorda o exemplo de Cristo: Ele sujeitou-se ao rebaixamento da Morte, sendo glorificado em sua Ressurreição (1Pd 3,18-22). Seguindo seu exemplo, os cristãos não devem adotar o comportamento dos pagãos (4,1-6), mas, antes, viver em atitude de vigilância, à espera da vinda definitiva de Cristo (4,7-11).

Por fim, a terceira parte da Carta traz novas exortações sobre a provação (1Pd 4,12-19) e sobre a vida na comunidade, sendo referidos os presbíteros (5,1-4) e os “jovens” (5,5-11), provavelmente “iniciados” na fé.

Como podemos ver, a Primeira Carta de Pedro é um escrito eminentemente parenético, isto é, exortativo. Não obstante, sua teologia também é bem desenvolvida, refletindo sobre a Trindade, o Mistério Pascal de Cristo - incluindo sua descida ao Hades (1Pd 3,18-20; 4,6) -, a Igreja, os sacramentos (sobretudo o Batismo) e a escatologia.

A Santíssima Trindade, evocada na saudação da Carta

Destaca-se ainda o amplo uso de referências do Antigo Testamento, além dos vários pontos de contato com outros escritos do NT (por exemplo, com as Cartas Paulinas).

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica da Primeira Carta de Pedro: Composição harmônica

Como temos feito com todos os livros da Sagrada Escritura estudados nesta série, analisaremos a leitura da Primeira Carta de Pedro nas celebrações litúrgicas seguindo os dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Iniciaremos nosso percurso pelas leituras em composição harmônica, isto é, em sintonia com o tempo ou a festa litúrgica, considerando também alguns textos da Carta proferidos como antífonas na Missa.

a) Celebração Eucarística

Antes ainda das leituras, com efeito, encontramos três textos da Primeira Carta de Pedro no próprio Ordinário da Missa.

Primeiramente a saudação trinitária da Carta é uma das opções de saudação inicial: “Irmãos eleitos segundo a presciência de Deus Pai, pela santificação do Espírito para obedecer a Jesus Cristo e participar da bênção da aspersão do seu sangue, graça e paz” (1Pd 1,1-2) [2].

No domingo, nossa Páscoa semanal, o Ato Penitencial pode ser substituído pela bênção e aspersão da água em memória do Batismo (cf. Instrução Geral do Missal Romano, 3ª edição, n. 51), durante a qual podem ser entoadas duas antífonas do nosso escrito:
- Fora do Tempo Pascal: “Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo: em sua grande misericórdia, Ele nos fez renascer...” (cf. 1Pd 1,3-5);
- No Tempo Pascal: “Vós que sois uma raça escolhida, sacerdócio régio e nação santa, proclamai as maravilhas de Deus...” (1Pd 2,9) [3].

Passando ao Próprio do Tempo, encontramos apenas uma leitura de 1Pd em composição harmônica, especificamente em um dos domingos da Quaresma, onde “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento” (ELM, n. 97) [4].

Assim, no I Domingo da Quaresma do ano B lemos 1Pd 3,18-22 [5], em sintonia com a 1ª leitura (Gn 9,8-15), que recorda a aliança de Deus com Noé após o dilúvio, mistério associado ao Batismo pelo autor da Carta: “À arca corresponde o Batismo, que é hoje a vossa salvação” (v. 21).

A arca de Noé, associada ao Batismo pelo autor da Carta

Ainda durante a Quaresma convém destacar duas antífonas de Comunhão, ambas recordando o sacrifício de Cristo:

- Sábado da IV semana da Quaresma: “Pelo sangue precioso de Cristo, cordeiro sem mancha e sem defeito, fomos resgatados” (1Pd 1,19) [6]. A imagem do cordeiro é evocada na leitura do dia (Jr 11,18-20), de modo que a antífona serve de “ponte” entre as “duas mesas” (da Palavra e da Eucaristia).

- Sexta-feira da V semana da Quaresma: “Jesus carregou nossos pecados, em seu corpo, sobre a cruz, a fim de que, mortos para nossas faltas, vivamos para a justiça; fomos curados pelas suas chagas” (1Pd 2,24) [7].

No Tempo da Páscoa, por sua vez, são três as antífonas de 1Pd para a Missa:

- Quinta-feira da Oitava Pascal (Comunhão): “Povo resgatado por Deus, proclamai suas maravilhas: Ele vos chamou das trevas à sua luz admirável, aleluia!” (1Pd 2,9) [8]. A imagem das trevas e da luz evoca a passagem da morte para a vida, da descrença para a fé, como evidenciado no Evangelho (Lc 24,35-48).

- II Domingo da Páscoa (Entrada, 1ª opção): “Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual para crescerdes na salvação, aleluia!” (1Pd 2,2) [9]. Este texto faz parte das antífonas dirigidas ao neófitos ao longo de toda a Oitava, renascidos nas águas do Batismo na Vigília Pascal.

- Sábados da Páscoa - Semanas II, IV e VI (Entrada): “Povo resgatado por Deus, proclamai suas maravilhas...” (1Pd 2,9) [10], como na quinta-feira da Oitava Pascal.

Seguindo nosso percurso com o Tempo Comum, identificamos três textos da Carta propostos como versículo de aclamação ao Evangelho:

- XIII Domingo do Tempo Comum (Ano A): “Vós sois uma raça escolhida, a propriedade de Deus; proclamai suas virtudes, pois de trevas luz vos fez” (1Pd 2,9) [11]. Esta é outra tradução do versículo entoado na Páscoa, que aqui se relaciona sobretudo com a 2ª leitura, sobre o Batismo como participação na Morte-Ressurreição de Cristo (Rm 6,3-4.8-11).

Pregação de São Pedro (Benjamin West)

XXVII Domingo do Tempo Comum (Ano C): “A Palavra do Senhor permanece para sempre; e esta é a Palavra que vos foi anunciada” (1Pd 1,25) [12]. Relacionada à exortação da 1ª leitura e do Evangelho à fé (Hab 1,2-3; 2,2-4; Lc 17,5-10), esta antífona é retomada na sexta-feira da XVII semana [13], neste caso contrastando com a incredulidade dos conterrâneos de Jesus no Evangelho (Mt 13,54-58).

- Sábado da XIV semana e quarta-feira da XXXI semana: “Felizes sereis vós, se fordes ultrajados, por causa de Jesus, pois repousa sobre vós o Espírito de Deus” (1Pd 4,14) [14]. Em ambos os casos essa “bem-aventurança” precede exortações do Senhor à coragem nas provações (Mt 10,24-33) e a “tomar a própria cruz” (Lc 14,25-33).

Do Próprio do Tempo passamos ao Próprio dos Santos, com textos para as celebrações dos principais santos. Aqui há três leituras da nossa Carta:

- Festa da Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro): 1Pd 5,1-4 [15]. O autor da Carta, que se identifica como o Apóstolo Pedro, exorta aqui os presbíteros a apascentar o “rebanho de Deus” que lhes confiado;

Vigília da Solenidade da Natividade de São João Batista (23 de junho): 1Pd 1,8-12 [17]. A 2ª leitura dessa Missa reflete sobre a atuação dos profetas, dos quais João Batista é o último e mais insigne, que “profetizaram a respeito da graça” (v. 10).

Vale destacar ainda as leituras próprias para a Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro (29 de julho) no Patriarcado de Jerusalém, dentre as quais consta 1Pd 4,7b-11 [18], com uma exortação à hospitalidade.

Por fim, além das leituras há no Próprio dos Santos também uma antífona de Comunhão de 1Pd, proposta para a Memória de Nossa Senhora das Dores (15 de setembro): “Vós, que participais dos sofrimentos do Cristo, alegrai-vos, para que, ao manifestar-se a sua glória, vossa alegria não tenha limites” (1Pd 4,13) [19].

Encerramos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica da Primeira Carta de Pedro. Na 2ª parte prosseguiremos a análise sob o critério da composição harmônica contemplando o Comum dos Santos, as Missas para diversas necessidades e votivas e os demais sacramentos.

“Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21)
(Santuário do Primado de Pedro, Tabgha)

Breve bibliografia sobre a Primeira Carta de Pedro:

BROWN, Raymond. Primeira carta de Pedro. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 919-943.

DALTON, William J. Primeira Epístola de Pedro. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 655-665.

GABARRÓN, José Cervantes. Primeira Carta de São Pedro. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 647-655.

SCHLOSSER, Jacques. A primeira epístola de Pedro. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 533-548.

TUÑI, Josep-Oriol. A primeira carta de Pedro. in: ALEGRE, Xavier; TUÑI, Josep-Oriol. Escritos joaninos e cartas católicas. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2007, pp. 295-320. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 8.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 390.
[3] ibid., pp. 1003-1004. As antífonas propostas no Missal para a aspersão também podem ser substituídas por outro canto adequado.
[4] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[5] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[6] MISSAL ROMANO, p. 211.
[7] ibid., p. 218.
[8] ibid., p. 300.
[9] ibid., p. 303. A outra opção de antífona de entrada aqui é 4Esd 2,36-37.
[10] ibid., p. 328.
[11] LECIONÁRIO I, op. cit.
[12] ibid.
[13] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[14] ibid.
[15] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997.
[16] ibid.
[17] ibid.
[18] Fonte: Patriarcado Latino de Jerusalém - Ofício Litúrgico. Nas demais igrejas, por sua vez, lê-se nesse dia 1Jo 4,7-16, com uma exortação ao amor fraterno.
[19] MISSAL ROMANO, p. 658.

Imagens: Wikimedia Commons.

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