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sexta-feira, 8 de julho de 2022

Cardeal Jorge Mario Bergoglio: Ars celebrandi (2005)

Há cerca de uma semana, no dia 29 de junho de 2022, foi promulgada a Carta Apostólica Desiderio desideravi do Papa Francisco sobre a formação litúrgica do povo de Deus.

Além de recolher os frutos da Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino de 2019, o documento tem sua fonte primeira em uma reflexão do então Cardeal Jorge Mario Bergoglio na Plenária da Congregação de 2005, dedicada à ars celebrandi, isto é, à “arte de celebrar”.

A reflexão do então Arcebispo de Buenos Aires (Argentina), proferida no dia 01 de março de 2005, foi retomada pelo Papa Francisco em seu encontro com o clero da diocese de Roma no dia 19 de fevereiro de 2015.

O Cardeal Jorge Mario Bergoglio celebra a Santa Missa no Santuário Nacional de Aparecida

Segue o texto da reflexão, publicado na íntegra em italiano pelo jornal L’Osservatore Romano de 20 de maio de 2015. A tradução é de Benno Dischinger, publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos, com algumas correções realizadas pelo autor deste blog.

Ars celebrandi

Introdução

Na Igreja hodierna muitos Bispos, sacerdotes e leigos sentem a exigência que seja dada maior atenção ao aspecto por assim dizer contemplativo da celebração litúrgica, isto é, àquela dimensão de interioridade que abriria a mente e o coração ao mistério celebrado, que é Cristo nossa Páscoa. Esta sensibilidade se exprime de diversas maneiras segundo as circunstâncias, os lugares, as gerações e os gostos. Há quem sustenta que seria preciso insistir no retorno de uma celebração realizada segundo o modelo ideal dos séculos passados; e há quem fala, ao invés, de inculturação da Liturgia nos diferentes contextos sociais. Não poucos apontam para a qualidade artística do interior das nossas igrejas, para sua harmonia arquitetônica, para os materiais preciosos, para o engenho de escultores e pintores. Aponta-se acima de tudo para uma música que conduza os participantes “ao alto”, para além dos sentimentos passageiros dos indivíduos, além das costumeiras dificuldades e preocupações da vida cotidiana. Alguns, depois, imaginam que uma música “popular” poderia estar em condições de atrair a atenção dos jovens, bem como de favorecer neles o desejo religioso. Depois, a percepção de uma meta não atingida impele muitos outros que se impacientam com o enquadramento dos livros litúrgicos ou com a própria tradição da Igreja. Em consequência, procuram nas inovações livres uma melhoria da celebração, um maior envolvimento do povo.

Diante destas e de tantas outras propostas, se pode certamente argumentar a partir de um sentido mais vivo do “ex opere operato”, ou seja, a partir da eficácia da celebração dos sacramentos, que brota do fato de que foram instituídos por parte do Salvador e emanam como que de sua gloriosa e salvífica Paixão. De qualquer modo, isto é simbolizado no fluxo de água e sangue do lado de Jesus Cristo por nós crucificado. É realmente importante ter em conta esta visão da inesgotável eficácia “universal” dos sacramentos quando se trata de celebrações em meio à pobreza do povo, em circunstâncias humildes, longe do fausto, na perseguição e na clandestinidade, onde se celebra com o pusillus grex, o pequeno rebanho.
Em todo caso, nas circunstâncias normais, nas nossas paróquias da cidade e do campo, durante o domingo e os dias de festa, certamente não basta realçar a eficácia do ex opere operato para assegurar um verdadeiro envolvimento das pessoas. Então, retorna-se às propostas anteriores: o embelezamento do espaço da celebração e dos ornamentos, com vasos, paramentos, música em condições de atrair a atenção do povo e de sugerir certa “riqueza” da experiência religiosa. Em todo caso, teríamos muito a ganhar com uma cuidadosa meditação e aplicação das sadias normas que, a mais de uma geração, se encontram nos próprios livros litúrgicos e nos documentos da Santa Sé sobre estes e outros argumentos do gênero. Mas assim corremos o risco de tocar apenas superficialmente a realidade humana e de fazer florescer ainda menos a realidade da fé.

Recuperar o “estupor” (o fascínio da beleza)

Onde o discurso da interioridade e a impressão que, não obstante todos os esforços - ainda que generosos e bem intencionados - destes anos a favor de uma celebração litúrgica mais bela, compreensível e envolvente, frequentemente tem faltado na práxis algo  muito importante.
O próprio Santo Padre [João Paulo II] o pressentiu, referindo-se recentemente, em várias ocasiões, à necessidade de recuperar o sentido de “estupor” do cristão diante do mistério da salvação em Cristo e, em particular, diante da Eucaristia (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 6). Mas o diz também o povo simples, as mães de família e os jovens.
De fato, também a interioridade corre o risco de permanecer no nível de uma subjetividade vazia se não se eleva firmemente o discurso ao mistério cristão.
Recuperar o “estupor” diante do mistério. Como atingir este objetivo? Um conceito do qual se fala em vários ambientes há anos é a ars celebrandi. A noção exata ainda precisa ser definida. Mas, em geral, a ideia é a de um documento, de diretrizes, capazes de enfatizar a necessidade de valorizar certos elementos da celebração litúrgica, de modo a aumentar sua qualidade.
Na última década deu-se muita ênfase nos documentos pontifícios à responsabilidade do Bispo, também em matéria litúrgica. E com razão. Porém, na prática, do ponto de vista do povo, o sacerdote permanece como ponto de referência essencial. Por isso, em relação à ars celebrandi, penso que se deva tratar sobretudo o que diz respeito ao sacerdote. Isso não significa que o documento deva ser um texto somente para os sacerdotes. De fato, caso se consiga definir a atitude do sacerdote, tal reflexão ajudará também o povo: o ajudará a ver nele e a aprofundar sua própria função; mas, sobretudo, favorecerá a oração.
No contexto da campanha que a Igreja pôs em ação para uma atenção renovada ao mistério eucarístico e, em todo caso, em vista de uma simplicidade e linearidade de expressão, limitarei a ars celebrandi à celebração da Eucaristia, e àquela pública, sobretudo paroquial.

O Cardeal Bergoglio celebra a Santa Missa

Um estilo cuidadosamente direcionado

Desejo um documento límpido e claro do ponto de vista expressivo, com uma dimensão também bíblica e dos textos litúrgicos; um texto de meditação, mais do que um tratado de teologia: exortativo, ou melhor, capaz de oferecer motivações, mais do que jurídico ou rubricístico. Deveria, porém, distinguir-se de uma exposição genérica sobre a espiritualidade sacerdotal, de modo a ser um texto prático, que considere a celebração da Eucaristia e, em particular, os diversos aspectos que deve cumprir o sacerdote.
Antes de tudo, o sacerdote celebrante deve estar consciente do mandato recebido na Ordenação: Agnosce quod agis, imitare quod tractas [Toma consciência do que vais fazer e põe em prática o que vais celebrar]. Que primeiro capte o sentido do mistério, para depois comunicá-lo à comunidade cristã, de modo que essa se conforme à grandeza do mistério. Isso requer uma fé viva, nutrida, e um sadio espírito de oração.
De resto, não é necessário um cerimonial, ainda que se deva tratar também dos aspectos externos da celebração, no que diz respeito ao sacerdote. Estou convencido que se poderia falar não só da preparação, mas também do cuidado dos gestos, da atitude do corpo, da dignidade, daquela liderança humilde mas incisiva que consiste em deixar intuir ao povo, que ama o homem que sabe rezar a Liturgia, que sabe vestir-se não só com os paramentos tradicionais, mas sobretudo da pessoa do Senhor Jesus Cristo. Em tudo isso, não se trata de refinamento, de esteticismo; não é questão de devocionismo individualista e clerical; está em jogo, ao contrário, um verdadeiro ministério pastoral, digno diante de Deus, mas - de maneira tão verdadeira quão dificilmente definível - perceptível por quem faz parte das nossas comunidades cristãs; por quem se dirige à celebração da Eucaristia para receber e para dar; para quem, com a graça de Deus, deseja fazer da Eucaristia realmente “fons et culmen” [fonte e ápice] da própria existência.
Tudo isso, é claro, o sacerdote deve deixar transparecer em estreita relação com o povo do qual é pastor e ao qual, celebrando a Eucaristia, não faz um ato de caridade, mas sim um ato de justiça.

Uma “ars dicendi”

É aqui que entra em jogo o discurso daquilo que chamarei uma ars dicendi [arte de dizer].
A esta expressão atribuirei dois sentidos. O primeiro é a maneira com a qual o sacerdote fala, quando pronuncia os textos prescritos. Neste caso, ele não fala simplesmente com sua voz privada: aqui sua voz é propriamente o veículo da oração da Igreja e dos fiéis congregados naquela ocasião. O que ele diz é comunicação e testemunho. O sacerdote deve estar consciente disso; antes, deve fazê-lo tornar-se um tema das suas meditações, nas quais deve também aprofundar o sentido dos vários textos litúrgicos. Além disso, o sacerdote, também através do tom da voz, de seu ritmo e da relativa velocidade com que fala, deve de certo modo levar as pessoas consigo na oração. É necessário um modo de falar que não é simplesmente um ler, um pregar, um anunciar, mas antes de tudo um orar sincero.
O segundo sentido que desejo atribuir à expressão ars dicendi intercepta em alguns aspectos o discurso sobre a homilia, que será objeto de atenção particular nesta Plenária. Aqui quero especificamente evocar a necessidade que o sacerdote esteja atento ao uso daquelas partes onde é exigida dele a formulação livre. Deve saber distinguir entre a “língua vulgar” (no sentido do vulgus) e a “língua popular”, no sentido da linguagem da rua, ou seja, das conversações privadas. Deve comunicar em uma língua viva e acessível. Deve falar ao coração. Não deve, porém, afastar-se daquilo que requer a circunstância e a celebração do mistério.

Um movimento que parte do sacerdote

Se com um documento sobre a ars celebrandi se pudesse ajudar o sacerdote a celebrar com a justa consciência (agnosce quod agis), se inseriria, ipso facto, também no povo uma maior consciência acerca da celebração litúrgica. Condicionaria - no melhor sentido do termo - também o diácono, os leitores e os demais ministros. Tal consciência é um dom de Deus, que é implorada na oração e que é concedida por Deus aos santos. Diz-se, por exemplo, que a teve o Beato Alfredo Ildefonso Schuster, mas a arte cristã a atribui a muitos santos, como São Gregório Magno, São Bernardo, Santo Inácio.
Voltando ao primeiro sentido que dei à expressão ars dicendi, isto é, sobre a maneira com a qual o sacerdote pronuncia os textos prescritos, insistirei também sobre a variedade de formulários à escolha que de fato já existe nos livros litúrgicos atuais. Para mim são mais do que suficientes. Tal possibilidade de escolha aumentou muito após o Concílio e constitui um fato notável diante, por exemplo, de diversos Ritos Orientais. Portanto, que o sacerdote faça com cuidado a sua escolha entre os textos à disposição e depois, em consequência, saiba fazê-los uma oração viva da Igreja, levando consigo o povo. Se souber fazer isso, então resultarão supérfluos os míseros textos da “criatividade” selvagem. É uma grande arte aquela de pronunciar como se deve aqueles textos litúrgicos que se repetem com muita frequência, como a Oração Eucarística.


É preciso, a meu ver, encontrar um modo de tocar rapidamente - sem dúvida, sem ceder à polêmica - as atitudes a evitar, como aquela do sacerdote de gestos rígidos, que parece quase ignorar a presença do povo; ou então o comportamento do padre “mestre de espetáculo”, um “showman” que investe energias em uma espécie de animação superficial. Há também o padre “muito ocupado”, que não tem tempo para uma digna celebração em tempo razoável (a “síndrome de Marta“). Porém, na minha opinião, seria um erro transformar a ars celebrandi em um tratado sobre os abusos. Oferecer motivos para uma boa práxis já é uma ação potente contra os abusos, sem que sejam explicitados.
Exprimi anteriormente minha convicção de que a ars celebrandi não deveria ter uma concepção jurídica. Uma abordagem de tipo jurídico ou disciplinar, embora seja legítima no momento devido, estaria neste caso fora de lugar. Além disso, convém que o texto não tenha um aparato pesado de notas ao pé da página. Pelo mesmo motivo, sou da opinião que se deva evitar um collage de textos conciliares ou pontifícios.
Ainda que nos limitemos a tratar da celebração da Eucaristia, a ars celebrandi não pode, me parece, simplesmente retomar a Institutio Generalis Missalis Romani [Instrução Geral sobre o Missal Romano]. Não convém nem que se torne uma espécie de vade-mécum ou prontuário do conteúdo da referida Instrução, nem que se ocupe de argumentos como a música sacra ou a arte sacra. Para ter sucesso, deve ao contrário resistir serenamente à tentação não só de dizer tudo sobre tudo, mas também muito sobre muito: que diga pouco e de modo direcionado; que o diga bem, de maneira convicta e convincente.

Conclusão

Colocando o argumento da ars celebrandi na ordem do dia desta Plenária, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos distribuiu, para o que já estava em andamento há alguns anos, duas versões de textos que se propõem tratar desta questão. Como foi explicado, os textos estão relacionados entre si nas origens. Nem um nem o outro são propostos como uma redação definitiva. Todavia, ambos podem ser úteis para suscitar o argumento e oferecer uma primeira exemplificação. Em obséquio à tarefa de expositor que me foi confiada, considero conveniente não procurar comentar estes textos, visto que estão ao alcance da mão de todos. Gostaria, ao invés, de propor à discussão dos Padres alguns critérios para progredir rumo à redação de um texto definitivo.

1. Sou da opinião de que efetivamente tenha chegado o momento para se proceder à confecção de um documento sobre a ars celebrandi.

2. Creio que tal documento deva ser breve, centrado nos argumentos essenciais, segundo uma ótica precisamente definida.

3. Deveria, a meu ver, assumir também um tom pastoral e espiritual, e até meditativo, deixando de lado uma abordagem de tipo jurídico ou disciplinar. O estilo deveria ser sincero, direto e simples, excluindo as expressões rebuscadas; mas evitando também os incisos e as frases ornamentais habituais nos documentos oficiais.

4. Para evitar dispersar a atenção, proponho tratar unicamente da celebração da Santa Missa, na consciência de que tal reflexão exercerá um influxo de modo natural e inevitável sobre todas as celebrações litúrgicas.

5. Pela mesma razão, considero que se requer um texto que explicite a atitude pastoral e espiritual que o sacerdote celebrante deve assumir no próprio ato da celebração, na consciência de que isso será de ajuda também ao povo e, em meio ao povo, àqueles que têm uma função particular.

6. Considero necessário, porém, prestar muita atenção para nem mesmo entrar na linha de redigir qualquer texto sobre a espiritualidade sacerdotal. Ao contrário, deve-se ter bem em vista que se trata da ação prática do sacerdote, no contexto especifico da celebração da Eucaristia.

7. Embora apreciando o trabalho de quantos contribuíram à confecção de um ou de outro texto postos à disposição do arquivo da Congregação, me parece que os critérios aqui anunciados poderiam por de parte ambos e empreender do início uma nova redação mais meditativa, fresca e vital.

8. Penso que tal documento não possa ser uma Instrução e provavelmente nem mesmo um Diretório, que resultaria demasiado pesado. Ao contrário, poderia ser publicado como um texto sui generis, com uma apropriada fórmula conclusiva que indique a aprovação do Santo Padre.

Roma, 01 de março de 2005.

Cardeal Jorge Mario Bergoglio, S. J.


Conforme o resumo da Assembleia Plenária publicado na Revista Notitiae, os membros da Assembleia acolheram favoravelmente a reflexão do Cardeal Bergoglio, porém decidiram não publicar um documento sobre a ars celebrandi, aguardando as conclusões do Sínodo sobre a Eucaristia, que se celebraria em outubro daquele ano.

Como fruto do Sínodo de 2005, com efeito, foi promulgada pelo Papa Bento XVI em 2207 a Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, que reflete sobre a ars celebrandi em sua II Parte (Eucaristia, mistério celebrado), sobretudo nos nn. 38-42.

Infelizmente a Carta Apostólica Desiderio desideravi não cita em nenhum momento essa Exortação Apostólica nem as contribuições do Papa Bento XVI em matéria litúrgica. Não obstante, a reflexão do Cardeal Bergoglio proferida em 2005 encontra amplo eco na Carta, cuja tradução oficial para o português ainda aguardamos.

Fontes:

Tradução do texto: Instituto Humanitas Unisinos. 23 de fevereiro de 2015. Acesso em 07 de julho de 2022.


Síntese da Assembleia Plenária (Relazione sui lavori): Notitiae, nn. 463-464, vol. 41 (2005), nn. 3-4, pp. 196-199.

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