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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Catequeses sobre os Salmos (55): Vésperas da segunda-feira da IV semana

Dando continuidade às suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Vésperas, o Papa Bento XVI refletiu sobre os textos da segunda-feira da IV semana do Saltério nos dias 09 de novembro (Sl 135,1-9), 16 de novembro (Sl 135,10-26) e 23 de novembro de 2005 (Ef 1,3-10).

154. Hino pascal pelas maravilhas do Deus criador e libertador I: Sl 135(136),1-9
09 de novembro de 2005

1. Foi chamado “o grande Hallel”, ou seja, o louvor solene e grandioso que o Judaísmo entoava durante a Liturgia pascal. Falamos do Salmo 135, do qual ouvimos a primeira parte, segundo a divisão proposta pela Liturgia das Vésperas (vv. 1-9).
Antes de tudo detenhamo-nos no refrão: “Porque eterno é seu amor!”. No centro da frase ressoa a palavra “amor”, “misericórdia” que, na realidade, é uma tradução legítima, mas limitada, do vocábulo originário hebraico hesed. Este, de fato, faz parte da linguagem característica da Bíblia para exprimir a aliança que existe entre o Senhor e o seu povo. A palavra procura definir as atitudes que se estabelecem no interior desta relação: a fidelidade, a lealdade, o amor e evidentemente a misericórdia de Deus. Temos aqui a representação sintética do vínculo profundo e interpessoal instaurado pelo Criador com a sua criatura. Dentro desta relação, Deus não é apresentado na Bíblia como um Senhor impassível e implacável, nem como um ser obscuro e indecifrável, semelhante ao destino, contra cuja força misteriosa é inútil lutar. Ao contrário, Ele manifesta-se como uma pessoa que ama as suas criaturas, vigia sobre elas, as segue no caminho da história e sofre pelas infidelidades que muitas vezes o povo opõe ao seu hesed, ao seu amor misericordioso e paterno.

"Porque eterno é seu amor" (Refrão do Sl 135)
(Imagem da "Divina Misericórdia")

2. O primeiro sinal visível desta caridade cristã, diz o salmista, deve procurar-se na criação. Depois entrará em cena a história. O olhar, repleto de admiração e assombro, detém-se antes de tudo na criação: os céus, a terra, as águas, o sol, a lua e as estrelas.
Ainda antes de descobrir o Deus que se revela na história de um povo, há uma revelação cósmica, aberta a todos, oferecida à humanidade inteira pelo único Criador, “Deus dos deuses” e “Senhor dos senhores” (vv. 2-3).
Como tinha cantado o Salmo 18, “os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia passa ao outro esta mensagem e uma noite dá conhecimento à outra noite” (Sl 18,2-3). Portanto, existe uma mensagem divina, secretamente gravada na criação e sinal do hesed, da fidelidade amorosa de Deus, que doa às suas criaturas o ser e a vida, a água e o alimento, a luz e o tempo.
É preciso ter olhos límpidos para contemplar esta revelação divina, recordando a admoestação do Livro da Sabedoria, que nos convida a “contemplar na grandeza e na beleza das criaturas, por analogia, o seu Criador” (cf. Sb 13,5; Rm 1,20). O louvor orante desemboca então na contemplação das “grandes maravilhas” de Deus (v. 4), espalhadas pela criação, e transforma-se em um jubiloso hino de louvor e de agradecimento ao Senhor.

3. Por conseguinte, ascende-se das obras criadas à grandeza de Deus, à sua amorosa misericórdia. É o que nos ensinam os Padres da Igreja, em cuja voz ressoa a constante Tradição cristã.
Assim, São Basílio Magno, em uma das páginas iniciais da sua Primeira Homilia sobre o Exameron, na qual comenta a narração da criação segundo o primeiro capítulo do Gênesis, detém-se a considerar a ação sábia de Deus, e termina reconhecendo na bondade divina o centro propulsor da criação. Eis algumas expressões tiradas da longa reflexão do santo Bispo de Cesareia da Capadócia:
“‘No princípio Deus criou o céu e a terra’. A minha palavra rende-se, subjugada pelo assombro deste pensamento” (1, 2, 1: Sulla Genesi: Omelie sull'Esamerone, Milão, 1990, pp. 9.11). De fato, também se alguns, “enganados pelo ateísmo que levavam dentro de si, imaginaram o universo privado de orientação e de ordem, como que à mercê das circunstâncias”, o escritor sagrado, ao contrário, “esclareceu-nos de imediato a mente com o nome de Deus no início da narração, dizendo: ‘No princípio Deus criou’. E que beleza nesta ordem!” (1, 2, 4: ibid., p. 11). “Se, portanto, o mundo tem um princípio e foi criado, procura quem lhe deu o início e quem é o seu Criador... Moisés preveniu-te com o seu ensinamento, imprimindo nas nossas almas como selo e filactério o santíssimo nome de Deus, quando diz: ‘No princípio Deus criou’. A natureza bem-aventurada, a bondade sem inveja, Aquele que é objeto de amor por parte de todos os seres racionais, a beleza mais desejável que qualquer outra, o princípio dos seres, a fonte da vida, a luz intelectiva, a sabedoria inacessível, em suma, Deus ‘no princípio criou o céu e a terra’” (1, 2, 6-7: ibid., p. 13).
Penso que as palavras deste Padre do século IV são de uma atualidade surpreendente quando diz: “Alguns, deixando-se enganar pelo ateísmo que levavam dentro de si, imaginaram um universo privado de orientação e de ordem, como que à mercê das circunstâncias”. Quantos são hoje estes “alguns”. Eles, deixando-se enganar pelo ateísmo, consideram e procuram demonstrar que é científico pensar que tudo está privado de ordem, como que à mercê das circunstâncias. O Senhor, com a Sagrada Escritura, desperta a razão que dorme e diz-nos: “No princípio está a Palavra criadora. E a Palavra criadora que está no princípio - a Palavra criadora que tudo criou, que criou este projeto inteligente que é o cosmos - também é amor”.
Por conseguinte, deixemo-nos despertar por esta Palavra de Deus; rezemos para que ela esclareça também a nossa mente, para que possamos compreender a mensagem da criação, inscrita também em nosso coração: o princípio de tudo é a Sabedoria criadora, e esta Sabedoria é amor, é bondade: “Porque eterno é seu amor!”.

155. Hino pascal pelas maravilhas do Deus criador e libertador II: Sl 135(136),10-26
16 de novembro de 2005

1. A nossa reflexão volta ao hino de louvor do Salmo 135, que a Liturgia das Vésperas propõe em duas etapas sucessivas, seguindo uma distinção específica que a composição oferece a nível temático. De fato, a celebração das obras do Senhor delineia-se em dois âmbitos, o do espaço e o do tempo.
Na primeira parte (vv. 1-9), que foi objeto da nossa meditação precedente, o cenário era composto por atos divinos dispostos na criação: eles deram origem às maravilhas do universo. Assim, naquela parte do Salmo proclama-se a fé em Deus criador, que se revela através das suas criaturas cósmicas. Agora, porém, o jubiloso canto do salmista, chamado pela tradição judaica “o grande Hallel”, ou seja, o maior louvor que elevamos ao Senhor, conduz-nos a um horizonte diverso, o da história. Portanto, enquanto a primeira parte fala da criação como reflexo da beleza de Deus, a segunda fala da história e do bem que Deus realizou para nós no decorrer da história. Sabemos que a Revelação bíblica proclama repetidamente que a presença de Deus salvador se manifesta de modo particular na história da salvação (cf. Dt 26,5-9; Js 24,1-13).

2. Assim, desfilam diante do orante as ações libertadoras do Senhor, que têm o seu coração no acontecimento fundamental do êxodo do Egito. Com ele está profundamente relacionada a difícil viagem pelo deserto do Sinai, cujo meta derradeira é a terra prometida, o dom divino que Israel continua a experimentar em todas as páginas da Bíblia.
A célebre travessia do Mar Vermelho, “cortado em duas partes” (v. 13), como que rasgado e dominado como um monstro vencido, faz nascer o povo livre e chamado a uma missão e a um destino glorioso (vv. 14-15; cf. Ex 15,1-21), que terá a sua releitura cristã na plena libertação do mal com a graça batismal (cf. 1Cor 10,1-4). Depois, abre-se o itinerário do deserto: lá o Senhor está representado como um guerreiro que, prosseguindo a obra de libertação iniciada na travessia do Mar Vermelho, se declara em defesa do seu povo ferindo os adversários. Deserto e mar representam, portanto, a passagem através do mal e da opressão para receber o dom da liberdade e da terra prometida (vv. 16-20).

3. No final, o Salmo apresenta aquela terra que a Bíblia exalta de modo entusiasta como “terra ótima, terra de torrentes de água, de fontes e de nascentes, que jorram por vales e montes; terra de trigo, cevada, videiras, figos e de romãs; terra de oliveiras, azeite e mel; terra onde não comerás pouco pão, onde nada te faltará, terra onde as pedras são de ferro e de cujas montanhas extrairás cobre” (Dt 8,7-9).
Esta celebração enfática, que vai além da realidade daquela terra, quer exaltar o dom divino, dirigindo a nossa expectativa para o dom mais nobre da vida eterna com Deus. Um dom que permite que o povo seja livre, um dom que nasce - como se continua a repetir na antífona que marca cada versículo - do hesed do Senhor, isto é, da sua “misericórdia”, da sua fidelidade ao compromisso assumido na aliança com Israel, do seu “amor” que continua a revelar-se através da “recordação” (v. 23). No tempo da “humilhação”, ou seja, nas provas e opressões sucessivas, Israel descobrirá sempre a mão salvadora do Deus da liberdade e do amor. Também no tempo da fome e da miséria o Senhor entra em ação para oferecer a toda a humanidade o alimento, confirmando a sua identidade de criador (v. 25).

4. Por conseguinte, com o Salmo 135 entrelaçam-se duas modalidades da única Revelação divina, a cósmica (vv. 4-9) e a histórica (vv. 10-25). Sem dúvida, o Senhor é transcendente como criador e árbitro do ser; mas também está próximo das suas criaturas, entrando no espaço e no tempo. Não permanece fora, no céu longínquo. Aliás, a sua presença no meio de nós alcança o seu ápice na Encarnação de Cristo.
É quanto proclama a releitura cristã do Salmo de modo límpido, como é confirmado pelos Padres da Igreja, que veem o vértice da história da salvação e o sinal supremo do amor misericordioso do Pai no dom do Filho, como salvador e redentor da humanidade (cf. Jo 3,16).
Assim, São Cipriano, um mártir do século III, ao iniciar o seu tratado sobre As obras de caridade e a esmola, contempla com admiração as obras que Deus realizou em Cristo, seu Filho, em favor do seu povo, irrompendo por fim em um reconhecimento apaixonado da sua misericórdia. “Irmãos caríssimos, são muitos e grandiosos os benefícios de Deus, que a bondade generosa e abundante de Deus Pai e de Cristo realizou e sempre realizará para a nossa salvação; de fato, para doar-nos uma nova vida e para poder nos redimir, o Pai enviou o Filho; o Filho, que tinha sido enviado, quis ser chamado também Filho do homem, para que nos tornássemos filhos de Deus: humilhou-se, para elevar o povo que antes jazia por terra, foi ferido para curar as nossas feridas, tornou-se escravo para nos conduzir à liberdade, a nós que éramos escravos. Aceitou morrer, para poder oferecer aos mortais a imortalidade. São estes os numerosos e grandiosos dons da divina misericórdia” (1: Tratados: Coleção de Textos Patrísticos, CLXXV, Roma, 2004, p. 108).
Com estas palavras, o santo Padre da Igreja desenvolve o Salmo com uma ladainha dos benefícios que Deus nos fez, acrescentando ao que o salmista ainda não conhecia, mas já esperava, o verdadeiro dom que Deus nos fez: o dom do Filho, o dom da Encarnação, na qual Deus se doou a nós e permanece conosco, na Eucaristia e na sua Palavra, todos os dias, até o fim da história. O nosso perigo é que a memória do mal, dos males suportados, muitas vezes seja mais forte do que a memória do bem. O Salmo serve para despertar em nós também a memória do bem, do muito bem que o Senhor nos faz, e que podemos ver se o nosso coração estiver atento: é verdade, a misericórdia de Deus é eterna, está presente dia após dia.

156. O plano divino da salvação: Ef 1,3-10
23 de novembro de 2005

1. Todas as semanas a Liturgia das Vésperas propõe à Igreja orante o solene hino de abertura da Carta aos Efésios, o texto que foi agora proclamado. Ele pertence ao gênero das berakot, ou seja, das “bênçãos”, que já se encontram no Antigo Testamento e que terão uma ulterior difusão na tradição judaica. Por conseguinte, trata-se de um constante fio de louvor que se eleva a Deus, que na fé cristã é celebrado como “Pai de Jesus Cristo, Senhor nosso”.
É por isso que, no nosso louvor hínico, Cristo é a figura central, na qual se revela e cumpre a obra de Deus Pai. De fato, os três verbos principais deste cântico longo e compacto conduzem-nos sempre para o Filho.

2. Deus “nos escolheu em Cristo” (v. 4): é a nossa vocação à santidade e à filiação adotiva e, por conseguinte, à fraternidade com Cristo. Este dom, que transforma radicalmente o nosso estado de criaturas, nos é oferecido “através de Jesus Cristo” (v. 5), uma obra que entra no grande projeto divino de salvação, naquela amorosa e “livre decisão da vontade” do Pai (v. 5), que o Apóstolo comtempla com emoção.
O segundo verbo, depois do verbo da eleição (“nos escolheu”), designa o dom da graça: “Para o louvor e para a glória de sua graça, que em seu Filho bem-amado nos doou” (v. 6). Em grego temos por duas vezes a mesma raiz, charis e echaritosen, para realçar a gratuidade da iniciativa divina, que precede qualquer resposta humana. Portanto, a graça que o Pai nos proporciona é manifestação do seu amor que nos envolve e nos transforma.

3. E eis-nos no terceiro verbo fundamental do cântico paulino: ele tem por objeto a graça divina que foi derramada sobre nós “em abundância” (v. 8). Por conseguinte, estamos diante de um verbo de plenitude, poderíamos dizer - atendo-nos ao seu significado original - de excesso, de doação sem limites nem reservas.
Chegamos assim à profundidade infinita e gloriosa do mistério de Deus, aberto e revelado por graça a quem foi chamado por graça e por amor, sendo esta uma revelação impossível de alcançar unicamente com o dom da inteligência e das capacidades humanas. “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam. Deus, porém, revelou-o a nós pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundezas de Deus” (1Cor 2,9-10).

4. O “mistério da vontade” divina tem um centro, que está destinado a coordenar todo o ser e toda a história guiando-os à plenitude querida por Deus: é “o desígnio de, em Cristo, reunir todas as coisas” (v. 10). Neste “desígnio”, em grego oikonomia, ou seja, neste plano harmonioso da arquitetura do ser e do existir, eleva-se Cristo, Cabeça do Corpo da Igreja, mas também eixo que recapitula em si o universo inteiro, “todas as coisas: as da terra e as do céu”. A dispersão e o limite são superados, e configura-se aquela “plenitude” que é a verdadeira meta do projeto que a vontade divina tinha preestabelecido desde as origens.
Por conseguinte, estamos diante de um mosaico grandioso da história da criação e da salvação, que agora gostaríamos de meditar e aprofundar através das palavras de Santo Irineu, um grande Padre da Igreja do século II, o qual, em algumas páginas magistrais do seu tratado Contra as heresias, tinha desenvolvido uma reflexão minuciosa precisamente sobre a recapitulação realizada por Cristo.

5. A fé cristã - afirma Irineu - reconhece que “existe um único Deus Pai e um só Cristo Jesus, nosso Senhor, que veio através de toda a economia e recapitulou em si todas as coisas. Entre todas as coisas está também o homem, imagem de Deus. Portanto, recapitulou também o homem em si mesmo, tornando-se visível, Ele que é invisível, compreensível, Ele que é incompreensível, e homem, Ele que é Verbo” (3, 16, 6: Già e non ancora, CCCXX, Milão, 1979, p. 268).
Por isso, “o Verbo de Deus se fez homem” realmente, não na aparência, porque então a “sua obra não teria sido verdadeira”. Ao contrário, “Ele era como se mostrava: Deus que recapitula em si a sua antiga criatura, que é o homem, para sair do pecado, destruir a morte e vivificar o homem. E por isso as suas obras são verdadeiras” (3, 18, 7: ibid., pp. 277-278).
Constituiu-se Chefe da Igreja para atrair todos para si no momento justo. No espírito destas palavras de Santo Irineu rezemos: “Sim, Senhor, atrai-nos para Ti, atrai o mundo para Ti e concede-nos a paz, a Tua paz”.

"Foi em Cristo que Deus Pai nos escolheu..." (Ef 1,4)
(Vocação dos primeiros discípulos - Juan de Roelas)

Fonte: Santa Sé (09 de novembro, 16 de novembro e 23 de novembro de 2005).

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