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quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (37): Vésperas da quinta-feira da I semana

Na série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, chegamos às Vésperas da quinta-feira da I semana do Saltério. O Papa refletiu sobre os textos desse dia nas Catequeses de 12 de maio (Sl 29), 19 de maio (Sl 31) e 26 de maio de 2004 (Ap 11,17-18; 12,10b-12a).

106. Ação de graças pela libertação: Sl 29(30),2-13
12 de maio de 2004

1. Eleva-se a Deus, do coração do orante, uma ação de graças intensa e suave depois de se ter dissolvido nele o pesadelo da morte. Eis o sentimento que sobressai com vigor no Salmo 29, que agora ressoou não só aos nossos ouvidos, mas sem dúvida também aos nossos corações.
Este hino de gratidão possui uma notável delicadeza literária e fundamenta-se sobre uma série de contrastes que expressam de maneira simbólica a libertação obtida pelo Senhor. Assim, o “descer ao túmulo” opõe-se ao “livrar a alma dos abismos” (v. 4); à “ira de um instante”, por parte de Deus, substitui-se a “bondade que permanece a vida inteira” (v. 6); o “pranto” noturno é substituído pela “alegria” da manhã (ibid.); ao “pranto” sucede a “festa”, às “vestes fúnebres”, os “adornos de alegria” (v. 12).
Por conseguinte, tendo passado a noite da morte, desperta o alvorecer do novo dia. A tradição cristã leu, pois, este Salmo como um cântico pascal. Confirma isto a citação de abertura que a edição do texto litúrgico das Vésperas deduz de um grande escritor monástico do século IV, João Cassiano: “Cristo, após sua gloriosa Ressurreição, dá graças ao Pai”.

"Se à tarde vem o pranto visitar-nos, de manhã nos vem saudar a alegria" (Sl 29,6)
Encontro do Ressuscitado com Maria Madalena na manhã do domingo (Alexander Ivanov)

2. O orante dirige-se com insistência ao “Senhor” - não menos de oito vezes - tanto para anunciar que o louvará (vv. 2.13), como para recordar o grito que a Ele foi elevado no tempo da prova (vv. 3.9) e a sua intervenção libertadora (vv. 2-4.8.12), como para invocar novamente a sua misericórdia (v. 11). Em outro trecho, o orante convida os fiéis a cantar hinos ao Senhor para dar-lhe graças (v. 5).
As sensações oscilam constantemente entre a recordação terrível do pesadelo vivido e a alegria da libertação. Sem dúvida, o perigo superado é grave e ainda consegue fazer arrepiar; a memória do sofrimento passado é ainda nítida e viva; há pouco que as lágrimas dos olhos se enxugaram. Mas já surgiu a aurora de um novo dia; a morte foi substituída pela perspectiva da vida que continua.

3. O Salmo demonstra assim que nunca nos devemos deixar seduzir pelo enredo obscuro do desespero, quando parece que tudo já se perdeu. Sem dúvida, é preciso evitar cair na ilusão de salvar-se sozinho, com os próprios recursos. De fato, o salmista é tentado pela soberba e pela autossuficiência: “Nos momentos mais felizes eu dizia: ‘Jamais hei de sofrer qualquer desgraça!’” (v. 7).
Também os Padres da Igreja refletiram sobre esta tentação que se insinua no tempo da prosperidade, e viram na prova uma chamada divina à humildade. Assim faz, por exemplo, São Fulgêncio, Bispo de Ruspe (467-532), na sua Epístola 3, dirigida à religiosa Proba, na qual comenta o trecho do Salmo com estas palavras: “O salmista confessava que por vezes se tinha envaidecido de ser sadio, como se fosse sua virtude, e que nisto tinha visto o perigo de uma gravíssima enfermidade. De fato, diz: ‘Eu dizia na minha felicidade: Jamais serei abalado!’. E visto que, dizendo isto, tinha sido abandonado do apoio da graça divina e, perturbado, precipitou na sua enfermidade, continua dizendo: ‘Senhor, foste bom para mim e deste-me segurança; mas, se escondes a tua face, logo fico perturbado’. Além disso, para mostrar que a ajuda da graça divina, mesmo quando já a possuímos, deve ser contudo invocada humildemente sem ininterrupção, ele acrescenta ainda: ‘A ti grito, Senhor, peço a ajuda ao meu Deus’. Aliás, ninguém eleva a oração nem faz pedidos sem reconhecer as suas faltas, nem considera poder conservar aquilo que possui confiando unicamente na própria virtude” (Fulgêncio de Ruspe, Cartas, Roma, 1999, p. 113).

4. Depois de ter confessado a tentação de soberba que teve no tempo da prosperidade, o salmista recorda a prova que a ela se seguiu, dizendo ao Senhor: “Escondestes vossa face e perturbei-me” (v. 8).
Então, o orante recorda de que maneira implorou o Senhor (vv. 9-11):  gritou, pediu ajuda, suplicando que fosse salvo da morte, apresentando como razão o fato de que a morte não traz vantagem alguma para Deus, dado que os mortos já não estão em condições de louvar a Deus, nem têm motivos para proclamar a fidelidade de Deus, tendo sido abandonados por Ele.
Encontramos os mesmos argumentos no Salmo 87, no qual o orante, próximo da morte, pede a Deus: “Poderá a tua bondade ser exaltada no sepulcro ou a tua fidelidade, na mansão dos mortos?” (Sl 87,12). De modo semelhante, o rei Ezequias, que estava gravemente doente, depois se curou, dizia a Deus: “O abismo dos mortos não te louvará, nem a morte te celebrará... apenas os vivos te podem louvar” (Is 38,18-19).
O Antigo Testamento exprimia assim o intenso desejo humano de uma vitória de Deus sobre a morte e referia diversos casos em que esta vitória tinha sido obtida: pessoas ameaçadas de morrer de fome no deserto, presos que se livraram da pena de morte, doentes que se curaram, marinheiros salvos do naufrágio (cf. Sl 106,4-32). Tratavam-se, contudo, de vitórias não definitivas. Cedo ou tarde, a morte conseguia prevalecer sempre.
Todavia, a aspiração pela vitória manteve-se sempre e tornou-se, no final, uma esperança de ressurreição. A satisfação desta poderosa aspiração foi plenamente garantida com a Ressurreição de Cristo, pela qual o nosso agradecimento nunca será demasiado.

107. Feliz o homem que foi perdoado: Sl 31(32),1-11
19 de maio de 2004

1. “Feliz o homem que foi perdoado e cuja falta já foi encoberta!”. Esta bem-aventurança, que abre o Salmo 31 há pouco proclamado, faz-nos compreender imediatamente o motivo pelo qual ele foi acolhido pela tradição cristã na série dos sete Salmos Penitenciais. Depois da dupla bem-aventurança inicial (vv. 1-2), encontramos não uma reflexão genérica sobre o pecado e o perdão, mas o testemunho pessoal de um convertido.
A composição do Salmo é bastante complexa: depois do testemunho (vv. 3-5) vêm dois versículos que falam de perigo, de oração e de salvação (vv. 6-7); depois uma promessa divina de conselho (v. 8) e uma admoestação (v. 9); e, por fim, um ditado sapiencial antitético (cf. v. 10) e um convite a rejubilar no Senhor (cf. v. 11).

2. Retomamos agora apenas alguns elementos desta composição. Antes de tudo o orante descreve a sua penosíssima situação de consciência quando “se calava” (v. 3):  tendo cometido graves culpas, ele não tinha a coragem de confessar a Deus os seus pecados. Era um tormento interior terrível, descrito com imagens impressionantes. Os seus ossos quase definhavam sob uma febre abaladora, o calor consumia o seu vigor dissolvendo-o, o seu gemido era contínuo. O pecador sentia pesar sobre si a mão de Deus, consciente de que Deus não é indiferente ao mal perpetrado pela sua criatura, porque Ele é o guardião da justiça e da verdade.

3. Não podendo resistir mais, o pecador decidiu confessar a sua culpa com uma declaração corajosa, que parece antecipar a do filho pródigo da parábola de Jesus (cf. Lc 15,18). De fato, disse com sinceridade de coração: “Eu irei confessar meu pecado!”. São poucas palavras, mas surgem da consciência; Deus responde-lhe imediatamente com um generoso perdão (v. 5).
O profeta Jeremias referia este apelo de Deus: “Volta, rebelde Israel, não mais te mostrarei um semblante enfurecido, oráculo do Senhor; porque sou misericordioso. A minha ira não é eterna, oráculo do Senhor. Reconhece somente a tua falta, pois foste infiel ao Senhor, teu Deus” (Jr 3,12-13).
Abre-se assim diante de “todo fiel” arrependido e perdoado um horizonte de segurança, de confiança, de paz, apesar das provas da vida (vv. 6-7). Ainda pode vir o tempo da angústia, mas a maré progressiva do receio não prevalecerá, porque o Senhor guiará o seu fiel para um lugar seguro: “Sois para mim proteção e refúgio; na minha angústia me haveis de salvar, e envolvereis a minha alma no gozo da salvação que me vem só de vós” (v. 7).

4. Neste ponto, o Senhor toma a palavra e promete guiar o pecador já convertido. Com efeito, não é suficiente ter sido purificado; é necessário depois caminhar pela via reta. Por isso, como no Livro de Isaías (Is 30,21), o Senhor promete: “Indicarei o caminho que deves seguir” (Sl 31,8) e convida à docilidade. O apelo faz-se solícito, eivado de um pouco de ironia com a vivaz comparação do jumento e do cavalo, símbolos de obstinação (v. 9). Com efeito, a verdadeira sabedoria induz à conversão, deixando para trás o vício e o seu obscuro poder de atração. Mas sobretudo conduz ao gozo daquela paz que brota do fato de sermos libertados e perdoados.
São Paulo na Carta aos Romanos refere-se explicitamente ao início do nosso Salmo para celebrar a graça libertadora de Cristo (cf. Rm 4,6-8). Nós poderíamos aplicá-lo ao Sacramento da Reconciliação. Nele, à luz do Salmo, experimenta-se a consciência do pecado, com frequência obscurecida nos nossos dias, e ao mesmo tempo a alegria do perdão. O binômio “delito-castigo” é substituído pelo binômio “delito-perdão”, porque o Senhor é um Deus “que perdoa as culpas, as transgressões e os pecados” (Ex 34,7).

5. São Cirilo de Jerusalém (séc. IV) usa o Salmo 31 para ensinar aos catecúmenos a renovação profunda do Batismo, radical purificação de qualquer pecado (Pro-Catequese, n. 15). Também ele exaltará, através das palavras do salmista, a misericórdia divina. Concluímos com as suas palavras a nossa Catequese: “Deus é misericordioso e não poupa o seu perdão... Não superará a grandeza da misericórdia de Deus o acúmulo dos teus pecados: não superará a maestria do sumo Médico a gravidade das tuas feridas, desde que a Ele te abandones com confiança. Manifesta ao Médico o teu mal, e ao expô-lo com as palavras que Davi disse: ‘Eis que confessarei sempre ao Senhor a minha iniquidade’. Assim obterás que se realizem as outras: ‘Tu perdoaste as infidelidades do meu coração’” (Catequeses, Roma, 1993, pp. 52-53).

108. O julgamento de Deus: Ap 11,17-18; 12,10-12
26 de maio de 2004

1. O cântico que agora elevamos ao “Senhor Deus onipotente”, e que é proposto na Liturgia das Vésperas, é fruto da seleção de alguns versículos dos capítulos 11 e 12 do Apocalipse. Já ressoou o toque da última das sete trombetas que se ouve neste livro de luta e de esperança. Eis que os vinte e quatro anciãos da corte celeste, que representam todos os justos da Antiga e da Nova Aliança (cf. Ap 4,4; 11,16), entoam um hino que talvez já fosse usado nas assembleias litúrgicas da Igreja primitiva. Eles adoram a Deus, soberano do mundo e da história, que já está pronto para instaurar o seu reino de justiça, de amor e de verdade.
Sente-se pulsar, nesta oração, o coração dos justos que aguardam na esperança a vinda do Senhor para tornar mais luminosa a vicissitude da humanidade, com frequência envolvida pelas trevas do pecado, da injustiça, da mentira e da violência.

2. O cântico entoado pelos vinte e quatro anciãos faz referência a dois salmos: o Salmo 2, que é uma espécie de elegia messiânica (Sl 2,1-5), e o Salmo 98, que celebra a realeza divina (Sl 98,1). Desta forma, alcança a finalidade de exaltar o julgamento justo e decisivo que o Senhor está para executar sobre toda a história humana.
São dois os aspectos desta intervenção benéfica, como duas são também as características que definem o rosto de Deus. Ele é juiz, mas é também salvador; condena o mal, mas recompensa a fidelidade; é justiça, mas sobretudo amor.
É significativa a identidade dos justos, agora salvos no Reino de Deus. Eles estão distribuídos em três categorias de “servos” do Senhor, isto é, os profetas, os santos, e todos aqueles que temem o seu nome (Ap 11,18). Trata-se de uma espécie de retrato espiritual do povo de Deus, segundo os dons recebidos no Batismo e feitos florescer na vida de fé e de amor. Um perfil que se realiza tanto nos pequenos como nos grandes (Ap 19,5).

3. O nosso hino, como se disse, é elaborado também com o uso de outros versículos do capítulo 12, que se referem a um cenário grandioso e glorioso do Apocalipse. Nele confrontam-se a mulher que deu à luz o Messias e o dragão da maldade e da violência. Neste duelo entre o bem e o mal, entre a Igreja e Satanás, improvisamente ressoa uma voz celeste que anuncia a derrota do “Acusador” (Ap 12,10). Este nome é a tradução do nome hebraico Satán, dado a uma personagem que, segundo o Livro de Jó, é membro da corte celeste de Deus, onde desempenha a função do “Ministério Público” (cf. 1,9-11; 2,4-5; Zc 3,1).
Ele “acusava os nossos irmãos, dia e noite, junto a Deus”, isto é, punha em questão a sinceridade da fé dos justos. Agora o dragão satânico é obrigado ao silêncio e na origem da sua derrota encontra-se “o sangue do Cordeiro” (Ap 12,11), a Paixão e a Morte de Cristo redentor.
Com a sua vitória está associado o testemunho do martírio dos cristãos. Existe uma participação íntima na obra redentora do Cordeiro por parte dos fiéis que não hesitaram em “desprezar a sua vida até à morte” (ibid.). O pensamento corre para as palavras de Cristo: “Quem ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna” (Jo 12,25).

4. O solista celeste que entoou o cântico, o conclui convidando todo o coro angélico a unir-se ao hino de alegria pela salvação obtida (Ap 12,12). Nós associamo-nos àquela voz na nossa ação de graças alegre e cheia de esperança, mesmo no meio de provas que marcam o nosso caminho rumo à glória.
Fazemo-lo ouvindo as palavras que o mártir São Policarpo dirigia ao “Senhor Deus onipotente” quando já estava amarrado e pronto para a fogueira: “Senhor Deus onipotente, Pai do teu amado e bendito Filho Jesus Cristo, (...) que tu sejas bendito por me teres julgado digno deste dia e, nesta hora, de ocupar um lugar na categoria dos mártires, no cálice do teu Cristo, para a ressurreição à vida eterna de alma e corpo na incorruptibilidade do Espírito Santo. Que eu seja admitido hoje, entre eles, à tua presença, como abundante e agradável sacrifício, assim como tu, o Deus verdadeiro que não conhece a mentira, precedentemente dispuseste, manifestaste e realizaste. Por isso, acima de tudo, eu louvo-te, bendigo-te, e glorifico-te através do teu eterno e celeste Sumo Sacerdote e dileto Filho, Jesus Cristo, mediante o qual seja dada glória a Ti, com Ele e com o Espírito Santo, agora e pelos séculos vindouros. Amém” (Atos e paixões dos mártires, Milão, 1987, p. 23).

"Eu confessei, afinal, meu pecado... E perdoastes, Senhor, minha falta" (Sl 31,5)
("A volta do filho pródigo" - Bartolomé Esteban Murillo)

Fonte: Santa Sé (12 de maio, 19 de maio e 26 de maio de 2004).

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