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quinta-feira, 22 de julho de 2021

Catequeses sobre os Salmos (26): Laudes da quarta-feira da IV semana

Nesta postagem propomos as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e o cântico das Laudes da quarta-feira da IV semana do Saltério, proferidas nos dias 28 de maio (Sl 107), 18 de junho (Is 61,10–62,5) e 02 de julho de 2003 (Sl 145).

75. Louvor a Deus e pedido de ajuda: Sl 107(108),2-14
28 de maio de 2003

1. O Salmo 107, que agora nos foi proposto, faz parte da sequência dos salmos da Liturgia das Laudes, objeto das nossas Catequeses. Ele apresenta uma característica, à primeira vista, surpreendente. A composição não é mais do que a fusão de dois fragmentos de salmos pré-existentes, um tirado do Salmo 56 (vv. 8-12) e outro do Salmo 59 (vv. 7-14). O primeiro fragmento tem uma tonalidade hínica, o segundo uma marca suplicante, mas com um oráculo divino que confere ao orante serenidade e confiança.
Esta fusão dá origem a uma nova oração e isto se torna exemplar para nós. Na realidade, também a Liturgia cristã muitas vezes funde trechos bíblicos diferentes de maneira que os transforma num texto novo, destinado a iluminar situações inéditas. Contudo, permanece o vínculo com a base originária. Na prática, o Salmo 107 (mas não é o único; veja-se, só para mencionar outro testemunho, o Salmo 143) mostra como já Israel no Antigo Testamento reutilizava e atualizava a Palavra de Deus revelada.

2. O Salmo que deriva dessa combinação é, portanto, algo mais do que a simples soma ou justaposição dos dois trechos pré-existentes. Em vez de começar com uma humilde súplica, como o Salmo 56 - “Tende piedade de mim, ó Deus” (v. 2) -, o novo Salmo começa com um anúncio resoluto de louvor a Deus: “Meu coração está pronto, meu Deus, está pronto o meu coração! Vou cantar e tocar para vós” (Sl 107,2). Este louvor ocupa o lugar da lamentação que formava o começo do outro salmo (cf. Sl 59,1-6), e torna-se assim a base do oráculo seguinte (Sl 59,8-10 = Sl 107,8-10) e da súplica que o rodeia (Sl 59,7.11-14 = Sl 107,7.11-14).
Esperança e pesadelo fundem-se e tornam-se substância da nova oração, completamente orientada para dar confiança também no tempo da prova vivida por toda a comunidade.

3. Por conseguinte, o Salmo começa com um hino jubiloso de louvor. É um cântico matutino acompanhado da harpa e da lira (v. 3). A mensagem é límpida e tem no centro o “amor” e a “verdade” divinos (v. 5): em hebraico, hésed e 'emèt são as palavras típicas para definir a fidelidade amorosa do Senhor em relação à aliança com o seu povo. Com base nesta fidelidade, o povo tem a certeza de que nunca será abandonado por Deus no abismo do nada e do desespero.
A nova leitura cristã interpreta este Salmo de maneira particularmente sugestiva. No v. 6 o salmista celebra a glória transcendente de Deus: “Elevai-Vos (ou seja, ‘sê exaltado’), ó Deus, sobre os céus!”. Ao comentar este Salmo, Orígenes remete para a frase de Jesus: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32) que se refere à crucificação. Ela tem como resultado o que afirma o versículo seguinte: “Sejam livres os vossos amados” (v. 7). Então Orígenes conclui: “Que significado maravilhoso! O motivo pelo qual o Senhor é crucificado e exaltado é que os seus amados sejam livres... Realizou-se tudo o que pedimos: Ele foi exaltado e nós fomos libertados” (Orígenes-Jerônimo, 74 homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, p. 367).

"Elevai-vos, Ó Deus, sobre os céus
vossa glória refulja na terra!" (Sl 107,6)

4. Passamos agora à segunda parte do Salmo 107, citação parcial do Salmo 59, como foi dito. Na angústia de Israel, que sente Deus ausente e distante (“vós, Deus, rejeitais vosso povo”:  v. 12), ergue-se a voz do oráculo do Senhor que ressoa no templo (vv. 8-10). Nesta revelação, Deus apresenta-se como árbitro e senhor de toda a Terra Santa, da cidade de Siquém ao vale da Transjordânia, Sucot, das regiões orientais de Galaad e Manassés às centro-meridionais de Efraim e Judá, alcançando também os territórios vassalos, mas estrangeiros, de Moab, Edom e Filisteia.
Com palavras vivas de inspiração militar ou com marcas jurídicas proclama-se o domínio divino sobre a Terra Prometida. Se o Senhor reina, não devemos temer: não somos atirados para cá e para lá pelas forças obscuras do destino ou da confusão. Há sempre, também nos momentos tenebrosos, um projeto superior que rege a história.

5. Esta fé acende a chama da esperança. Contudo, Deus indicará uma solução, ou seja, uma “cidade segura” colocada na região de Edom. Isto significa que, apesar da prova e do silêncio, Deus voltará a revelar-se, a apoiar e orientar o seu povo. Só d’Ele pode vir a ajuda decisiva e não das alianças militares externas, ou seja, da força das armas (v. 13). E só com Ele se obterá a liberdade e se farão “proezas” (v. 14).
Recordamos com São Jerônimo a última lição do salmista, interpretada em chave cristã: “Ninguém se deve perder por este caminho. Tens Cristo e tens receio? Será Ele a nossa força, o nosso pão, o nosso guia” (Breviarium in Psalmos, Ps. CVII:  PL 26, 1224).

76. A alegria do profeta sobre a nova Jerusalém: Is 61,10–62,5
18 de junho de 2003

1. Abriu-se como um Magnificat o admirável cântico que a Liturgia das Laudes nos propõe e que agora foi proclamado: “Eu exulto de alegria no Senhor, e minha alma rejubila no meu Deus” (v. 10). O texto está inserido na terceira parte do Livro do Profeta Isaías, uma parte que os estudiosos enquadram numa época mais tardia, quando Israel, tendo voltado do exílio na Babilônia (século VI a. C.), recomeça a sua vida como povo livre na terra dos antepassados e edifica de novo Jerusalém e o templo. Não é por acaso que a cidade santa, como veremos, está no centro do cântico e o horizonte que se está a abrir é luminoso e repleto de esperança.

2. O profeta abre o seu cântico representando o povo renascido, envolvido em maravilhosas vestes, como um casal de esposos, preparado para o grande dia da celebração nupcial (v. 10). Imediatamente a seguir é recordado outro símbolo, expressão de vida, de alegria e de novidade: o símbolo vegetal das sementes (v. 11).
Os profetas recorrem à imagem das sementes, de formas diferentes, para representar o rei messiânico (cf. Is 11,1; Jr 23,5; Zc 3,8; 6,12). O Messias é uma semente fecunda que renova o mundo, e o profeta explicita o sentido profundo desta vitalidade: “o Senhor fará brotar sua justiça” (v. 11). Portanto, a cidade santa se tornará um jardim de justiça, isto é, de fidelidade e de verdade, de direito e de amor. Como dizia pouco antes o profeta, “Darás às tuas muralhas o nome de ‘Salvação’, e de ‘Glória’ às tuas portas” (Is 60,18).

3. O profeta continua a levantar a sua voz: o cântico é incansável e quer representar o renascimento de Jerusalém, diante da qual está para começar uma nova era (Is 62,1). A cidade é representada como uma esposa que se prepara para celebrar as núpcias.
O simbolismo esponsal, que sobressai com vigor nesta passagem (vv. 4-5), é, na Bíblia, uma das imagens mais intensas para exaltar o vínculo de intimidade e o pacto de amor estabelecido entre o Senhor e o povo eleito. A beleza feita de “salvação”, de “justiça” e de “glória” (vv. 1-2) será tão maravilhosa que ela poderá ser “diadema régio entre as nãos do teu Senhor” (v. 3). O elemento decisivo será a mudança do nome, como acontece também nos nossos dias quando a jovem se casa. Assumir um “nome novo” (v. 2) significa quase revestir uma nova identidade, empreender uma missão, mudar radicalmente a vida (cf. Gn 32,25-33).

4. O novo nome que assumirá a esposa Jerusalém, destinada a representar todo o povo de Deus, é ilustrado no contraste que o profeta especifica: “Nunca mais te chamarão ‘Desamparada’, nem se dirá de tua terra ‘Abandonada’; mas haverão de te chamar ‘Minha querida’, e se dirá de tua terra ‘Desposada’” (v. 4). Os nomes que indicavam a situação anterior de abandono e de desolação, ou seja, a devastação da cidade por obra dos babilônios e o drama do exílio, é agora substituído pelos nomes do renascimento e são palavras de amor e de ternura, de festa e de felicidade.
Neste ponto toda a atenção se concentra no esposo. E eis a grande surpresa: o próprio Senhor atribui a Sião o novo nome nupcial. É maravilhosa, sobretudo, a declaração final, que resume o tema do cântico de amor que o povo entoou: “Como um jovem que desposa a bem-amada, teu Construtor, assim também, vai desposar-te; como a esposa é a alegria do marido, serás assim a alegria do teu Deus” (v. 5).

5. O cântico já não celebra as núpcias entre um rei e uma rainha, mas celebra o amor profundo que une para sempre Deus e Jerusalém. Na sua esposa terrena, que é a nação santa, o Senhor encontra a mesma felicidade que o marido experimenta na esposa amada. O Deus distante e transcendente, juiz justo, é substituído agora por um Deus próximo e enamorado. Este simbolismo nupcial se transferirá para o Novo Testamento (cf. Ef 5,21-32) e será retomado e desenvolvido pelos Padres da Igreja. Por exemplo, Santo Ambrósio recorda que nesta perspectiva “o marido é Cristo, a esposa é a Igreja, esposa pelo amor, virgem pela pureza intacta” (Exposições do Evangelho segundo Lucas: Obras exegéticas X/II, Milão-Roma, 1978, p. 289).
E prossegue, em outra obra: “A Igreja é bela. Por isso o Verbo de Deus lhe diz: ‘És toda bela, minha amiga, e em ti não há motivos de censura’ (Ct 4,7), porque a culpa foi cancelada... Por isso o Senhor Jesus - levado pelo desejo de um amor tão grande, da beleza das suas vestes e da sua graça, porque agora naqueles que foram purificados já não há qualquer mancha de culpa - diz à Igreja: ‘coloca-me como selo no teu coração, como selo no teu braço’ (Ct 8,6), ou seja: és bela, minha alma, és toda bela, nada te falta! ‘Coloca-me como selo no teu coração’, para que através dele a tua fé resplandeça na plenitude do sacramento. Resplandeçam também as tuas obras e mostrem a imagem de Deus, à semelhança do qual foste criada” (Os mistérios, n. 49.41: Obras dogmáticas, III, Milão-Roma, 1982, pp. 156-157).

77. Felicidade dos que esperam no Senhor: Sl 145(146),1-10
02 de julho de 2003

1. O Salmo 145, que acabamos de escutar, é um “aleluia”, o primeiro dos cinco, que encerram toda a coleção do Saltério. Já a tradição hebraica utilizava este hino como cântico de louvor para a manhã: ele tem o seu vértice na proclamação da soberania de Deus sobre a história humana. Com efeito, no final do Salmo declara-se que “o Senhor reinará para sempre” (v. 10).
Daqui segue uma verdade consoladora: não estamos abandonados a nós mesmos, as vicissitudes dos nossos dias não são dominadas pelo caos ou pelo acaso, os acontecimentos não representam uma mera sucessão de atos desprovidos de qualquer sentido e meta. É a partir desta convicção que se desenvolve uma verdadeira e própria profissão de fé em Deus, celebrado com uma espécie de ladainha, em que se proclamam os atributos de amor e de bondade que lhe são próprios (vv. 6-9).

2. Deus é Criador do céu e da terra, é guarda fiel do pacto que o liga ao seu povo, é Aquele que age com justiça em relação aos oprimidos, dá o pão que sustenta os famintos e liberta os prisioneiros. É Ele que abre os olhos aos cegos, ergue quem caiu, ama os justos, protege o estrangeiro e ajuda o órfão e a viúva. É Ele que transforma o caminho dos ímpios e reina soberano sobre todos os seres e em todas as épocas.
Trata-se de doze afirmações teológicas que, com o seu número perfeito, querem exprimir a plenitude e a perfeição da ação divina. O Senhor não é um soberano distante das suas criaturas, mas faz parte da sua história, como Aquele que fomenta a justiça, pondo-se do lado dos últimos, das vítimas, dos oprimidos e dos infelizes.

3. O homem encontra-se, assim, diante de uma opção radical, entre duas possibilidades opostas: por um lado, há a tentação de “confiar nos poderosos” (v. 3), adotando os seus critérios inspirados no mal, no egoísmo e no orgulho. Na realidade, este é um caminho ameaçador e traiçoeiro, é “uma senda tortuosa e uma via oblíqua” (cfPr 2,15), que tem como meta o desespero.
Com efeito, o salmista recorda-nos que o homem é um ser frágil e mortal, como diz o próprio vocábulo ‘adam que, em hebraico, remete à terra, à matéria e ao pó. O homem - repete com frequência a Bíblia - é semelhante a um edifício que se desfaz (cfEcl 12,1-7); a uma teia de aranha que o vento pode despedaçar (cf 8,14); a um fio de relva, verdejante na aurora e seco no crepúsculo (cfSl 89,5-6; 102,15-16). Quando a morte se apresenta a ele, todos os seus projetos se dissipam e ele volta a ser pó: “Ao faltar-lhe o respiro ele volta para a terra de onde saiu; nesse dia seus planos perecem” (Sl 145,4).

4. Porém, há também outra possibilidade diante do homem, exaltada pelo salmista com uma bem-aventurança: “É feliz todo homem que busca seu auxílio no Deus de Jacó, e que põe no Senhor a esperança” (v. 5). Este é o caminho da confiança no Deus eterno e fiel. O amen, que é a palavra hebraica da fé, significa precisamente um fundamentar-se na solidez inabalável do Senhor, na sua eternidade e no seu poder infinito. Mas significa, sobretudo, compartilhar as suas opções, realçadas pela profissão de fé e de louvor, como antes descrevemos. É necessário viver na adesão à vontade divina, oferecer o pão aos famintos, visitar os prisioneiros, ajudar e confortar os doentes, defender e acolher os estrangeiros, dedicar-se aos pobres e aos miseráveis. A nível concreto, é o próprio espírito das bem-aventuranças; é aderir à proposta de amor que nos salva já nesta vida e, além disso, será o objeto do nosso exame no juízo final, que selará a história. Então, seremos julgados a partir da opção de servir Cristo no faminto, no sedento, no forasteiro, na pessoa nua, no enfermo e no prisioneiro. “Todas as vezes que fizestes isto a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40): então, é isto que o Senhor dirá.

5. Concluímos a nossa meditação do Salmo 145, com um ponto de reflexão, que nos é oferecido pela tradição cristã.
Quando Orígenes, o grande escritor do século III, chegou ao v. 7 deste Salmo, que diz: “Ele dá alimento aos famintos, é o Senhor quem liberta os cativos”, viu nisto uma referência implícita à Eucaristia: “Temos fome de Cristo, e é Ele mesmo que nos dará o pão do céu: ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’. Aqueles que falam assim, são os famintos; quem sente necessidade do pão, é o faminto”. E esta fome é plenamente saciada pelo sacramento eucarístico, em que o homem se nutre do Corpo e do Sangue de Cristo (cf. Orígenes-Jerônimo, 74 omelie sul Libro dei Salmi, Milão, 1993, pp. 526-527).

"O Senhor faz erguer-se o caído" (Sl 145,8)
(Cristo e a pecadora - Imagem do filme "A Paixão de Cristo" de 2004)

Fonte: Santa Sé (28 de maio, 18 de junho e 02 de julho de 2003).

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