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quinta-feira, 1 de julho de 2021

Catequeses sobre os Salmos (23): Laudes do domingo da IV semana

Iniciando a IV e última semana do Saltério na série de Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos das Laudes, propomos hoje suas reflexões sobre os textos do domingo da IV semana, proferidas nos dias 12 de fevereiro (Sl 117), 19 de fevereiro (Dn 3,52-57) e 26 de fevereiro de 2003 (Sl 150).

66. Canto de alegria e de vitória: Sl 117(118),1-29
12 de fevereiro de 2003

1. Em todas as festas mais significativas e alegres do antigo Judaísmo, sobretudo na celebração da Páscoa, cantava-se a sequência dos Salmos que vai do 112 ao 117. Esta série de hinos de louvor e de agradecimento a Deus era chamada o Hallel egípcio”, porque num deles, o Salmo 113A, era recordado de forma poética e quase visível o êxodo de Israel da terra da opressão, o Egito faraônico, e o maravilhoso dom da aliança divina. Pois bem, o último Salmo, que sela este Hallel egípcio”, é precisamente o Salmo 117, agora proclamado e por nós meditado num comentário precedente (cf. Catequese n. 24).

2. Este cântico revela claramente um uso litúrgico no interior do templo de Jerusalém. De fato, no seu enredo parece desencadear-se uma procissão, que começa nas “tendas dos fiéis” (v. 15), isto é, na casa dos fiéis. Eles exaltam a proteção da mão divina, capaz de proteger quem é reto e confiante também quando irrompem inimigos cruéis. A imagem usada pelo salmista é expressiva: “como um enxame de abelhas me atacaram, como um fogo de espinhos me queimaram, mas em nome do Senhor os derrotei.” (v. 12).
Diante deste perigo evitado, o povo de Deus irrompe com “clamores de alegria e de vitória” (v. 15) em honra da “mão direita do Senhor” que “fez maravilhas” (v. 16). Por conseguinte, há a consciência de nunca estar sós, no poder da tempestade desenfreada pelos malvados. Na verdade, a última palavra é sempre a de Deus que, mesmo quando permite a prova do seu fiel, não o entrega à morte (v. 18).

3. Nesta altura, parece que a procissão alcança a meta recordada pelo salmista através da imagem das “portas da justiça” (v. 19), isto é, da porta santa do templo de Sião. A procissão acompanha o herói ao qual Deus concedeu a vitória. Ele pede que lhe sejam abertas as portas, para poder “dar graças ao Senhor” (v. 19). Com ele “os justos entrarão” (v. 20). Para exprimir a dura provação que superou e a glorificação que dela derivou, ele compara-se a uma “pedra que os pedreiros rejeitaram” que depois “tornou-se pedra angular” (v. 22). Cristo assumirá precisamente esta imagem e este versículo no final da parábola dos vinhateiros homicidas, para anunciar a sua Paixão e a sua glorificação (cf. Mt 21,42).

"A pedra que os pedreiros rejeitaram
tornou-se agora a pedra angular" (Sl 117,22)

4. Ao aplicar o Salmo a si, Cristo abre o caminho para a interpretação cristã deste hino de confiança e de gratidão ao Senhor pelo seu hesed, ou seja, pela sua fidelidade amorosa, que ressoa em todo o salmo (vv. 1-4.29).
Os símbolos adotados pelos Padres da Igreja são dois. Antes de mais, o de “porta da justiça”, que São Clemente Romano na sua Carta aos Coríntios comentava da seguinte forma: “São muitas as portas abertas, mas a da justiça está em Cristo. Bem-aventurados são todos os que por ela entram e orientam o seu caminho na santidade e na justiça, fazendo tudo tranquilamente” (48, 4: I Padri Apostolici, Roma, 1976, p. 81).

5. Outro símbolo, juntamente com o precedente, é precisamente o da pedra. Agora, nos deixaremos guiar, na nossa meditação, por Santo Ambrósio na sua Exposição do Evangelho segundo Lucas. Ao comentar a profissão de fé de Pedro em Cesareia de Filipe, ele recorda que “Cristo é a pedra” e que “também ao seu discípulo, Cristo não recusou este bonito nome, de forma que também ele seja Pedro, para que tenha a pedra firme da perseverança, a firmeza da fé”.
Ambrósio introduz, então, a exortação: “Esforça-te por ser, também tu, uma pedra. Mas para isso, não procures a pedra fora de ti, mas dentro de ti. A tua pedra são as tuas ações, a tua pedra é o teu pensamento. Sobre esta pedra é edificada a tua casa, para que não seja flagelada por tempestade alguma dos espíritos do mal. Se fores uma pedra, estarás dentro da Igreja, porque a Igreja está acima da pedra. Se estiveres dentro da Igreja, as portas do inferno não prevalecerão contra ti” (VI, 97-99: Opere esegetiche IX/II, Milão-Roma, 1978, Saemo 12, p. 85).

67. Louvor das criaturas ao Senhor: Dn 3,52-57
19 de fevereiro de 2003

1. “Os três jovens então não tiveram senão uma só voz para louvar, glorificar e bendizer a Deus, na fornalha” (Dn 3,51). Esta frase introduz o cântico solene que agora acabamos de ouvir num seu fragmento fundamental (cf. Catequese n. 25). Ele encontra-se no Livro de Daniel, na parte que chegou até nós só em língua grega, e é entoado por testemunhas corajosas da fé, que não quiseram ajoelhar-se para adorar a estátua do rei e preferiram enfrentar uma morte trágica, o martírio na fornalha ardente.
São três jovens hebreus, situados pelo autor sagrado no contexto histórico do reino de Nabuconodosor, o terrível soberano da Babilônia que aniquilou a cidade santa de Jerusalém em 586 a. C. e deportou os israelitas “para as margens dos rios da Babilônia” (cf. Sl 136). Mesmo no perigo extremo, quando as chamas já atingem os seus corpos, eles encontram a força para “louvar, glorificar e bendizer a Deus” com a certeza de que o Senhor da criação e da história não os abandonará à morte e ao nada.

2. O autor bíblico, que escreveu alguns séculos mais tarde, recorda este heroico acontecimento para estimular os seus contemporâneos a manterem alto o estandarte da fé durante as perseguições dos reis sírio-helênicos do século II a. C.. É precisamente naquela época que se regista a corajosa reação dos Macabeus, combatentes pela liberdade da fé e da tradição hebraica.
O cântico, tradicionalmente chamado “dos três jovens”, assemelha-se a uma chama que ilumina a obscuridade do tempo da opressão e da perseguição, um tempo que se repetiu muitas vezes na história de Israel e na própria história do Cristianismo. E nós sabemos que o perseguidor nem sempre assume o rosto violento e macabro do opressor, mas com frequência apraz-se em isolar o justo, com o engano e a ironia, perguntando-lhe sarcasticamente: “Onde está o teu Deus?” (Sl 41,4.11).

3. No louvor que os três jovens elevam, do crisol da sua prova, ao Senhor Onipotente, estão incluídas todas as criaturas. Eles tecem uma espécie de tapeçaria multicolor onde brilham os astros, passam as estações, se movem os animais, se aproximam os anjos e, sobretudo, onde cantam os “servos do Senhor”, os “piedosos” e os “humildes de coração” (cf. Dn 3,85.87).
O trecho que há pouco foi proclamado precede esta magnífica recordação de todas as criaturas. Constitui a primeira parte do cântico que, por sua vez, recorda a presença gloriosa do Senhor, transcendente mas próxima. Sim, porque Deus está no céu, onde “penetra com o olhar os abismos” (Dn 3,35), mas também se encontra “no templo santo e glorioso” de Sião (v. 53). Ele está sentado no “trono de poder vitorioso” (v. 54), eterno e infinito, mas é também aquele que está “sentado sobre os querubins” (v. 55), na arca da aliança colocada no Santo dos Santos do Templo de Jerusalém.

4. Um Deus acima de nós, capaz de nos salvar com o seu poder; mas também um Deus próximo do seu povo, no meio do qual Ele quis habitar no seu “templo santo e glorioso”, manifestando assim o seu amor. Um amor que Ele revelará em plenitude fazendo “habitar entre nós” o seu Filho Jesus Cristo “cheio de graça e de verdade” (cf. Jo 1,14). Ele revelará em plenitude o seu amor enviando-nos o Filho para partilhar em tudo, exceto o pecado, a nossa condição marcada pelas provações, opressões, solidão e morte.
O louvor dos três jovens ao Deus Salvador continua de várias formas na Igreja. Por exemplo, São Clemente Romano, no final da sua Carta aos Coríntios, insere uma longa oração de louvor e confiança, completamente cheia de reminiscências bíblicas e na qual ressoa a antiga Liturgia romana. É uma oração de gratidão ao Senhor que, não obstante o aparente triunfo do mal, leva a história a bom termo.

5. Eis um trecho dessa oração:
“Tu abriste os olhos do nosso coração (cf. Ef 1,18) para que te conhecêssemos a ti, o Único (cf. Jo 17,3), Altíssimo no mais alto dos céus, o Santo que repousa entre os santos, que humilhas a violência dos soberbos (cf. Is 13,11), que desfazes os desígnios dos povos (cf. Sl 32,10), que exaltas os humildes e abates os soberbos (cf.  5,11).
Tu que enriqueces e empobreces, que matas e dás a vida (cf. Dt 32,39), o único benfeitor dos espíritos e Deus de todos os homens, que perscrutas os abismos (cf. Dn 3,55), que observas as obras humanas, que socorres quantos se encontram em perigo e salvas os dispersos (cf. Jt 9,11), criador e guarda de todos os espíritos, que multiplicas os povos sobre a terra e que, entre todos, escolheste os que te amam por meio de Jesus Cristo, o teu Filho muito amado, mediante o qual nos instruístes, nos santificastes e nos honrastes” (Clemente Romano, Carta aos Coríntios, 59, 3: Os Padres apostólicos, Roma, 1976, pp. 88-89).

68. Louvai o Senhor: Sl 150,1-5
26 de fevereiro de 2003

1. Ressoa pela segunda vez na Liturgia das Laudes o Salmo 150, que acabamos de proclamar: um hino de festa, um “aleluia” ritmado pela música (cf. Catequese n. 26). Ele é o selo ideal dentro do Saltério, o livro do louvor, do cântico, da Liturgia de Israel.
O texto é de uma admirável simplicidade e transparência. Devemos apenas deixar-nos atrair pelo insistente apelo a louvar o Senhor: “Louvai o Senhor... louvai-o... louvai-o!”. Na abertura, Deus é apresentado sob dois aspectos fundamentais do seu mistério. Ele é, sem dúvida transcendente, misterioso, distinto do nosso horizonte: a sua habitação real é o “santuário” celeste, o “alto céu de seu poder”, semelhante a uma fortaleza inacessível ao homem. Contudo, Ele está próximo de nós: está presente no “santuário” de Sião e age na história através dos seus “feitos grandiosos” que revelam e tornam experimentável a “sua grandeza majestosa” (vv. 1-2).

2. Por conseguinte, entre a terra e o céu estabelece-se como que um canal de comunicação em que se encontram a ação do Senhor e o cântico de louvor dos fiéis. A Liturgia une os dois santuários, o templo terrestre e o céu infinito, Deus e o homem, o tempo e a eternidade.
Durante a oração nós realizamos uma espécie de subida para a luz divina e, ao mesmo tempo, experimentamos uma descida de Deus que se adapta ao nosso limite para nos ouvir e nos falar, para se encontrar conosco e nos salvar. O salmista estimula-nos imediatamente a um subsídio a que devemos recorrer durante este encontro de oração: o recurso aos instrumentos musicais da orquestra do templo de Jerusalém, como a trombeta, a harpa, a cítara, as cordas, as flautas e os címbalos. Também o movimento do cortejo fazia parte do ritual hierosolimitano (cf. Sl 117,27). O mesmo apelo ressoa no Salmo 46,8: “Cantai hinos com toda a arte!”.

3. Portanto, é necessário descobrir e viver constantemente a beleza da oração e da Liturgia. É preciso pedir a Deus não só com fórmulas teologicamente exatas, mas também de maneira bonita e digna.
A este propósito, a comunidade cristã deve fazer um exame de consciência para que obter cada vez mais, na Liturgia, a beleza da música e do cântico. É necessário purificar o culto de dispersões de estilo, de formas descuidadas de expressão, de músicas e textos desleixados e pouco conformes com a grandeza do ato que se celebra.
A este propósito, é significativo o convite da Carta aos Efésios a evitar intemperanças e grosserias para deixar espaço à pureza do hino litúrgico: “Não vos embriagueis com vinho, que leva à luxúria, mas enchei-vos do Espírito. Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vossos corações, dando sempre graças, por tudo, a Deus Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5,18-20).

4. O salmista conclui convidando “tudo o que vive e que respira” ao louvor (v.  5), literalmente “cada sopro”, “cada respiro”, expressão que em hebraico designa “cada ser que respira”, sobretudo “cada homem vivo” (cf. Dt 20,16; Js 10,40; 11,11.14). Portanto, está envolvida no louvor divino, antes de tudo, a criatura humana com a sua voz e o seu coração. Com ela, são idealmente interpelados todos os seres vivos, todas as criaturas que respiram (cf. Gn 7,22), para que elevem o seu hino de gratidão ao Criador pelo dom da existência.
São Francisco coloca-se na continuidade deste convite universal com o seu sugestivo “Cântico do Irmão Sol”, com o qual convida a louvar e bendizer o Senhor por todas as criaturas, reflexo da sua beleza e da sua bondade (cf. Fontes Franciscanas, 263).

5. Neste cântico devem participar de modo especial todos os fiéis, como sugere a Carta aos Colossenses: “A palavra de Cristo permaneça em vós abundantemente em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando sob a ação da graça, louvores a Deus” (Cl 3,16).
A este propósito, nas suas Exposições sobre os Salmos, Santo Agostinho vê simbolizados nos instrumentos musicais os santos que louvam a Deus: “Vós, santos, sois a trombeta, o saltério, a cítara, o tambor, o coro, as cordas, o órgão e os címbalos do júbilo que produzem lindos sons, isto é, que tocam harmoniosamente. Vós sois todas estas coisas. Não pensemos, ao ouvir o salmo, em coisas de pouco valor, em coisas transitórias, nem em instrumentos teatrais”. Na realidade, é voz de louvor a Deus “qualquer espírito que louva o Senhor” (Exposições sobre os Salmos, IV, Roma, 1977, pp. 934-935).
Por conseguinte, a música mais nobre é a que se eleva dos nossos corações. É precisamente esta harmonia que Deus espera ouvir nas nossas Liturgias.

"Louve a Deus tudo o que vive e que respira, tudo cante os louvores do Senhor" (Sl 150,5)
(Cristo triunfante ladeado por anjos músicos - Bernardino Lanino)

Fonte: Santa Sé (12 de fevereiro, 19 de fevereiro e 26 de fevereiro de 2003).

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