Páginas

terça-feira, 4 de maio de 2021

Leitura litúrgica dos Livros dos Reis (1)

“Dá, pois, a teu servo um coração que escuta para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal” (1Rs 3,9)

Após analisar os dois Livros de Samuel (1Sm e 2Sm) em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica da Sagrada Escritura, concluiremos nosso percurso pela história deuteronomista com os dois Livros dos Reis (1Rs e 2Rs), que na Bíblia hebraica formam um só livro, razão pela qual os estudaremos em conjunto.

1. Breve introdução aos Livros dos Reis

Diferentemente dos Livros de Samuel, que cobrem um período relativamente curto de tempo, os Livros dos Reis abrangem uma história de 400 anos, desde a morte de Davi (970 a. C.) até o exílio da Babilônia (587 a. C.). Esta história está dividida nos livros em três períodos bem definidos:
a) História de Salomão: 1Rs 1–11;
b) História dos reinos divididos (Israel e Judá), da morte de Salomão (931 a. C.) até a queda do reino de Israel (722 a. C.): 1Rs 12–2Rs 17. Dentro desta segunda parte situam-se os ciclos dos profetas Elias (1Rs 17–2Rs 1) e Eliseu (2Rs 2–13);
c) História do reino de Judá de 722 a. C. até sua queda em 587 a. C.: 2Rs 18–25.

O rei Davi passa o cetro ao seu filho Salomão
(Cornelis de Vos - séc. XVII)

Boa parte dos livros é integrada pela descrição dos reis, tomadas dos anais dos reis de Judá e Israel. Esta descrição é composta por três elementos:
- introdução: nome, filiação, duração do reinado;
- julgamento: pode ser negativo (“Fez mal aos olhos do Senhor...”), parcialmente positivo ou totalmente positivo (“Fez o que é bom aos olhos do Senhor...”);
- conclusão: morte e sucessor.

O juízo negativo é aplicado a todos os reis de Israel, uma vez que o reino do norte é marcado pela idolatria, e a alguns reis de Judá; o juízo parcialmente positivo é aplicado a seis reis de Judá; enquanto que o juízo totalmente positivo é aplicado a apenas dois reis de Judá: Ezequias e Josias.

Como vimos em nosso estudo sobre o Livro do Deuteronômio, a literatura deuteronomista foi sistematizada durante as reformas religiosas empreendidas por esses dois reis. Recordemos a “descoberta do livro da Lei” em 2Rs 22. Josias, com efeito, faz a síntese dessa literatura: esta afirma que não houve jamais um rei “que se voltasse como ele ao Senhor, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com todas as suas forças, seguindo em tudo a lei de Moisés...” (2Rs 23,25), fazendo eco ao Shemá, Israel de Dt 6,4-6.

Como nos Livros de Samuel, também aqui é preciso destacar três personagens:

Salomão: modelo de rei sábio (1Rs 3–5), construtor do Templo (5–9) e comerciante (9–10). Porém, apresenta-se também seu pecado (11), a idolatria, que tem como consequência a divisão do reino após sua morte: Israel (norte) e Judá (sul).

Elias: é o grande profeta, cuja influência estende-se até o Novo Testamento. Em seu ciclo destacam-se: os prodígios, o combate ao culto de Baal, a condenação ao rei Acab e sua esposa Jezabel, o encontro com Deus no Horeb e, por fim, sua “assunção ao céu”.

Eliseu: apresentado em 1Rs 19 como discípulo de Elias, torna-se seu sucessor em 2Rs 2. É o profeta taumaturgo por excelência, tendo operado diversos milagres. Sua atuação política é também digna de nota, exortando o povo na resistência contra os inimigos.

Ícone dos profetas Elias e Eliseu

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

2. Leitura litúrgica dos Livros dos Reis: Composição harmônica

Como temos feito em todas as postagens sobre a leitura litúrgica da Palavra de Deus, começaremos pelas celebrações em que a presença dos Livros dos Reis segue o critério da composição harmônica, isto é, da sintonia com o tempo ou a festa litúrgica [2].

a) Celebração Eucarística

Guiados pelo ciclo do Ano Litúrgico, encontramos primeiramente duas leituras dos nossos livros nos dias de semana do Tempo da Quaresma. Nestes dias “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento (AT) foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” [3].

Assim, na segunda-feira da III semana da Quaresma lemos a perícope de 2Rs 5,1-15a [4], o episódio da cura de Naamã, o sírio, pelo profeta Eliseu, citado por Jesus no Evangelho (Lc 4,24-30), repreendendo o povo de Nazaré por não acolhê-lo, indicando que também os profetas não foram acolhidos em sua pátria, e sim pelos estrangeiros.

Da III à V semanas da Quaresma são propostas também leituras à escolha, que retomam os Evangelhos dos Domingos do ano A, o ciclo batismal, com leituras adequadas [5]. Portanto, dentre as leituras à escolha para a V semana da Quaresma, acompanhando o Evangelho da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45) encontra-se 2Rs 4,18b-21.32-37 [6], o episódio da ressurreição do filho da mulher sunamita pelo profeta Eliseu.

Eliseu ressuscita o filho da sunamita
(Benjamin West - séc. XVIII-XIX)

Passando aos domingos do Tempo Comum, nos quais as leituras do AT foram escolhidas “em relação às perícopes evangélicas” [7], temos dez ocorrências dos Livros dos Reis, sobretudo dos ciclos de Elias e Eliseu: três no ano A, três no ano B e quatro no ano C.

- XIII Domingo do Tempo Comum do ano A: 2Rs 4,8-11.14-16a [8], a acolhida de Eliseu pela sunamita, que ilustra a máxima de Jesus no Evangelho (Mt 10,37-42): “Quem recebe um profeta, receberá a recompensa de profeta” (v. 41);

- XVII Domingo do Tempo Comum do ano A: 1Rs 3,5.7-12 [9], o sonho de Salomão, no qual este pede a Deus o dom da sabedoria, que, à luz do Evangelho (Mt 13,44-52), é o grande tesouro ou a pérola a buscar;

- XIX Domingo do Tempo Comum do ano A: 1Rs 19,9a.11-13a [10], a teofania no Horeb diante de Elias, que prefigura o Cristo que anda sobre as águas e acalma a tempestade no Evangelho (Mt 14,22-33);

- XVII Domingo do Tempo Comum do ano B: 2Rs 4,42-44 [11], a multiplicação dos pães realizada por Eliseu, que prefigura aquela do Evangelho (Jo 6,1-15);

- XIX Domingo do Tempo Comum do ano B: 1Rs 19,4-8 [12], o episódio do pão oferecido por um anjo a Elias, que o fortalece na caminhada para o Horeb. A perícope aponta para a autoafirmação de Jesus no Evangelho (Jo 6,41-51): “Eu sou o pão da vida” (v. 48);

- XXXII Domingo do Tempo Comum do ano B: 1Rs 17,10-16 [13], o milagre de Elias em favor da viúva de Sarepta, lido em conjunto com a oferta da viúva no Templo (Mc 12,38-44);

- IX Domingo do Tempo Comum do ano C: 1Rs 8,41-43 [14], trecho da oração de Salomão em favor dos estrangeiros que vierem rezar no Templo. O tema é retomado no Evangelho com a cura do servo do oficial romano (Lc 7,1-10);

- X Domingo do Tempo Comum do ano C: 1Rs 17,17-24 [15], a ressurreição do filho da viúva de Sarepta por Elias, excelente paralelo à ressurreição do filho da viúva de Naim por Jesus (Lc 7,11-17);

- XIII Domingo do Tempo Comum do ano C: 1Rs 19,16b.19-21 [16], o chamado de Eliseu como discípulo de Elias. Esta perícope faz um paralelo antitético com o Evangelho (Lc 9,51-62): enquanto Eliseu vai despedir-se de seus pais, Jesus exige um seguimento mais radical;

- XXVIII Domingo do Tempo Comum do ano C: 2Rs 5,14-17 [17], texto que narra como o sírio Naamã, curado da lepra, voltou para agradecer o profeta Eliseu, assim como um samaritano, dentre os dez leprosos curados, volta para agradecer a Jesus (Lc 17,11-19).

A cura de Naamã, o sírio
(Vitral da Catedral de Gloucester)

Concluído nosso percurso sobre o ciclo ordinário do Ano Litúrgico, passamos aos Comuns dos Santos, formulários com várias opções de leituras que podem ser proferidas ad libitum (à escolha) nas celebrações das várias "categorias" de santos.

Primeiramente, temos uma leitura no Comum da dedicação de igreja, formulário utilizado nos aniversários da dedicação da própria igreja e da dedicação da Catedral da diocese e na Festa da Dedicação da Basílica do Latrão, Catedral de Roma (09 de novembro). O texto proposto aqui é 1Rs 8,22-23.27-30 [18], a entronização da arca no Templo de Jerusalém, seguida da manifestação do próprio Senhor na forma de nuvem.

Também temos uma ocorrência ad libitum do escrito no Comum dos doutores da Igreja. Trata-se de 1Rs 3,11-14 [19], a confirmação de Deus ao pedido de Salomão, prometendo-lhe o dom da sabedoria.

Por fim, encontramos os nossos livros no Comum dos Santos: para religiosos. Temos aqui duas perícopes do mesmo capítulo: 1Rs 19,4-9.11-15a e 1Rs 19,16b.19-21 [20], o encontro de Elias com Deus no Horeb e a vocação de Eliseu.

Seguindo nosso percurso com as Missas para diversas necessidades, encontramos novamente os dois textos de 1Rs 19 indicados acima na Missa pelos religiosos [21].

Em seguida há cinco formulários que compartilham as mesmas leituras: as Missas pela pátria, pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e pelo progresso dos povos. Para estas celebrações propõe-se ad libitum o texto de 1Rs 3,11-14 [22], no qual Deus promete sabedoria ao rei Salomão para bem governar o seu povo.

Para a Missa pelos doentes (formulário que também pode ser usado quando se administra o sacramento da Unção dos Enfermos na Missa), propõe-se 2Rs 20,1-6 [23], perícope na qual o rei Ezequias suplica ao Senhor o dom da cura de sua enfermidade.

Por fim, na Missa em ação de graças sugere-se a leitura de 1Rs 8,55-61 [24], a conclusão da oração de Salomão em ação de graças a Deus por ocasião da conclusão do Templo.

O último bloco de Missas em que ocorrem textos dos Livros dos Reis é o das Missas votivas. Primeiramente na Missa votiva da Santíssima Eucaristia propõe-se como leitura ad libitum 1Rs 19,4-8 [25], o episódio do pão que fortalece o profeta Elias, prefiguração da Eucaristia como “cibus viatorum”, pão dos viajantes. A mesma leitura aparece no Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa [26].

Vitral de Elias - Catedral Anglicana de Ely (Inglaterra)

Na Missa votiva de Maria, templo do Senhor, por sua vez, consta como 1ª opção de leitura 1Rs 8,1.3-7.9-11 [27], a transladação da arca para o Templo de Jerusalém, seguida da manifestação de Deus em uma nuvem. Este acontecimento prefigura a Encarnação do Verbo, quando “o poder do Altíssimo” cobre Maria “com sua sombra” (Lc 1,35).

Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre presença dos Livros dos Reis na Liturgia. Na próxima parte analisaremos sua leitura em composição harmônica nos sacramentos, sacramentais e na Liturgia das Horas, além de sua leitura semicontínua.

[A segunda parte desta pesquisa será publicada na próxima terça-feira, 11 de maio]

Notas:
[1] LAMADRID, Antonio González. Os Livros dos Reis: A monarquia. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 145-186 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3b).
KNAUF, Ernst Axel. 1-2 Reis. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 369-380.
[2] cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 66: ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 97.
[4] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[5] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[6] LECIONÁRIO II, p. x.
[7] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
[8] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] ibid., p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] ibid., p. x.
[13] ibid., p. x.
[14] ibid., p. x.
[15] ibid., p. x.
[16] ibid., p. x.
[17] ibid., p. x.
[18] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[19] ibid., p. x.
[20] ibid., p. x.
[21] ibid., p. x.
[22] ibid., p. x.
[23] ibid., p. x.
[24] ibid., p. x.
[25] ibid., p. x.
[26] SAGRADA COMUNHÃO e o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 69.
[27] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 97.

Nenhum comentário:

Postar um comentário