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quinta-feira, 27 de maio de 2021

Catequeses sobre os Salmos (18): Laudes da terça-feira da III semana

Prosseguindo com a série de Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje os textos das Laudes da terça-feira da III semana do Saltério, sobre os quais o Pontífice refletiu nos dias 25 de setembro (Sl 84), 02 de outubro (Is 26,1-4.7-9.12) e 09 de outubro de 2002 (Sl 66).

51. A nossa salvação está próxima: Sl 84(85),2-14
25 de setembro de 2002

1. O Salmo 84, que agora proclamamos, é um cântico jubiloso e repleto de esperança no futuro da salvação. Ele reflete o momento exaltante da volta de Israel do exílio na Babilônia para a terra dos antepassados. A vida nacional recomeça naquele querido lar, que tinha sido apagado e destruído pela conquista de Jerusalém por parte do exército do rei Nabucodonosor, em 586 a.C..
De fato, no original hebraico do Salmo ouve-se ressoar repetidamente o verbo shûb, que indica a vinda dos deportados, mas significa também “vinda” espiritual, isto é, “conversão”. Por conseguinte, o renascimento não se refere apenas à nação, mas também às comunidades dos fiéis, que tinham vivido o exílio como uma punição dos pecados cometidos e que viam agora a repatriação e a nova liberdade como uma bênção divina, em virtude da conversão alcançada.

2. O Salmo pode ser acompanhado no seu desenvolvimento, segundo duas etapas fundamentais. A primeira, marcada pelo tema da “vinda”, com todos os valores que mencionamos.
Celebra-se antes de tudo a vinda física de Israel: “Senhor... libertastes os cativos de Jacó” (v. 2); “Renovai-nos, nosso Deus e Salvador... Não vireis restituir a nossa vida...?” (vv. 5.7). Este é um precioso dom de Deus, que se preocupa em libertar os seus filhos da opressão e se empenha na sua prosperidade. Com efeito, Ele “ama tudo o que existe... perdoa a todos, porque todos são dele, o Senhor que ama a vida” (cfSb 11,24.26).
Mas, paralelamente a esta “vinda”, que na prática unifica os dispersos, há outra “vinda”, mais interior e espiritual. O salmista reserva-lhe um amplo espaço, atribuindo-lhe um relevo particular, que é válido não só para o antigo Israel mas para os fiéis de todos os tempos.

3. Nesta “vinda” o Senhor age eficazmente, revelando o seu amor ao perdoar a iniquidade do seu povo, ao eliminar todos os seus pecados, ao abandonar todo o seu desdém e ao pôr fim à sua ira (vv. 3-4).
Precisamente a libertação do mal, o perdão das culpas e a purificação dos pecados criam um novo povo de Deus. Isto é expresso através de uma invocação, que também entrou na Liturgia cristã: “Mostrai-nos, ó Senhor, vossa bondade, concedei-nos também vossa salvação!” (v. 8).
Mas a esta “vinda” de Deus que perdoa deve corresponder a outra “vinda”, isto é, a conversão do homem que se arrepende. De fato, o Salmo declara que a paz e a salvação são oferecidas aos que “voltam ao Senhor seu coração” (v. 9). Quem percorre com decisão os caminhos da santidade recebe os dons da alegria, da liberdade e da paz.
Sabemos que, com frequência, as palavras bíblicas que se referem ao pecado recordam um enganar-se no caminho, um falhar a meta, um desviar-se da via reta. A conversão é, precisamente, um “voltar” para o caminho linear, que leva para a casa do Pai, que nos espera para nos abraçar, perdoar e nos fazer felizes (cfLc 15,11-32).

"A verdade e o amor se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão;
da terra brotará a fidelidade e a justiça olhará dos altos céus" (Sl 84,11-12)
(Raiz de Jessé - Saltério de Ingeborg, séc. XII)

4. Assim, chegamos à segunda parte do Salmo (vv. 10-14), tão querida à tradição cristã. Nela é descrito um mundo novo, em que o amor de Deus e a sua fidelidade, como se fossem pessoas, se abraçam; de modo semelhante, também a justiça e a paz se beijam, quando se encontram. A verdade germina como numa renovada primavera; e a justiça, que para a Bíblia é também salvação e santidade, desce do céu para começar o seu caminho no meio da humanidade.
Todas as virtudes, primeiro expulsas da terra devido ao pecado, entram agora de novo na história e, cruzando-se, desenham o mapa de um mundo pacífico. Verdade, amor, justiça e paz tornam-se como que os quatro pontos cardeais desta geografia do espírito. Também Isaías canta: “Destilai, ó céus, lá das alturas, o orvalho, e as nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e produza o fruto da salvação; ao mesmo tempo faça germinar a justiça! Eu sou o Senhor, que crio tudo isto” (Is 45,8).

5. As palavras do salmista, já no II século com Santo Ireneu de Lião, foram interpretadas como anúncio da “geração de Cristo por parte da Virgem” (Adversus haereses, III,5,1). Com efeito, a vinda de Cristo é a fonte da misericórdia, o desabrochar da verdade, o florescer da justiça e o esplendor da paz.
Por isso o Salmo, sobretudo na sua parte final, é lido de novo em chave natalícia pela tradição cristã. Eis como o interpreta Santo Agostinho, num dos seus discursos para o Natal. Deixemos que seja ele a concluir a nossa reflexão. “‘A verdade surgiu da terra’:  Cristo, que disse: ‘Eu sou a verdade’ (Jo 14,6) nasceu da Virgem. ‘E a justiça aproximou-se do céu’: quem crê n’Aquele que nasceu, não se justifica sozinho, mas é justificado por Deus. ‘A verdade surgiu da terra’: porque ‘o Verbo se fez homem’ (Jo 1,14). ‘E a justiça aproximou-se do céu’; porque ‘qualquer graça excelente e qualquer dom perfeito provêm do alto’ (Tg 1,17). ‘A verdade surgiu da terra’, isto é, tomou um corpo de Maria. ‘E a justiça aproximou-se do céu’; porque ‘o homem nada pode receber se não lhe for concedida pelo céu’ (Jo 3,27)” (Discursos, IV/1, Roma, 1984, p. 11).

52. Hino depois da vitória: Is 26,1-4.7-9.12
02 de outubro de 2002

1. No Livro do Profeta Isaías convergem vozes diferentes, distribuídas num amplo arco de tempo e todas colocadas sob o nome e a inspiração desta grandiosa testemunha da Palavra de Deus, que viveu no século VIII a.C..
Dentro deste amplo rolo de profecias, que também Jesus abriu e leu na sinagoga da sua aldeia, Nazaré (cf. Lc 4,17-19), encontra-se uma série de capítulos, que vai do 24 ao 27, geralmente intitulada pelos estudiosos “o grande apocalipse de Isaías”. De fato, encontramos outro, menor, nos capítulos 34-35. Em páginas muitas vezes fervorosas e repletas de símbolos, delineia-se uma poderosa descrição poética do juízo divino acerca da história e exalta-se a expectativa da salvação por parte dos justos.

2. Muitas vezes, como acontecerá no Apocalipse de João, se opõem duas cidades antitéticas entre si: a cidade rebelde, encarnada em alguns centros históricos daquela época, e a cidade santa, onde os fiéis se reúnem.
Pois bem, o cântico que agora ouvimos proclamar, e que é tirado do capítulo 26 de Isaías, é precisamente a celebração jubilosa da cidade da salvação. Ela eleva-se forte e gloriosa, porque foi o próprio Senhor que lançou as suas bases e os muros de defesa, tornando-a habitação segura e tranquila (v. 1). Agora ele abre de par em par as suas portas para receber o povo dos justos (v. 2), que parece repetir as palavras do salmista quando, diante do templo de Sião, exclama: “Abri-me as portas da justiça, desejo entrar para dar graças ao Senhor. Esta é a porta do Senhor; por ela entram apenas os justos” (Sl 117,19-20).

3. Quem entra na cidade da salvação deve ter uma característica fundamental: “Coração bem firme... em vós tem confiança...” (vv. 3-4). É a fé em Deus, uma fé sólida, baseada n’Ele, que é a “nossa eterna fortaleza” (v. 4).
É a confiança, já expressa na raiz originária hebraica da palavra “amen”, sintética profissão de fé no Senhor, que como cantava o rei Davi é “minha força, minha rocha, minha fortaleza, meu abrigo, meu escudo; meu Deus e meu abrigo em quem me refugio, meu escudo, minha defesa e meu castelo” (cf. Sl 17,2-3; 2Sm 22,2-3).
O dom que Deus oferece aos fiéis é a paz (v. 3), o dom messiânico por excelência, síntese de vida na justiça, na liberdade e na alegria da comunhão.

4. É um dom recordado com vigor no versículo final do cântico de Isaías: “Ó Senhor e nosso Deus, dai-nos a paz, pois agistes sempre em tudo o que fizemos!” (v. 12). Este versículo chamou a atenção dos Padres da Igreja: naquela promessa de paz eles viram as palavras de Cristo que ressoaram alguns séculos mais tarde: “Deixo-vos a paz, a Minha paz vos dou” (Jo 14,27).
No seu Comentário ao Evangelho de João, São Cirilo de Alexandria recorda que, ao dar a paz, Jesus oferece o seu próprio Espírito. Por conseguinte, Ele não nos deixa órfãos, mas permanece conosco através do Espírito. E São Cirilo comenta: o profeta “invoca que seja dado o Espírito divino, por meio do qual fomos readmitidos na amizade com Deus Pai, nós, que antes andávamos afastados d’Ele devido ao pecado que reinava em nós”. O comentário torna-se depois oração: “Concedei-nos a paz, ó Senhor. Então admitiremos que tudo possuímos, e nos parecerá que nada falta àquele que recebeu a plenitude de Cristo. De fato, é plenitude de qualquer bem que Deus habite entre nós através do Espírito (cf. Cl 1,19)” (vol. III, Roma, 1994, p. 165).

5. Demos um último olhar ao texto de Isaías. Ele apresenta uma reflexão sobre “o caminho reto” (v. 7) e uma declaração de adesão às justas decisões de Deus (vv. 8-9). A imagem dominante é a do caminho, clássica na Bíblia, como já Oseias, um profeta pouco anterior a Isaías, tinha declarado: “Quem é sábio para compreender estas coisas, inteligente para as conhecer? Porque os caminhos do Senhor são retos, os justos andam por eles, mas os pecadores neles tropeçam” (Os 14,10).
No cântico de Isaías há outra componente, que se revela muito sugestiva também para o uso litúrgico que dele faz a Liturgia das Laudes. Tem-se, com efeito, uma menção do alvorecer, esperado depois de uma noite empenhada na busca de Deus: “Durante a noite a minha alma vos deseja, e meu espírito vos busca desde a aurora” (v. 9).
É precisamente no alvorecer, quando começa o trabalho e a vida quotidiana já vibra nos caminhos da cidade, que o fiel deve empenhar-se de novo a caminhar “trilhando este caminho de justiça... ó Senhor” (v. 8), esperando n’Ele e na sua Palavra, única fonte de paz.
Emergem então dos seus lábios as palavras do salmista, que desde o alvorecer professa a sua fé: “Vós, Senhor, sois o meu Deus, anseio por Vós. A minha alma está sedenta de Vós... O Vosso amor é mais precioso do que a vida” (Sl 62,2.4). Com a alma fortalecida ele pode enfrentar o novo dia.

53. Todos os povos celebrem o Senhor: Sl 66(67),2-8
09 de outubro de 2002

1. Ressoou agora a voz do antigo salmista, que elevou ao Senhor um jubiloso cântico de agradecimento. É um texto breve e fundamental, mas que se expande para um horizonte imenso, até abarcar espiritualmente todos os povos da terra.
Esta abertura universalista reflete provavelmente o espírito profético da época posterior ao exílio na Babilônia, quando se desejava que também os estrangeiros fossem conduzidos por Deus até ao seu monte santo para se sentirem repletos de alegria. Os seus sacrifícios e holocaustos teriam sido agradáveis, porque o templo do Senhor se tornou “casa de oração para todos os povos” (Is 56,7).
Também no nosso Salmo, o 66, o coro universal das nações é convidado a unir-se ao louvor que Israel eleva no templo de Sião. De fato, por duas vezes volta esta antífona: “Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem!” (vv. 4.6).

2. Também os que não pertencem à comunidade escolhida por Deus recebem d’Ele uma vocação: com efeito, são chamados a conhecer o “caminho” revelado a Israel. O “caminho” é o plano divino de salvação, o reino de luz e de paz, em cuja atuação estão incluídos também os pagãos, convidados a ouvir a voz do Senhor (v. 3). O resultado desta escuta obediente é o temor do Senhor nos “confins de toda a terra” (v. 8), expressão que não recorda tanto o receio como, ao contrário, o respeito adorante do mistério transcendente e glorioso de Deus.

3. Na abertura e na parte conclusiva do Salmo é expresso um desejo insistente da bênção divina: “Que Deus nos dê a sua graça e sua bênção, e sua face resplandeça sobre nós... O Senhor e nosso Deus nos abençoa” (vv. 2.7-8).
É fácil ver nestas palavras o eco da famosa bênção sacerdotal ensinada, em nome de Deus, por Moisés a Aarão e aos descendentes da tribo sacerdotal: “O Senhor te abençoe e te proteja! Que Ele faça seu rosto brilhar sobre ti e te conceda Seu favor. Que o Senhor dirija o Seu olhar para ti e te conceda a paz!” (Nm 6,24-26).
Pois bem, segundo o salmista, esta bênção efundida sobre Israel será como uma semente de graça e de salvação a ser lançada à terra do mundo inteiro e da história, pronta para germinar e se tornar uma árvore frondosa.
O pensamento dirige-se também para a promessa feita pelo Senhor a Abraão no dia da sua eleição: “Farei de ti um grande povo, te abençoarei, engrandecerei o teu nome e serás uma fonte de bênção... E todas as famílias da terra serão em ti abençoadas” (Gn 12,2-3).

4. Na tradição bíblica, um dos efeitos comprováveis da bênção divina é o dom da vida, da fecundidade e da fertilidade.
No nosso Salmo é mencionada explicitamente esta realidade concreta, preciosa para a existência: “A terra produziu sua colheita” (v. 7). Esta constatação estimulou os estudiosos a relacionar o Salmo ao rito de agradecimento para uma colheita abundante, sinal do favor divino e testemunho para os outros povos da proximidade do Senhor a Israel.
A mesma frase chamou a atenção dos Padres da Igreja, que do horizonte agrícola passaram para o nível simbólico. Assim, Orígenes aplicou este versículo à Virgem Maria e à Eucaristia, isto é, a Cristo que provém da flor da Virgem e se torna fruto, para poder ser comido. Nesta perspectiva “a terra é Santa Maria, que vem da nossa terra, da nossa semente, desta lama, desta argila, de Adão”. Esta terra deu o seu fruto: o que perdeu no paraíso, o recuperou no Filho. “Esta terra deu o seu fruto: a primeira produziu flor... depois esta flor tornou-se fruto, para que o pudéssemos comer, para que comêssemos a sua carne. Quereis saber quem é este fruto? É o Casto da Virgem, o Senhor da serva, o Deus do homem, o Filho da Mãe, o fruto da terra” (74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, p. 141).

5. Concluímos com as palavras de Santo Agostinho, no seu comentário ao Salmo. Ele identifica o fruto que germinou na terra com a novidade que se produz nos homens graças à vinda de Cristo, uma novidade de conversão e um fruto de louvor a Deus. Com efeito, “a terra estava coberta de espinhos”, explica ele. Mas “aproximou-se a mão daquele que desenraiza, aproximou-se a voz da sua majestade e da sua misericórdia; e a terra começou a louvar. Agora a terra dá o seu fruto”. Certamente não daria fruto, “se antes não tivesse sido regada” pela chuva, “se não tivesse vindo primeiro do alto a misericórdia de Deus”. Mas já assistimos a um fruto maduro na Igreja, graças à pregação dos Apóstolos: “Enviando depois a chuva através das suas nuvens, ou seja, através dos Apóstolos que anunciaram a verdade, ‘a terra deu o seu fruto’ mais abundantemente: e esta messe já encheu o mundo inteiro” (Exposições sobre os Salmos, II, Roma, 1970, p. 551).

"Ó Senhor e nosso Deus, dai-nos a paz!" (Is 26,12)
(Aparição do Ressuscitado aos Apóstolos: "A paz esteja convosco!")

Fonte: Santa Sé (25 de setembro, 02 de outubro e 09 de outubro de 2002).

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