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sábado, 20 de março de 2021

O ícone do Akathistos

O sábado que antecede o V Domingo da Quaresma é conhecido na tradição bizantina como o “Sábado do Akathistos”, uma vez que neste dia se entoa este célebre hino em honra da Mãe de Deus.

O Akathistos (“não sentado” em grego, indicando que deve ser entoado em pé) é uma composição anônima dos séculos V-VI, após os Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451), que proclamaram a maternidade divina de Maria e a dupla natureza de Cristo, divina e humana.

Possui 24 estrofes, mesmo número de letras do alfabeto grego, divididas em duas partes: as primeiras 12 são inspiradas nos Evangelhos da infância do Senhor (Mt 1-2; Lc 1-2), enquanto as 12 últimas cantam a fé da Igreja sobre a Virgem Maria.

As estrofes intercalam-se entre longas e breves. As estrofes longas (ímpares) saúdam a Virgem com 12 invocações tomadas da Escritura e da tradição da Igreja, concluindo com a aclamação: “Ave, Virgem e Esposa!”. As estrofes breves (pares), por sua vez, geralmente são dirigidas a Cristo, na forma de uma antífona seguida da aclamação “Aleluia!”.

São as invocações da Escritura que ilustram o “ícone do Akathistos”, ou dos “Louvores à Mãe de Deus no hino Akathistos”, um ícone de caráter “didático”, que passaremos a apresentar na sequência.

Cumpre notar, porém, que algumas das referências do ícone não se encontram no texto do nosso hino propriamente dito, mas sim no Cânon de São José, o Hinógrafo, que costuma ser entoado em algumas ocasiões junto com o Akathistos.

O ícone:

A moldura do ícone do Akathistos costuma ser formada por pequenos quadros retratando suas 24 estrofes. No centro temos a Virgem Maria, objeto dos louvores do hino, sentada em um trono.

Ícone do Akathistos do séc. XVI

Em algumas versões do ícone ela está com o Menino ao colo, e aponta para Ele com a mão direita (como no ícone da Hodigítria), indicando que todo louvor a ela tem como destinatário na verdade o próprio Cristo.

Em outras versões ela está sentada sozinha no trono e tem a mão levantada, como que recusando os louvores. O Menino, neste caso, está sobre a Virgem, geralmente como o último e mais nobre fruto da “Árvore de Jessé” (Is 11), que os circunda. Jesus, com efeito, é aqui o Emanuel, Deus-conosco (Is 7,14).

Ícone do Akathistos do séc. XVIII
(Note-se a "árvore de Jessé" em volta da Mãe e do Filho)

Em volta da Mãe e do Filho encontramos uma série de personagens do Antigo Testamento com os pergaminhos das profecias messiânicas ou com alguns símbolos que prefiguram atributos de Maria. Trata-se da chamada “leitura tipológica” do Antigo Testamento, muito querida pelos Padres da Igreja, na qual este é lido como “tipo”, isto é, modelo, profecia do Novo.

A relação entre os dois Testamentos é expressa pelos pequenos globos azuis que aparecem nos símbolos veterotestamentários: dentro deste globo ou orbe é possível vislumbrar a silhueta de Maria com o Menino Jesus, indicando que esses símbolos apontam para o mistério da Encarnação.

Apresentaremos os personagens do Antigo Testamento com imagens da iconostase da Catedral da Apresentação de Maria em Hajdúdorog (Hungria), sede da Igreja Católica Húngara. À exceção de Moisés e Jeremias (e de Balaão, que não é representado), todos os demais são retratados com os atributos do ícone.

Começamos nosso percurso pelos personagens à direita do ícone, de cima para baixo (em sentido horário):

1. Profeta Ezequiel com a porta do Templo 

No canto superior direito do ícone encontramos o profeta Ezequiel segurando uma porta. Trata-se da porta oriental do templo de Jerusalém, que permaneceria fechada até a vinda do Senhor: “Esta porta ficará fechada. Não se abrirá e ninguém entrará por ela, porque por ela entrará o Senhor, Deus de Israel” (Ez 44,2).

Esta profecia foi interpretada pela Igreja como alusão ao mistério da virgindade perpétua de Maria: seu ventre abriu-se apenas para acolher o Verbo Encarnado. No Akathistos, a Virgem é celebrada como “porta do mistério” e “porta da salvação”:
Ave, ó porta do augusto mistério! (Estrofe n. 15)
Ave, ó porta de quem quer salvar-se! (Estrofe n. 19) [1].

Ezequiel com a porta do Templo

2. Patriarca Jacó com a escada

Abaixo de Ezequiel temos Jacó, filho de Isaac e neto de Abraão, que segura nas mãos uma escada. Esta é a escada que une o céu à terra, com a qual o Patriarca sonha (Gn 28,10-19).

Maria é invocada como a “escada”, pois foi através dela que o Filho desceu à terra, como canta a 3ª estrofe do hino:
Ave, ó escada sublime por quem Deus nos veio!
Ave, ó ponte que os homens ao céu encaminha! [2].

Jacó com a escada

3. Juiz Gedeão com um velo de lã

No Livro dos Juízes, Gedeão pede a Deus um sinal de que seriam vitoriosos contra os inimigos: ele deixa um velo de lã fora da tenda durante a noite e este é molhado pelo orvalho, enquanto o terreno em volta fica seco; no dia seguinte acontece o oposto: o velo permanece seco e todo o terreno é molhado pelo orvalho (Jz 6,36-40).

A lã que permanece incólume é tradicionalmente interpretada em alusão à virgindade de Maria. Em contrapartida, a lã encharcada de água é interpretada na VI ode do Cânon de José, o Hinógrafo em alusão à intercessão da Mãe, que extingue o fogo da “idolatria”:
De vós, ó Virgem, nasceu o orvalho que apagou as chamas da idolatria;
Por isso nós vos clamamos: Salve, tosão coberto de orvalho, previsto por Gedeão!

Na mesma linha, a estrofe VII do Akathistos canta:
Ave, que o culto do fogo extinguistes!
Ave, que aplacas o fogo dos vícios! [3].

Gedeão com o velo de lã

4. Profeta Daniel com uma montanha

No início do Livro de Daniel este interpreta um sonho do rei: uma grande estátua (representando os reinos deste mundo) é destruída por uma pedra que, sem intervenção humana, se desprende de uma montanha (Dn 2,31-45).

Essa imagem é associada à concepção e ao nascimento de Cristo, que ocorreram sem intervenção do homem, como canta a Ode 5 do Cânon de José:
Salve, montanha não cavada e abismo insondável!

Daniel com a montanha

5. Profeta Isaías com uma brasa em uma tenaz

Por fim, no canto inferior direito do ícone é retratado o profeta Isaías, sustentando uma brasa acesa segurada por uma tenaz, em alusão à sua vocação, na qual um serafim toca seus lábios com essa brasa, purificando-o para a missão (Is 6,5-7).

Esta brasa acesa é associada ao próprio Cristo, que purificou a Virgem já em sua concepção, como indica o dogma da Imaculada Conceição: a Virgem Maria foi preservada da mancha do pecado original “em previsão dos méritos de Cristo”.

Assim, se Cristo é a brasa que purifica de todo o pecado, Maria é a tenaz que a sustenta, pois através dela Ele veio a nós. Por isso a 5ª estrofe do Akathistos canta:
Ave, ó incenso das preces aceitas!
Ave, purificação do universo! [4].

Isaías sendo purificado pela brasa acesa

Após os profetas do lado direito do ícone, no centro da sua parte inferior, sob a Virgem Maria, encontramos um personagem sui generis:

6. Balaão e a estrela

Balaão é mencionado no Livro dos Números: é uma espécie de “profeta” convocado pelo rei de Moab para amaldiçoar o povo de Israel, seus inimigos. Porém, graças à intervenção divina, Balaão abençoa Israel e profere um oráculo messiânico: “Eu o vejo, mas não agora; eu o contemplo, mas não de perto. Uma estrela sai de Jacó, e um cetro se levanta de Israel” (Nm 24,17).

No ícone o personagem é retratado em um estado de “confusão” ao contemplar uma estrela sobre a sua cabeça. Maria, com efeito, é celebrada na 9ª estrofe do Akathistos como a “mãe da estrela”, que é Cristo. Cumpre notar que esta estrofe canta a adoração dos magos do Oriente, que foram justamente guiados por uma estrela.
Ave, que a estrela perene geraste! [5].

Ainda sobre a imagem da estrela, Maria é associada à aurora que precede o nascer do sol da justiça, que é Cristo, como cantam as estrofes nn. 1 e 21:
Ave, ó estrela que o sol anuncias!
(...)
Ave, do místico sol o lampejo!
Ave, ó astro da flama perene!
Ave, ó clarão que iluminas as almas! [6].

Ícone do Akathistos do séc. XVI (Detalhe)

Prosseguimos nossa análise com os personagens do lado esquerdo do ícone, desta vez de baixo para cima (sempre em sentido horário):

7. Reis Davi e/ou Salomão com o templo

Davi ou Salomão, ou mesmo os dois juntos, aparecem no canto inferior esquerdo sustentando o templo de Jerusalém, que ajudaram a construir.

Se o título de “templo” ou “santuário” do Senhor é aplicado pelo Apóstolo Paulo a cada fiel (1Cor 3,16-17), quanto mais este título pode aplicar-se à Virgem Maria, que carregou em seu seio o próprio Filho de Deus e conservou fielmente em seu coração a sua Palavra.

Por isso, as estrofes n. 15 e n. 23 do Akathistos cantam:
Ave, morada do Deus infinito!
Ave, mansão gloriosa do Verbo encarnado!
(...)
Ave, ó casa de Deus e do Verbo! [7].

Salomão com a imagem do Templo

8. Profeta Moisés com a sarça ardente

Moisés é mostrado segurando a sarça ardente na qual Deus se manifesta no Livro do Êxodo (cap. 3). Os Padres da Igreja sempre associaram a sarça que “ardia no fogo sem consumir-se” (Ex 3,2) como uma prefiguração da virgindade perpétua de Maria.

Assim o afirma claramente a 8ª ode do Cânon de José, o Hinógrafo:
Moisés compreendeu pela sarça o grande mistério de vosso parto, ó Virgem Santa e Imaculada (...), por isso nós vos louvamos por todos os séculos!

Moisés, como afirmamos acima, destoa do ícone do Akathistos,
sendo retratado com as tábuas da Lei

9. Sacerdote Aarão com uma vara florida

Junto a Moisés vemos seu irmão Aarão, sumo-sacerdote da primeira aliança, que segura seu bastão que milagrosamente floriu como sinal de sua eleição (Nm 17,16-26). Em relatos apócrifos este fenômeno repete-se com José, indicando sua eleição como esposo de Maria.

Esta, com efeito, é associada ao bastão de Aarão, do qual floresceu “a flor da imortalidade”, Jesus Cristo. Assim, na VII Ode do Cânon de José, cantamos:
Salve, ramo místico, que produzistes uma flor que não murcha!

No Akathistos propriamente dito uma imagem similar aparece na V estrofe:
Ave, ó ramo de planta incorrupta! [8].

Aarão com a vara florida

10. Profeta Jeremias com as tábuas da Lei

Pode nos parecer um pouco estranho ver o profeta Jeremias segurando as tábuas da Lei, uma vez que este atributo sempre é associado a Moisés. Porém, aqui se faz referência a um trecho do Livro de Baruc, considerado na Ortodoxia como parte da obra de Jeremias, uma vez que Baruc era o “escriba” do profeta.

O texto de Br 3,36–4,4 fala da sabedoria personificada como a Lei, que “apareceu sobre a terra e viveu entre os homens” (Br 3,38). Esta é considerada, com efeito, uma profecia da Encarnação: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).

Maria, portanto, é associada no Akathistos à arca da aliança, que continha as tábuas da Lei: ela é a arca da nova aliança, pois traz em seu ventre a Palavra encarnada.

Canta, com efeito, a estrofe n. 23 do hino:
Ave, no espírito, arca dourada! [9]

A V Ode do Cânon de José, o Hinógrafo, por sua vez, complementa:
Salve, puríssima Mãe de Deus, tabernáculo do Verbo!
Salve, admirável concha que produzistes a pérola divina!

Jeremias
(Como Moisés foi retratado com as tábuas da Lei, o profeta aparece de mãos vazias)

11. Profeta Habacuc com uma montanha

Por fim, o último personagem, no canto superior direito, é o profeta Habacuc, que sustenta uma montanha. Em sua profecia, ele anuncia a vinda de Deus a partir de uma montanha, que é coberta por sua glória (Hab 3,3-4).

A montanha coberta pela glória de Deus é associada à Virgem Maria no momento da Encarnação do Verbo, conforme anunciado pelo anjo: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35).

Canta, pois, a Ode n. 4 do Cânon de José o Hinógrafo:
Em nossos hinos clamamos a Vós com fé, ó digna de todo louvor:
Salve, montanha fecunda, fertilizada pelo Espírito!

Habacuc com a montanha

Digna de todo louvor, Santa Mãe do Verbo,
Santíssimo entre todos os Santos, recebe, nesse canto, a nossa oferta.
Salva o mundo de todo perigo; de todos os males e dos castigos futuros livra-nos,
a nós que cantamos: Aleluia!
Estrofe n. 24 do Akathistos [10].

Notas:
[1] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.). Ofícios Litúrgicos Bizantinos: Akathistos, Paraklesis e outros. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, pp. 19.21.
[2] ibid., p. 13.
[3] ibid., p. 16.
[4] ibid., p. 14.
[5] ibid., p. 16.
[6] ibid., pp. 12.22.
[7] ibid., pp. 19.23.
[8] ibid., p. 14.
[9] ibid., p. 23.
[10] ibid., p. 24.

Fontes:



Imagens: Wikimedia Commons

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