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quinta-feira, 4 de março de 2021

Catequeses sobre os Salmos (7): Laudes da sexta-feira da I semana

Na série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, chegamos às Laudes da sexta-feira da I semana do Saltério. O Papa refletiu sobre esses textos nas Catequeses de 24 de outubro (Sl 50), 31 de outubro (Is 45,15-25) e 07 de novembro de 2001 (Sl 99).

18. Tende piedade, ó meu Deus: Sl 50(51),3-21
24 de outubro de 2001

1. Escutamos o Miserere, uma das orações mais célebres do Saltério, o salmo penitencial mais intenso e repetido, o cântico do pecado e do perdão, a meditação mais profunda sobre a culpa e a graça. A Liturgia das Horas faz-nos repeti-lo nas Laudes de cada sexta-feira. Desde há muitos séculos numerosos corações de fiéis judeus e cristãos elevam aos céus como que um suspiro de arrependimento e de esperança dirigido a Deus misericordioso.
A tradição judaica colocou o Salmo nos lábios de Davi, convidado pelas palavras severas do profeta Natã a fazer penitência (cf. vv. 1-2; 2Sm 11,12), o qual lhe reprovava o adultério cometido com Betsabé e o homicídio de seu marido, Urias. Mas o Salmo enriquece-se nos séculos seguintes, com a oração de muitos outros pregadores, que retomam os temas do “coração novo” e do “Espírito” de Deus infundido no homem redimido, segundo o ensinamento dos profetas Jeremias e Ezequiel (cf. v. 12; Jr 31,31-34; Ez 11,19; 36,24-28).

2. São dois os horizontes que o Salmo 50 delineia. Em primeiro lugar, está a região tenebrosa do pecado (vv. 3-11), na qual se encontra o homem desde o início da sua existência: “Vede, Senhor, que eu nasci na iniquidade e pecador já minha mãe me concebeu” (v. 7). Mesmo se esta declaração não pode ser assumida como uma formulação explícita da doutrina do pecado original como foi delineada pela teologia cristã, não há dúvida de que ela lhe corresponde: de fato, exprime a dimensão profunda da inata debilidade moral do homem. O Salmo, nesta primeira fase, apresenta-se como uma análise do pecado, feita diante de Deus. São três as palavras hebraicas usadas para definir esta triste realidade, que provém da liberdade humana mal empregue.

3. A primeira palavra, hattá, significa literalmente “não atingir o alvo”: o pecado é uma aberração que nos afasta de Deus, meta fundamental das nossas relações, e, por conseguinte, também do próximo.
A segunda palavra hebraica é ‘awôn, que remete à imagem de “torcer”, “curvar”. Por conseguinte, o pecado é um desvio sinuoso do caminho reto; é a inversão, a deturpação, a deformação do bem e do mal, no sentido declarado por Isaías: “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas” (Is 5,20). Precisamente por este motivo, na Bíblia, a conversão é indicada como um “voltar” (em hebraico shûb) ao caminho reto, corrigindo o percurso.
A terceira palavra que o salmista usa para falar do pecado é peshá. Ela exprime a rebelião do súdito em relação ao soberano e, por conseguinte, é um desafio aberto dirigido a Deus e ao seu projeto para a história humana.

"Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia!" (Sl 50,3)
(Davi em oração - Pieter de Grebber - séc. XVII)

4. Mas se o homem confessa o seu pecado, a justiça salvífica de Deus está pronta para purificá-lo radicalmente. Desta forma passa-se para a segunda parte espiritual do Salmo, a luminosa da graça (vv. 12-19). De fato, através da confissão das culpas abre-se para quem reza um horizonte de luz no qual Deus atua. O Senhor não age apenas negativamente, eliminando o pecado, mas regenera a humanidade pecadora através do seu Espírito vivificante: infunde no homem um “coração” novo e puro, ou seja, um conhecimento renovado, e abre-lhe a possibilidade de uma fé límpida e de um culto agradável a Deus.
Orígenes fala a este propósito de uma terapia divina, que o Senhor realiza através da sua Palavra e mediante a obra regeneradora de Cristo: “Assim como Deus predispôs para o corpo o remédio das ervas terapêuticas misturadas com sabedoria, assim também preparou remédios para a alma com as palavras que infundiu, distribuindo-as nas divinas Escrituras... Deus também deu outra atividade médica, cujo arquiatra é o Salvador, o qual diz de si mesmo: ‘não são os sadios que precisam do médico, mas os doentes’. Ele era o médico por excelência capaz de curar qualquer debilidade, qualquer enfermidade” (Homilias sobre os Salmos, Florença, 1991, pp. 247-249).

5. A riqueza do Salmo 50 mereceria uma exegese cuidadosa de cada uma das suas partes. É o que faremos quando ele voltar a ressoar nas várias sextas-feiras das Laudes. O olhar de conjunto que agora dirigimos a esta grande súplica bíblica já nos revela alguns componentes fundamentais de uma espiritualidade que deve refletir-se na existência quotidiana dos fiéis. Em primeiro lugar, há um profundo sentido do pecado, entendido como uma escolha livre, conotada negativamente a nível moral e teologal: “Foi contra vós, só contra vós, que eu pequei, e pratiquei o que é mau aos vossos olhos!” (v. 6). Depois, verifica-se também no Salmo um profundo sentido da possibilidade de conversão: o pecador, sinceramente arrependido (v. 5), apresenta-se em toda a sua miséria e despojamento a Deus, suplicando-lhe que não o afaste da sua presença (v. 13).
Por fim, no Miserere, vê-se uma radicada convicção do perdão divino que “apaga, lava e purifica” o pecador (vv. 3-4) e chega até a transformá-lo numa criatura nova que tem espírito, língua, lábios e coração transformados (vv. 14-19). “Mesmo se os nossos pecados - afirmava Santa Faustina Kowalska - fossem escuros como a noite, a misericórdia divina é mais forte do que a nossa miséria. É necessária uma só coisa: que o pecador abra pelo menos um pouco da porta do seu coração... o resto Deus fará... Tudo se iniciou com a tua misericórdia e tudo terminará com a tua misericórdia” (M. Winowska, O ícone do Amor misericordioso. A mensagem da Irmã Faustina, Roma, 1981, p. 271).

19. Todos os povos se converterão ao Senhor: Is 45,15-25
31 de outubro de 2001

1. “Sois realmente um Deus escondido” (v. 15). Este versículo, que introduz o cântico proposto para as Laudes de sexta-feira da I semana do Saltério, é tirado da meditação de Isaías sobre a grandeza de Deus, manifestada na criação e na história:  um Deus que se revela, embora permaneça escondido na impenetrabilidade do seu mistério. Por definição, Ele é o “Deus absconditus”. Nenhum pensamento pode “capturá-lo”. O homem só pode contemplar a sua presença no universo, como que seguindo os seus passos, prostrado diante dele na oração e no louvor.
O contexto histórico a partir do qual nasce esta meditação é o da surpreendente libertação que Deus ofereceu ao seu povo, no tempo do exílio babilônico. Quem é que teria pensado que, um dia, os exilados de Israel podiam voltar para a sua pátria? Olhando para o poder babilônico, eles só podiam desesperar. Todavia, eis o grande anúncio, a surpresa de Deus, que vibra nas palavras do profeta: como no tempo do êxodo, Deus há de intervir. E se então tinha derrotado a resistência do faraó com castigos tremendos, agora escolhe um rei, Ciro da Pérsia, para vencer o poder babilônico e restituir a liberdade a Israel.

2. “Senhor Deus de Israel, ó Salvador, Deus escondido, realmente, sois, Senhor!” (v. 15). Com estas palavras, o profeta convida a reconhecer que Deus age na história, mesmo quando não se manifesta na linha de vanguarda. Se poderia dizer que se encontra “nos bastidores”. Ele é o criador misterioso e invisível que respeita a liberdade das suas criaturas, mas, ao mesmo tempo, tem em suas mãos o destino das vicissitudes do mundo. A certeza da ação providencial de Deus é fonte de esperança para o crente, que sabe que pode contar com a presença constante daquele “que fez a terra e a fixou” (v. 18).
Com efeito, o ato criativo não é um episódio que se perde na noite dos tempos, de maneira que o mundo, depois daquele início, deva considerar-se como que abandonado em si mesmo. Deus tira constantemente do ser a criação que saiu das suas mãos. Reconhecê-lo é também confessar a sua unicidade: “Não fui eu, o Senhor Deus, e nenhum outro? Não existe outro Deus fora de mim!” (v. 21). Por definição, Deus é o Único. Nada lhe pode ser comparado. Tudo lhe é subordinado. Daqui, também a rejeição da idolatria, em relação à qual o profeta anuncia palavras severas: “Como são loucos os que levam os seus ídolos e os que oram a uma estátua de madeira, a um deus que é incapaz de os salvar!” (v. 20). Como podemos nos colocar em adoração diante de um produto realizado pelo homem?

3. À nossa sensibilidade contemporânea, esta polêmica poderia parecer excessiva, como se visasse às imagens consideradas em si mesmas, sem compreender que a elas pode ser atribuído um valor simbólico, compatível com a adoração espiritual do único Deus. Sem dúvida, aqui entra em jogo a sábia pedagogia divina que, através de uma rígida disciplina de exclusão das imagens, salvaguardou Israel das contaminações politeístas. Partindo do rosto de Deus, que se manifestou na Encarnação de Jesus Cristo, a Igreja reconheceu, durante o II Concílio de Niceia (787), a possibilidade de recorrer às imagens sagradas, contanto que estas sejam compreendidas no seu valor essencial de relação.
Todavia, subsiste a importância desta admoestação profética em relação a todas as formas de idolatria, com frequência dissimuladas, mais do que no uso impróprio das imagens, nas atitudes com que os homens e as coisas são considerados como valores absolutos e substitutos do próprio Deus.

4. Do ponto de vista da criação o hino leva-nos para o terreno da história, onde Israel pôde experimentar muitas vezes o poder benéfico e misericordioso de Deus, a sua fidelidade e a sua providência. Em particular, na libertação do exílio manifestou-se uma vez mais o amor de Deus pelo seu povo, e isto aconteceu de maneira tão evidente e surpreendente que o profeta chama os próprios “sobreviventes de entre as nações” a testemunhar. Convida-os a discutir, se podem: “Reuni-vos, vinde todos, achegai-vos, pequeno resto que foi salvo entre as nações” (v. 20). A conclusão a que o profeta chega é de que a intervenção do Deus de Israel é inquestionável.
Então, manifesta-se uma magnífica perspectiva universalista. Deus proclama: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, homens todos dos confins de toda a terra! Porque Eu é que sou Deus e não há outro” (v. 22). Assim, torna-se evidente que a predileção com que Deus escolheu Israel como seu povo não significa um ato de exclusão, mas, pelo contrário, um ato de amor do qual toda a humanidade é destinada a beneficiar.
Desta forma, delineia-se, já no Antigo Testamento, aquela concepção “sacramental” da história da salvação, que vê na eleição especial dos filhos de Abraão e, em seguida, dos discípulos de Cristo na Igreja, não um privilégio que “fecha” e “exclui”, mas o sinal e o instrumento de um amor universal.

5. O convite à adoração e a oferta da salvação dizem respeito a todos os povos: “Diante de mim se dobrará todo joelho, e por meu nome hão de jurar todas as línguas” (v. 23). Ler estas palavras numa perspectiva cristã significa ter no pensamento a Revelação completa do Novo Testamento que, em Cristo, indica “um Nome que está acima de todo o nome” (Fl 2,9), de tal maneira que, “ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos Infernos, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,10-11).
Através desse cântico, as nossas Laudes matutinas adquirem proporções universais, dando voz também a quantos ainda não receberam a graça de conhecer Cristo. Trata-se de um louvor que se faz “missionário”, levando-nos a percorrer todos os caminhos, anunciando que Deus se manifestou em Jesus como o Salvador do mundo.

20. A alegria dos que entram no templo: Sl 99(100),2-5
07 de novembro de 2001

1. A tradição de Israel impôs ao hino de louvor agora proclamado o título de “Salmo para a todáh”, isto é, para a ação de graças no cântico litúrgico, e por isso adapta-se bem à entoação das Laudes matutinas. Nos poucos versículos desse alegre hino podem identificar-se três elementos significativos, de forma que tornam espiritualmente frutuoso o seu uso por parte da comunidade orante cristã.

2. Antes de tudo, encontra-se o apelo premente à oração, claramente descrita na sua dimensão litúrgica. É suficiente enumerar os verbos usados no imperativo que marcam o Salmo e são acompanhados por indicações de ordem cultual: “Aclamai..., servi ao Senhor com alegria, ide a Ele cantando jubilosos! Sabei que o Senhor, só Ele, é Deus... Entrai por suas portas dando graças, e em seus átrios com hinos de louvor; dai-lhe graças, seu nome bendizei!” (vv. 2-4). Uma série de convites não só para entrar na área sagrada do templo através dos seus pórticos e átrios (cf. Sl 14,1; 23,3.7-10), mas também a cantar hinos jubilosos a Deus.
É uma espécie de fio constante de louvor que nunca se interrompe, exprimindo-se numa contínua profissão de fé e de amor. Um louvor que se eleva da terra para Deus, e que ao mesmo tempo alimenta a alma do crente.

3. Desejaria reservar outra pequena observação ao início do cântico, onde o salmista chama toda a terra a aclamar o Senhor (cf. v. 1). Sem dúvida, o salmo dedicará depois toda a sua atenção ao povo eleito, mas o horizonte envolvido no louvor é universal, como acontece muitas vezes no Saltério, sobretudo nos chamados “hinos ao Senhor e Rei” (cfSl 95-98). O mundo e a história não estão nas mãos do destino, da confusão, de uma necessidade cega. Pelo contrário, são governados por um Deus que é ao mesmo tempo misterioso, mas que deseja que a humanidade viva, de modo estável, relações justas e autênticas. Ele “fixou o orbe, não vacilará, governa os povos com equidade... governará a terra com justiça, e os povos na Sua fidelidade” (Sl 95,10.13).

4. Por conseguinte, estamos todos nas mãos de Deus, Senhor e Rei, e todos o celebramos, confiantes de que Ele não nos deixará cair das Suas mãos de Criador e de Pai. A esta luz, pode apreciar-se melhor o terceiro elemento significativo do Salmo. No centro do louvor que o salmista coloca nos nossos lábios, encontra-se de fato uma espécie de profissão de fé, expressa mediante uma série de atributos que definem a realidade íntima de Deus. Este credo fundamental contém as seguintes afirmações: o Senhor é Deus, o Senhor é o nosso Criador, nós somos o seu povo, o Senhor é bom, o seu amor é eterno, a sua fidelidade não tem fim (vv. 3-5).

5. Tem-se, em primeiro lugar, uma renovada confissão de fé no único Deus, como nos é pedido pelo primeiro mandamento do Decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus... não terás outro Deus além de Mim” (Ex 20,2.3). E como se repete muitas vezes na Bíblia: “Reconhece, agora, e grava no teu coração, que só o Senhor é Deus e que não há outro” (Dt 4,39). Depois, é proclamada a fé em Deus criador, fonte do ser e da vida. Segue-se a afirmação, expressa através da chamada “fórmula da aliança”, da certeza que Israel tem da eleição divina: “somos seus, nós somos seu povo e seu rebanho” (v. 3). É uma certeza que os fiéis do novo Povo de Deus fazem sua, na consciência de constituírem a grei que o Pastor supremo das almas conduz aos prados eternos do céu (cf1Pd 2,25).

6. Depois da proclamação do Deus uno, criador e fonte da aliança, o retrato do Senhor cantado pelo nosso Salmo continua com uma meditação de três qualidades divinas, muitas vezes exaltadas no Saltério: a bondade, o amor misericordioso (hésed), e a fidelidade. São as três virtudes que caracterizam a aliança de Deus com o seu povo; elas exprimem um vínculo que jamais será violado, dentro do fluxo das gerações e apesar do rio lamacento dos pecados, das rebeliões e das infidelidades humanas. Com confiança serena no amor divino que nunca virá a faltar, o Povo de Deus encaminha-se na história com as suas tentações e debilidades quotidianas.
E esta confiança se fará cântico, ao qual por vezes as palavras já não bastam, como observa Santo Agostinho: “Quanto mais aumentar a caridade, tanto mais te darás conta do que dizias e não dizias. Com efeito, antes de saborear determinadas coisas, pensavas que podias utilizar palavras para indicar Deus; ao contrário, quando começaste a saboreá-lo, percebeste-te que não és capaz de explicar adequadamente aquilo que sentes. Mas se perceberes que não sabes exprimir com as palavras o que sentes, deverás, por isso, permanecer calado e não louvar? (...) Não, certamente. Não serás tão ingrato. A Ele devemos a honra, o respeito, o maior louvor (...) Ouve o Salmo: ‘Terra inteira, louva o Senhor!’. Compreenderás a alegria de toda a terra, se tu mesmo te alegras no Senhor” (Exposições sobre os Salmos, III/1, Roma, 1993, p. 459).

"Entrai por suas portas dando graças" (Sl 99,4)
(Papa Francisco atravessa a Porta Santa da Basílica de São Pedro - Jubileu da Misericórdia)

Fonte: Santa Sé (24 de outubro, 31 de outubro e 07 de novembro de 2001)

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