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quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O racional ou superhumeral

O capítulo 28 do Livro do Êxodo descreve, dentre as insígnias dos sacerdotes da primeira aliança, o efod (Ex 28,6-14) e o peitoral ou hoshen (Ex 28,15-30). O primeiro era uma espécie de colete de linho bordado com duas pedras de ônix nos ombros com o nome das tribos de Israel, enquanto o segundo era uma placa que o sacerdote usava sobre o peito, com doze pedras simbolizando as tribos de Israel (sobre o simbolismo destas doze pedras em um Evangeliário do Vaticano, clique aqui).

Na Idade Média surgiu o costume de endossar uma insígnia que, recordando as do sumo sacerdote do Antigo Testamento, fosse um equivalente do pálio para os Bispos que não tinham direito a ele (desde os séculos VII-VIII o pálio era restrito ao Papa e aos Arcebispos Metropolitanos). Trata-se do racional ou superhumeral.

Racional de Cracóvia na Sacristia da Catedral de Wawel

A palavra racional deriva da usada por São Jerônimo na Vulgata para traduzir o termo hoshen: rationale, enquanto superhumeral (sobre os ombros) é termo que traduz efod.

Segundo a Historia de la Liturgia de Mario Righetti, as primeiras menções do racional são do século X. Este se popularizou nas dioceses pertencentes ao Sacro Império Romano-Germânico ou em territórios vizinhos: Alemanha, França, Bélgica, República Checa, Polônia e norte da Itália.

Poucos exemplares do racional sobreviveram. A maior parte das evidências deriva de estátuas dos Bispos, uma vez que esta insígnia cairia em desuso na maioria dos lugares a partir dos séculos XIII e XIV.

Estátua de São Mansuy, Bispo de Toul (França)

Dessas estátuas podemos aferir seu formato tradicional: uma tela retangular de tecido com franjas nas quatro pontas e uma abertura central para a cabeça, que o Bispo endossava sobre a casula para a celebração das Missas mais solenes.

Estátua de São Willibald, Bispo de Eichstätt (Alemanha)

No racional geralmente estavam inscritas virtudes que o Bispo deveria possuir para “governar” bem o seu povo. Segundo Righetti, o racional é “símbolo da ciência e da verdade”.

Atualmente, o uso do racional é preservado em quatro dioceses: Eichstätt e Paderborn na Alemanha, Nancy-Toul na França e Cracóvia na Polônia. Paderborn e Cracóvia foram posteriormente elevadas a Arquidioceses: portanto, seus Bispos têm direito tanto ao racional quanto ao pálio.

Diocese de Eichstätt

A Diocese de Eichstätt foi criada em meados do século VIII. Seu primeiro Bispo, São Wilibaldo (741-787), costuma ser representado com o racional, ainda que anacrônico (cf. a imagem acima).


O racional de Eichstätt é conforme ao modelo tradicional, de corte retangular, com presilhas redondas nos ombros (em referência às pedras do efod). Traz inscritas em latim as sete virtudes fundamentais:
- as três virtudes teologais no centro: Fides - Spes - Caritas (Fé - Esperança - Caridade);
- as quatro virtudes cardeais nas franjas: Iustitia - Fortitudo - Prudentia - Temperantia (Justiça - Fortaleza - Prudência - Temperança).

Racional de Eichstätt

Em fotos divulgadas pela Diocese conseguimos identificar quatro modelos de racional: três conforme a descrição acima e um quarto com cenas do Evangelho e os símbolos dos quatro Evangelistas nas presilhas dos ombros.





O Bispo de Eichstätt desde 2006 é Dom Gregor Maria Hanke, O.S.B.

Arquidiocese de Paderborn

A Diocese de Paderborn foi criada em 799 e elevada a Arquidiocese em 1930. O seu racional é do mesmo formato do anterior, porém com inscrições distintas: na parte anterior lemos Doctrina e Veritas (Doutrina e Verdade). Infelizmente não encontramos nenhuma imagem ou informação sobre as inscrições da parte posterior.

Racional de Paderborn

O Arcebispo de Paderborn de 2003 a 2022 foi Dom Hans-Josef Becker, retratado nas imagens acima. Após um período de sede vacante, no dia 09 de dezembro de 2023 foi sucedido por Dom Udo Markus Bentz.

Diocese de Nancy-Toul

A Diocese de Toul foi criada no século IV, sendo suprimida em 1790, durante a Revolução Francesa. Em 1824, foi restaurada e unida à Diocese de Nancy (criada em 1777). O Bispo de Nancy-Toul, portanto, herdou o uso do racional do Bispo de Toul.

Diferentemente do modelo alemão, o racional de Toul tem um formato redondo. Na estátua de São Mansuy (Mansueto), seu primeiro Bispo, este é anacronicamente retratado com o racional, no qual estão inscritas as três Pessoas da Trindade: Pater - Filius - Spirictus Sanctus (Pai - Filho - Espírito Santo) (cf. a imagem acima).

O modelo usado atualmente, porém, parece não conter nenhuma inscrição, sendo dourado e ornado com pedras preciosas.

Racional de Nancy-Toul

O Bispo de Nancy-Toul de 1999 a 2003 foi Dom Jean-Louis Papin, retratado nas imagens acima. No dia 06 de abril de 2023 foi sucedido por Dom Pierre-Yves Michel.

Arquidiocese de Cracóvia

A Diocese de Cracóvia foi criada pouco antes do ano 1000, sendo elevada a Arquidiocese em 1925.

O seu racional, cujo modelo difere dos demais, foi entregue pela rainha da Polônia, Santa Edwiges (Święta Jadwiga) [1] ao então Bispo de Cracóvia, Jan Radlica, em 1384. Segundo a tradição, a própria rainha o teria bordado.

O racional da rainha Jadwiga é formado por duas fitas que se cruzam no peito e nas costas. Na intersecção das fitas há um medalhão com a imagem do Cordeiro pascal, no centro de quatro círculos concêntricos.

Racional de Cracóvia (parte anterior)

Nas partes inferiores das fitas é possível ler a inscrição: Regina Hedvigis, filia Regis Lodovici, ou seja, “Rainha Edwiges, filha do Rei Luís (ou Ludovico)” [2], além dos brasões da Polônia e da Casa de Anjou, à qual pertencia a rainha.

Nas partes superiores das fitas temos, como de costume, a inscrição de virtudes: Doctrina - Simplicitas - Veritas - Prudentia (Doutrina - Simplicidade - Verdade - Prudência).

Racioanl de Cracóvia (parte posterior)

Devido a ser uma peça histórica e o único racional de Cracóvia, só é usado dentro da Catedral de Wawel e apenas nas celebrações litúrgicas mais solenes.

O atual Arcebispo de Cracóvia é Dom Marek Jędraszewski, que foi nomeado em 2016 e tomou posse, recebendo o racional, em janeiro de 2017.


Por fim, vale lembrar que o fecho do pluvial, sobretudo quando na forma de um grande broche, também costuma ser chamado de racional (ou, às vezes, formal). Seu uso, porém, costuma ser restrito aos Bispos. Quando o fecho tem a forma de um gancho simples com corrente é chamado de alamar.

Notas:
[1] Não confundir com Santa Edwiges da Silésia (1174-1243), que foi uma duquesa e depois religiosa, canonizada em 1267 e celebrada a 16 de outubro. A rainha Edwiges (1373/1374-1399), por sua vez, foi a primeira mulher a governar a Polônia, canonizada em 1997 e celebrada a 17 de julho.

[2] Ludwik I, rei da Hungria (1342-1382) e rei da Polônia (1370-1382).

Fontes:

BRAUN, Joseph. Rationale. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 12, 1911. Disponível em: New Advent.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 575-576.

Postagem publicada em 27 de agosto de 2020. Última atualização: 09 de dezembro de 2023 (Nomeação do novo Arcebispo de Paderborn).

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