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domingo, 29 de março de 2020

O ícone da ressurreição de Lázaro

“Hoje, com tua palavra portadora de vida, libertas o amigo, como Deus que és, da corrupção do abismo profundo” - Santo André de Creta [1]

Até o momento, em nossa série de postagens, trouxemos os ícones de algumas das principais festas litúrgicas do Oriente e do Ocidente. O relato evangélico que apresentaremos aqui não é conteúdo de uma das grandes festas, embora seja celebrado de formas distintas nas diversas igrejas. Trata-se da ressurreição de Lázaro.

A ressurreição de Lázaro no Oriente e no Ocidente

Na tradição romana, a perícope (Jo 11,1-45) é proclamada no V Domingo da Quaresma no ano A. Neste ciclo se reforça o caráter batismal do tempo quaresmal, servindo os três últimos domingos como uma grande catequese, evidenciando os símbolos do Batismo: a água (diálogo de Jesus com a samaritana), a luz (cura do cego de nascença) e a vida (ressurreição de Lázaro) [2].

Completando assim as catequeses batismais e os sete “sinais” do Evangelho de João, somos colocados às portas da celebração pascal: “a Liturgia deste domingo nos conduz até o âmago da mensagem cristã de salvação. Já é o mistério pascal, como indica o Prefácio próprio: Compadecendo-se da humanidade, que jaz na morte do pecado, por seus sagrados mistérios Ele nos eleva ao Reino da vida nova’” [3]

Na tradição bizantina, por sua vez, este relato encontra lugar no sábado que antecede o Domingo de Ramos, o qual é conhecido justamente como “sábado de Lázaro”.  Uma semana antes do Sábado Santo, este Evangelho prefigura a sepultura do Senhor e a sua Ressurreição: “a Semana Santa vem assim situada entre duas ressurreições: a primeira como sinal e antecipação da do Redentor” [4].

O primeiro testemunho da celebração do “sábado de Lázaro” vem do Itinerarium de Etéria, referente à Liturgia de Jerusalém no século IV. Neste dia, segundo a peregrina, se celebrava no Lazarium, isto é, na igreja em Betânia. Desta tradição hierosolimitana deriva a celebração bizantina.

Mesmo que as igrejas do Oriente e do Ocidente enfatizem diferentes aspectos do relato (ápice das catequeses batismais no Rito Romano e profecia da Páscoa no Rito Bizantino), em ambas a ressurreição de Lázaro é lida à luz do Mistério Pascal de Cristo.

O ícone


O ambiente: Dois conjuntos de montanhas servem de moldura às muralhas de uma cidade, representadas ao fundo. Na base de uma das montanhas encontra-se o túmulo de Lázaro, escavado na rocha.

O interesse do artista não é geográfico, indicando que os túmulos se situavam fora da cidade, mas teológico: a cidade ao longe é antes de tudo profecia da Paixão de Cristo, que seria morto fora das muralhas de Jerusalém (Hb 13,12).

Às vezes a cidade é representada com tinta muito fraca, indicando que “não temos aqui cidade permanente” (Hb 13,14): “o homem é um peregrino entre duas cidades; e a vida não é senão uma passagem da cidade inferior para a cidade superior, a Jerusalém celeste, significada pela ressurreição” [5].

A representação da cidade pode indicar ainda o vaticínio de Cristo sobre a ruína de Jerusalém e seu fechamento à sua mensagem. Esta proposição é bastante interessante, já que as duas únicas vezes em que os Evangelhos descrevem Jesus chorando são diante de Jerusalém e do túmulo de Lázaro (Lc 19,41; Jo 11,35).

Abaixo da cidade, entre as duas montanhas, está retratada a multidão. Nela encontramos duas atitudes diante da cena: alguns olham para Lázaro - são os que “creram” (Jo 11,45) - enquanto outros olham para Jesus - são os que tramarão em seguida a sua morte (Jo 11,46-53). Alguns têm uma atitude maravilhada diante da ressurreição de Lázaro, com os braços levantados, enquanto outros, incrédulos, tapam o nariz pelo suposto “mau cheiro” (Jo 11,39).

Cristo: Em pé, na parte esquerda do ícone, está representado Cristo. Ele está revestido com as vestes tradicionais (a túnica vermelha de quem assumiu nossa humanidade, o manto azul da divindade, a estola da dignidade sacerdotal e régia) e acompanhado dos doze Apóstolos, retratados atrás d’Ele.

O Cristo tem o braço direito estendido em direção a Lázaro, com o tradicional gesto de bênção com os três dedos levantados, em alusão à Trindade. Neste momento, o Filho evoca o poder criador de toda a Trindade, ao ordenar “Lázaro, vem para fora” (Jo 11,43). “Como na primeira criação, também na segunda é a voz divina, a voz do Criador, que vai realizá-la. Ali, o Criador chamou tudo pelo nome, outorgando, assim, a tudo existência e vida; aqui, chama Lázaro pelo nome e o ressuscita dos mortos” [6].

Na mão esquerda Ele empunha um rolo: é o quirógrafo dos pecados de Lázaro, que Cristo arrebata ao Hades (Cl 2,13-14). Por isso Ele e Lázaro são os únicos personagens retratados com o nimbo ou halo da santidade (nem os Apóstolos são retratados assim, talvez prefigurando sua traição e abandono do Mestre durante os eventos da Paixão). Jesus é por natureza o “três vezes Santo”, fonte de toda santidade, enquanto Lázaro é santificado por sua Palavra.

Ao lado de Cristo, entre Ele e Lázaro, vemos um arbusto vicejante, bem no centro do ícone. Trata-se da árvore da vida, recordando a autoafirmação central do Mestre na perícope: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25).

Lázaro: O lado direito do ícone é dominado por Lázaro, que sai do sepulcro auxiliado por dois homens: obedientes às ordens de Cristo, um remove a pedra do sepulcro, enquanto o outro começa a desatar Lázaro das faixas que o envolviam.

O fato de Lázaro ser retratado ainda preso às faixas simboliza que a morte ainda tem poder sobre ele. Sua ressurreição é apenas profecia, figura daquela que será a Ressurreição de Cristo.

Lázaro é retratado diante do túmulo, retratado em forte cor negra, a mesma da gruta da Natividade e da morada dos mortos no ícone da Ressurreição do Senhor. A montanha na qual está a caverna costuma ser pintada em um leve tom de vermelho, para dar a ideia do órgão de um animal vivo, o Hades, o qual, porém, empalideceu diante da ação de Cristo:

Ai de mim, que estou perdido. Assim, entre alaridos, falava à Morte o Hades, e dizia: Eis que o Nazareno humilhou meus reinos subterrâneos ; rasgando-me o próprio ventre e chamando-o unicamente pelo nome, devolveu a vida a um corpo sem alento” [7].

Marta e Maria: Por fim, aos pés de Jesus, encontramos as duas irmãs de Lázaro, Marta e Maria. Elas parecem encarnar aqui a dupla natureza de Cristo: Marta, retratada de joelhos, é aquela que professou a fé em Jesus como Filho de Deus (Jo 11,27); recorda-nos, portanto, inclusive pela cor azul que veste (a cor do céu) a divindade do Filho.

Maria, por sua vez, é anacronicamente retratada aos pés do Senhor, remetendo-nos à unção de Betânia que terá lugar seis dias antes da Páscoa (Jo 12,1-8). Sendo esta unção “em vista da sepultura” do Senhor, Maria evoca aqui a sua humanidade, imagem corroborada pela cor vermelha de suas vestes.

Ó Cristo, alegria de todos, verdade, luz, vida do mundo e nossa ressurreição, na tua bondade te manifestaste aos que estão na terra, tornando-te modelo da ressurreição e concedendo a todos o perdão divino
 Kontákion do dia [8]

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da ressurreição de Lázaro. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 18. Coleção: Iconostásio, 12.
[2] No calendário bizantino as perícopes da samaritana e do cego de nascença são proclamadas respectivamente no V e no VI Domingos da Páscoa (cf. DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 105-108).
[3] ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 77.
[4] PASSARELLI, op. cit., p. 18.
[5] ibid., p. 25.
[6] ibid., p. 18.
[7] ibid., p. 27.
[8] DONADEO, op. cit., p. 92.

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