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domingo, 19 de janeiro de 2020

Carta Dies Domini (1): O domingo, dia do Senhor, dia de Cristo

Neste dia 19 de janeiro celebramos o II Domingo do Tempo Comum, dando início a este ciclo no qual o domingo ocupa um lugar primordial. Para aprofundar o seu sentido, publicaremos nos próximos dias (dividida em três partes) a Carta Apostólica Dies Domini do Papa João Paulo II sobre a santificação do domingo.

Nesta primeira parte publicamos a Introdução e os Capítulos I e II (nn. 1-30), que trazem os fundamentos teológicos e cristológicos do domingo, dia do Senhor e dia de Cristo:

João Paulo II
Carta Apostólica Dies Domini
Sobre a santificação do domingo

Introdução

Veneráveis Irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Caríssimos irmãos e irmãs!
1. O dia do Senhor, como foi definido o domingo, desde os tempos apostólicos [1], mereceu sempre, na história da Igreja, uma consideração privilegiada devido à sua estreita conexão com o próprio núcleo do mistério cristão. O domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a Páscoa da semana, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n'Ele da primeira criação e o início da «nova criação» (cf. 2Cor 5,17). É o dia da evocação adorante e grata do primeiro dia do mundo e, ao mesmo tempo, da prefiguração, vivida na esperança, do «último dia», quando Cristo vier na glória (cf. At 1,11; 1Ts 4,13-17) e renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5).
Ao domingo, portanto, aplica-se, com muito acerto, a exclamação do salmista: «Este é o dia que Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria» (Sl 117,24). Este convite à alegria, que a Liturgia de Páscoa assume como próprio, traz em si o sinal daquele alvoroço que se apoderou das mulheres - elas que tinham assistido à crucifixão de Cristo - quando, dirigindo-se ao sepulcro «muito cedo, no primeiro dia depois do sábado» (Mc 16,2), o encontraram vazio. É convite a reviver, de algum modo, a experiência dos dois discípulos de Emaús, que sentiram «o coração a arder no peito», quando o Ressuscitado caminhava com eles, explicando as Escrituras e revelando-Se ao «partir do pão» (cf. Lc 24,32.35). É o eco da alegria, ao princípio hesitante e depois incontida, que os Apóstolos experimentaram na tarde daquele mesmo dia, quando foram visitados por Jesus ressuscitado e receberam o dom da sua paz e do seu Espírito (cf. Jo 20,19-23).

A aparição do Ressuscitado aos Apóstolos no domingo de Páscoa

2. A Ressurreição de Jesus é o dado primordial sobre o qual se apoia a fé cristã (cf. 1Cor 15,14): estupenda realidade, captada plenamente à luz da fé, mas comprovada historicamente por aqueles que tiveram o privilégio de ver o Senhor ressuscitado; acontecimento admirável que não só se insere, de modo absolutamente singular, na história dos homens, mas que se coloca no centro do mistério do tempo. Com efeito, a Cristo «pertence o tempo e a eternidade», como lembra o rito de preparação do círio pascal, na sugestiva Liturgia da noite de Páscoa. Por isso, a Igreja, ao comemorar, não só uma vez ao ano mas em cada domingo, o dia da ressurreição de Cristo, deseja indicar a cada geração aquilo que constitui o eixo fundamental da história, ao qual fazem referência o mistério das origens e o do destino final do mundo.
Portanto, pode-se com razão dizer, como sugere a homilia de um autor do século IV, que o «dia do Senhor» é o «senhor dos dias» [2]. Todos os que tiveram a graça de crer no Senhor ressuscitado não podem deixar de acolher o significado deste dia semanal, com o grande entusiasmo que fazia São Jerônimo dizer: «O domingo é o dia da ressurreição, é o dia dos cristãos, é o nosso dia» [3]. De fato, ele é para os cristãos o «principal dia de festa» [4], estabelecido não só para dividir a sucessão do tempo, mas para revelar o seu sentido profundo.

3. A sua importância fundamental, reconhecida continuamente ao longo de dois mil anos de história, foi reafirmada vigorosamente pelo Concílio Vaticano II: «Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o Mistério Pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina do Senhor ou domingo» [5]. Paulo VI ressaltou novamente a sua importância, quando aprovou o novo Calendário Romano Geral e as Normas Universais que regulam o ordenamento do Ano Litúrgico [6]. A iminência do terceiro milênio, ao solicitar os crentes a refletirem, à luz de Cristo, sobre o caminho da história, convida-os também a redescobrir, com maior ímpeto, o sentido do domingo: o seu «mistério», o valor da sua celebração, o seu significado para a existência cristã e humana.
Com satisfação, vou tomando conhecimento das inúmeras intervenções do Magistério e das iniciativas pastorais que, vós, veneráveis Irmãos no episcopado, quer individualmente quer em conjunto - coadjuvados pelo vosso clero - realizastes sobre este tema importante nestes anos pós-conciliares. No limiar do Grande Jubileu do ano 2000, quis oferecer-vos esta Carta Apostólica para alentar o vosso empenho pastoral num setor tão vital. Mas simultaneamente desejo dirigir-me a todos vós, caríssimos fiéis, tornando-me de algum modo presente espiritualmente nas várias comunidades onde, cada domingo, vos reunis com os vossos respectivos Pastores para celebrar a Eucaristia e o «dia do Senhor». Muitas das reflexões e sentimentos que animam esta Carta Apostólica maturaram durante o meu serviço episcopal em Cracóvia e mais tarde, depois de ter assumido o ministério de Bispo de Roma e Sucessor de Pedro, nas visitas às paróquias romanas, realizadas com regularidade precisamente nos domingos dos diversos períodos do ano litúrgico. Deste modo, parece-me prosseguir o diálogo vivo que gosto de manter com os fiéis, refletindo convosco sobre o sentido do domingo e sublinhando as razões para vivê-lo como verdadeiro «dia do Senhor», inclusivamente nas novas circunstâncias do nosso tempo.

4. Ninguém desconhece, com efeito, que, num passado relativamente recente, a «santificação» do domingo era facilitada, nos países de tradição cristã, por uma ampla participação popular e, inclusive, pela organização da sociedade civil, que previa o descanso dominical como ponto indiscutível na legislação relativa às várias atividades laborativas. Hoje, porém, mesmo nos países onde as leis sancionam o caráter festivo deste dia, a evolução das condições socioeconômicas acabou por modificar profundamente os comportamentos coletivos e, consequentemente, a fisionomia do domingo. Impôs-se amplamente o costume do «fim de semana», entendido como momento semanal de distensão, transcorrido, talvez, longe da morada habitual e caracterizado, com frequência, pela participação em atividades culturais, políticas e esportivas, cuja realização coincide precisamente com os dias festivos. Trata-se de um fenômeno social e cultural que não deixa, por certo, de ter elementos positivos, na medida em que pode contribuir, no respeito de valores autênticos, para o desenvolvimento humano e o progresso no conjunto da vida social. Isto é devido, não só à necessidade do descanso, mas também à exigência de «festejar» que está dentro do ser humano. Infelizmente, quando o domingo perde o significado original e se reduz a puro «fim de semana», pode acontecer que o homem permaneça cerrado num horizonte tão restrito, que não mais lhe permite ver o «céu». Então, mesmo bem trajado, torna-se intimamente incapaz de «festejar» [7].
Aos discípulos de Cristo, contudo, lhes é pedido que não confundam a celebração do domingo, que deve ser uma verdadeira santificação do dia do Senhor, com o «fim de semana» entendido fundamentalmente como tempo de mero repouso ou de diversão. Urge, a este respeito, uma autêntica maturidade espiritual, que ajude os cristãos a «serem eles próprios», plenamente coerentes com o dom da fé, sempre prontos a mostrar a esperança neles depositada (cf. 1Pd 3,15). Isto implica também uma compreensão mais profunda do domingo, para poder vivê-lo, inclusivamente em situações difíceis, com plena docilidade ao Espírito Santo.

5. Deste ponto de vista, a situação apresenta-se bastante diversificada. Por um lado, temos o exemplo de algumas Igrejas jovens que demonstram com quanto fervor seja possível animar a celebração do domingo, tanto nas cidades como nas aldeias mais afastadas. Ao contrário, noutras regiões, por causa das dificuldades sociológicas mencionadas e talvez da falta de fortes motivações de fé, regista-se uma percentagem significativamente baixa de participantes na Liturgia dominical. Na consciência de muitos fiéis parece enfraquecer não só o sentido da centralidade da Eucaristia, mas até mesmo o sentido do dever de dar graças ao Senhor, rezando a Ele unido com os demais no seio da comunidade eclesial.
A tudo isto há que acrescentar que, não somente nos países de missão, mas também nos de antiga evangelização, pela insuficiência de sacerdotes, não se pode, às vezes, garantir a Celebração Eucarística dominical em todas as comunidades.

6. Diante deste cenário de novas situações e questões anexas, parece hoje mais necessário que nunca recuperar as profundas motivações doutrinais que estão na base do preceito eclesial, para que apareça bem claro a todos os fiéis o valor imprescindível do domingo na vida cristã. Agindo assim, prosseguimos no rasto da tradição perene da Igreja, evocada firmemente pelo Concílio Vaticano II quando ensinou que, ao domingo, «os fiéis devem reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os “regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos” (1Pd 1,3)» [8].

7. Com efeito, o dever de santificar o domingo, sobretudo com a participação na Eucaristia e com um repouso permeado de alegria cristã e de fraternidade, é fácil de compreender se se consideram as múltiplas dimensões deste dia, que serão objeto da nossa atenção na presente Carta.
O domingo é um dia que está no âmago mesmo da vida cristã. Se, desde o início do meu Pontificado, não me cansei de repetir: «Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo» [9], hoje neste mesmo sentido, gostaria de convidar vivamente a todos a redescobrirem o domingo: Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo! Sim, abramos o nosso tempo a Cristo, para que Ele possa iluminá-lo e dirigi-lo. É Ele quem conhece o segredo do tempo e o segredo da eternidade, e nos entrega o «seu dia», como um dom sempre novo do seu amor. Há de se implorar a graça da descoberta sempre mais profunda deste dia, não só para viver em plenitude as exigências próprias da fé, mas também para dar resposta concreta aos anseios íntimos e verdadeiros existentes em todo ser humano. O tempo dado a Cristo, nunca é tempo perdido, mas tempo conquistado para a profunda humanização das nossas relações e da nossa vida.

Capítulo I: Dies Domini
A celebração da obra do Criador

«Tudo começou a existir por meio d'Ele» (Jo 1,3)
8. O domingo, segundo a experiência cristã, é sobretudo uma festa pascal, totalmente iluminada pela glória de Cristo ressuscitado. É a celebração da «nova criação». Este seu caráter, porém, se bem entendido, é inseparável da mensagem que a Escritura, desde as suas primeiras páginas, nos oferece acerca do desígnio de Deus na criação do mundo. Com efeito, se é verdade que o Verbo Se fez carne na «plenitude dos tempos» (Gl 4,4), também é certo que, em virtude precisamente do seu mistério de Filho eterno do Pai, Ele é origem e fim do universo. Afirma-o São João, no Prólogo do seu Evangelho: «Tudo começou a existir por meio d'Ele, e sem Ele nada foi criado» (Jo 1,3). Também São Paulo, ao escrever aos colossenses, o sublinha: «N'Ele foram criadas todas as coisas, nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis (...). Tudo foi criado por Ele e para Ele» (Cl 1,16). Esta presença ativa do Filho na obra criadora de Deus revelou-se plenamente no Mistério Pascal, no qual Cristo, ressuscitando como «primícias dos que morreram» (1Cor 15,20), inaugurou a nova criação e deu início ao processo que Ele mesmo levará a cabo no momento do seu retorno glorioso, «quando entregar o Reino a Deus Pai (...), a fim de que Deus seja tudo em todos» (1Cor 15,24.28).
Portanto, já na aurora da criação, o desígnio de Deus implicava esta «missão cósmica» de Cristo. Esta perspectiva cristocêntrica, que se estende sobre todo o arco do tempo, estava presente no olhar comprazido de Deus quando, no fim da sua obra, «abençoou o sétimo dia e santificou-o» (Gn 2,3). Nascia então - segundo o autor sacerdotal da primeira narração bíblica da criação - o «sábado», que caracteriza profundamente a primeira Aliança e, de algum modo, preanuncia o dia sagrado da nova e definitiva Aliança. O mesmo tema do «repouso de Deus» (cf. Gn 2,2) e do repouso por Ele oferecido ao povo do êxodo, com o ingresso na terra prometida (cf. Ex 33,14; Dt 3,20; Js 21,44; Sl 94,11), é relido no Novo Testamento sob uma luz nova, a do «repouso sabático» definitivo (cf. Hb 4,9), onde entrou Cristo com a sua ressurreição e também o Povo de Deus é chamado a entrar, perseverando na senda da sua obediência filial (cf. Hb 4,3-16). É necessário, portanto, reler a grande página da criação e aprofundar a teologia do «sábado», para chegar à plena compreensão do domingo.

«No princípio, Deus criou os céus e a terra» (Gn 1,1)
9. O estilo poético da narração do Gênesis atesta a admiração sentida pelo homem diante da grandeza da criação e o sentimento de adoração que daí deriva por Aquele que, do nada, criou todas as coisas. Trata-se de uma página de intenso significado religioso, um hino ao Criador do universo, indicado como o único Senhor ante as frequentes tentações de divinizar o próprio mundo, e simultaneamente um hino à bondade da criação, toda ela plasmada pela mão forte e misericordiosa de Deus.
«Deus viu que isto era bom» (Gn 1,10.12; etc.). Este refrão, que acompanha a narração, projeta uma luz positiva sobre cada elemento do universo, deixando, ao mesmo tempo, vislumbrar o segredo para a sua justa compreensão e possível regeneração: o mundo é bom, na medida em que permanece ancorado à sua origem e, após a sua deturpação pelo pecado, torna a ser bom quando, com a ajuda da graça, volta àquele que o criou. Esta dialética, certamente, não está a referir-se às coisas inanimadas e aos animais, mas aos seres humanos, aos quais foi concedido o dom incomparável, mas também o risco da liberdade. A Bíblia, logo após a narração da criação, põe precisamente em evidência o contraste dramático entre a grandeza do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, e a sua queda, que abre no mundo o cenário obscuro do pecado e da morte (cf. Gn 3).

10. Saído assim das mãos de Deus, o universo traz em si a imagem da sua bondade. É um mundo belo, digno de ser admirado e gozado, mas também destinado a ser cultivado e desenvolvido. A «completude» da obra de Deus abre o mundo ao trabalho do homem. «Concluída, no sétimo dia, toda a obra que havia feito, Deus repousou no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado» (Gn 2,2). Através desta evocação antropomórfica do «trabalho» divino, a Bíblia não somente nos oferece uma indicação sobre a misteriosa relação entre o Criador e o mundo criado, mas projeta também uma luz sobre a missão do homem para com o universo. O «trabalho» de Deus é, de certa forma, exemplo para o homem. Este, de fato, é chamado não só a habitar mas também a «construir» o mundo, tornando-se, assim, «colaborador» de Deus. Os primeiros capítulos do Gênesis, como escrevi na Encíclica Laborem exercens, constituem, de certa forma, o primeiro «evangelho do trabalho» [10] é uma verdade também ressaltada pelo Concílio Vaticano II: «O homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus» [11].
A realidade extraordinária do progresso da ciência, da técnica, da cultura nas suas diversas expressões - um progresso sempre mais rápido, e hoje até vertiginoso - é o fruto, na história do mundo, da missão com a qual Deus confiou ao homem e à mulher a tarefa e a responsabilidade de se multiplicarem por toda a terra e de a dominarem através do trabalho, observando a sua Lei.

O «shabbat»: o repouso jubiloso do Criador
11. Se, na primeira página do Gênesis, o «trabalho» de Deus é exemplo para o homem, o é igualmente o seu «repouso»: «Deus repousou, no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado» (Gn 2,2). Também aqui nos encontramos diante de um antropomorfismo, denso de uma mensagem sugestiva.
O «repouso» de Deus não pode ser interpretado de forma banal, como uma espécie de «inatividade» de Deus. De fato, o ato criador, que está na constituição do mundo, é permanente por sua própria natureza e Deus não cessa nunca de agir, como o próprio Jesus quis lembrar precisamente com referência ao preceito sabático: «Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho» (Jo 5,17). O repouso divino do sétimo dia não alude a um Deus inativo, mas sublinha a plenitude do que fora realizado, como que a exprimir a paragem de Deus diante da obra «muito boa» (Gn 1,31) saída das suas mãos, para lançar sobre ela um olhar repleto de jubilosa complacência: um olhar «contemplativo», que não visa novas realizações, mas sobretudo apreciar a beleza de quanto foi feito; um olhar lançado sobre todas as coisas, mas especialmente sobre o homem, ponto culminante da criação. É um olhar no qual já se pode, de certa forma, intuir a dinâmica «esponsal» da relação que Deus quer estabelecer com a criatura feita à sua imagem, chamando-a a comprometer-se num pacto de amor. É o que Ele realizará progressivamente, em vista da salvação oferecida à humanidade inteira, mediante a aliança salvífica estabelecida com Israel e culminada, depois, em Cristo: será precisamente o Verbo encarnado, através do dom escatológico do Espírito Santo e da constituição da Igreja como seu Corpo e sua Esposa, que estenderá a oferta de misericórdia e a proposta do amor do Pai a toda humanidade.

12. No desígnio do Criador, existe certamente uma distinção, mas também uma íntima conexão entre as ordens da criação e da salvação. Já o Antigo Testamento o destaca quando põe o mandamento referente ao «shabbat» em relação não só com o misterioso «repouso» de Deus depois dos dias da atividade criadora (cf. Ex 20,8-11), mas também com a salvação oferecida por Ele a Israel na libertação da escravidão do Egito (cf. Dt 5,12-15). O Deus que descansa ao sétimo dia comprazendo-Se pela sua criação, é o mesmo que mostra a sua glória ao libertar os seus filhos da opressão do faraó. Tanto num caso como noutro poder-se-ia dizer, segundo uma imagem cara aos profetas, que Ele Se manifesta como o esposo diante da esposa (cf. Os 2,16-24; Jr 2,2; Is 54,4-8).
De fato, para entrar no âmago do «shabbat», do «repouso» de Deus, como sugerem precisamente alguns elementos da tradição hebraica [12], ocorre captar a densidade esponsal que caracteriza, do Antigo ao Novo Testamento, a relação de Deus com o seu povo. Assim a exprime, por exemplo, esta página maravilhosa de Oseias: «Farei em favor dela, naquele dia, uma aliança, com os animais selvagens, com as aves do céu e com os répteis da terra: farei desaparecer da terra o arco, a espada e a guerra e os farei repousar em segurança. Então te desposarei para sempre; desposar-te-ei conforme a justiça e o direito, com misericórdia e amor. Desposar-te-ei com fidelidade, e tu conhecerás o Senhor» (Os 2,20-22).

«Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o» (Gn 2,3)
13. O preceito do sábado, que na primeira Aliança prepara o domingo da nova e eterna Aliança, radica-se, portanto, na profundidade do desígnio de Deus. Precisamente por isso, não está situado junto das normativas puramente cultuais, como é o caso de tantos outros preceitos, mas dentro do Decálogo, as «dez palavras» que delineiam os próprios pilares da vida moral, inscrita universalmente no coração do homem. Concebendo este mandamento no horizonte das estruturas fundamentais da ética, Israel e, depois, a Igreja mostram que não o consideram uma simples norma de disciplina religiosa comunitária, mas uma expressão qualificante e imprescindível da relação com Deus, anunciada e proposta pela revelação bíblica. É nesta perspectiva que tal preceito há de ser, também hoje, redescoberto pelos cristãos. Se possui também uma convergência natural com a necessidade humana de repouso é, contudo, à fé que é preciso fazer apelo para captar o seu sentido profundo, evitando o risco de banalizá-lo e trai-lo.

14. Portanto, o dia do repouso é tal primariamente porque é o dia «abençoado» por Deus e por Ele «santificado», isto é, separado dos demais dias para ser, de entre todos, o «dia do Senhor».
Para compreender plenamente o sentido desta «santificação» do sábado na primeira narração bíblica da criação, é necessário contemplar o texto no seu conjunto, que mostra com nitidez como toda a realidade, sem exceção, tem a ver com Deus. O tempo e o espaço pertencem-Lhe. Ele não é Deus de um dia só, mas de todos os dias do homem.
Assim, pois, se Ele «santifica» o sétimo dia com uma bênção especial e faz dele o «seu dia» por excelência, isto há de entender-se precisamente na profunda dinâmica do diálogo de aliança, melhor, do diálogo «esponsal». É um diálogo de amor que, apesar de não conhecer interrupções, não é monótono: desenrola-se, de fato, valendo-se das diversas tonalidades do amor, desde as manifestações ordinárias e indiretas até as mais intensas, que as palavras da Escritura e, depois, os testemunhos de tantos místicos não temem descrever com imagens extraídas da experiência do amor nupcial.

15. Na verdade, a vida inteira do homem e todo o seu tempo, devem ser vividos como louvor e agradecimento ao seu Criador. Mas a relação do homem com Deus necessita também de momentos explicitamente de oração, nos quais a relação se torna diálogo intenso, envolvendo toda a dimensão da pessoa. O «dia do Senhor» é, por excelência, o dia desta relação, no qual o homem eleva a Deus o seu canto, tornando-se eco da inteira criação.
Por isso mesmo, é também o dia do repouso: a interrupção do ritmo, muitos vezes opressor, das ocupações exprime, com a linguagem figurada da «novidade» e do «desprendimento», o reconhecimento da dependência de nós mesmos e do universo de Deus. Tudo é de Deus! O dia do Senhor está continuamente a afirmar este princípio. Assim, o «sábado» da revelação bíblica foi sugestivamente interpretado como um elemento qualificante naquela espécie de «arquitetura sagrada» do tempo que caracteriza a revelação bíblica [13]. Ele nos lembra que a Deus pertencem o universo e a história, e o homem não pode dedicar-se à sua obra de colaboração com o Criador, sem ter constantemente em consideração esta verdade.

«Recordar» para «santificar»
16. O mandamento do Decálogo, pelo qual Deus impõe a observância do sábado, tem, no livro do Êxodo, uma formulação característica: «Recorda-te do dia de sábado, para o santificares» (20,8). E mais adiante, o texto inspirado dá a razão disso mesmo, apelando-se à obra de Deus: «Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo quanto contém, e descansou no sétimo; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e santificou-o» (v. 11). Antes de impor qualquer coisa a ser praticada, o mandamento indica algo a recordar. Convida a avivar a memória daquela grande e fundamental obra de Deus que é a criação. É uma memória que deve animar toda a vida religiosa do homem, para depois confluir no dia em que ele é chamado a repousar. O repouso assume, assim, um típico valor sagrado: o fiel é convidado a repousar não só como Deus repousou, mas a repousar no Senhor, devolvendo-Lhe toda a criação, no louvor, na ação de graças, na intimidade filial e na amizade esponsal.

17. O tema da «lembrança» das maravilhas realizadas por Deus, posto em relação com o repouso sabático, aparece também no texto do Deuteronômio (Dt 5,12-15), onde o fundamento do preceito é visto não tanto na obra da criação como sobretudo na libertação efetuada por Deus no êxodo: «Recorda-te de que foste escravo do país do Egito, donde o Senhor, teu Deus, te fez sair com mão forte e braço poderoso. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de Sábado» (Dt 5,15).
Esta formulação é complementar da precedente: consideradas juntas, elas revelam o sentido do «dia do Senhor» no âmbito de uma perspectiva unitária de teologia da criação e da salvação. O conteúdo do preceito não é, pois, primariamente uma interrupção do trabalho qualquer, mas a celebração das maravilhas realizadas por Deus.
Na medida em que esta «lembrança», repleta de gratidão e louvor a Deus, está viva, o repouso do homem, no dia do Senhor, assume o seu pleno significado. Por ele, o homem entra na dimensão do «repouso» de Deus para dele participar em profundidade, tornando-se assim capaz de experimentar aquele regozijo de alegria que o próprio Criador sentiu depois da criação, vendo que toda a sua obra «era coisa muito boa» (Gn 1,31).

Passagem do sábado ao domingo
18. Por esta dependência essencial que o terceiro mandamento tem da memória das obras salvíficas de Deus, os cristãos, apercebendo-se da originalidade do tempo novo e definitivo inaugurado por Cristo, assumiram como festivo o primeiro dia depois do sábado, porque nele se deu a Ressurreição do Senhor. De fato, o Mistério Pascal de Cristo constitui a revelação plena do mistério das origens, o cume da história da salvação e a antecipação do cumprimento escatológico do mundo. Aquilo que Deus realizou na criação e o que fez pelo seu povo no êxodo, encontrou na Morte e Ressurreição de Cristo o seu cumprimento, embora este tenha a sua expressão definitiva apenas na parusia, com a vinda gloriosa de Cristo. N'Ele se realiza plenamente o sentido «espiritual» do sábado, como o sublinha S. Gregório Magno: «Nós consideramos verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo» [14]. Por isso, a alegria com que Deus, no primeiro sábado da humanidade, contempla a criação feita do nada, exprime-se doravante pela alegria com que Cristo apareceu aos seus, no domingo de Páscoa, trazendo o dom da paz e do Espírito (cf. Jo 20,19-23). De fato, no Mistério Pascal, a condição humana e, com ela, toda a criação, que geme e sofre as dores de parto até ao presente (cf. Rm 8,22) conheceu o seu novo «êxodo» para a liberdade dos filhos de Deus, que podem gritar, com Cristo, «Abbá, Pai» (Rm 8,15; Gl 4,6). À luz deste mistério, o sentido do preceito veterotestamentário do dia do Senhor é recuperado, integrado e plenamente revelado na glória que brilha na face de Cristo Ressuscitado (cf. 2Cor 4,6). Do «sábado» passa-se ao «primeiro dia depois do sábado», do sétimo dia passa-se ao primeiro dia: o dies Domini torna-se o dies Christi!

Capítulo II: Dies Christi
O dia do Senhor Ressuscitado e do dom do Espírito

A Páscoa semanal
19. «Nós celebramos o domingo, devido à venerável Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, não só na Páscoa, mas inclusive em cada ciclo semanal»: assim escrevia o Papa Inocêncio I, nos começos do século V [15], testemunhando um costume já consolidado, que se tinha vindo a desenvolver logo desde os primeiros anos após a Ressurreição do Senhor. São Basílio fala do «santo domingo, honrado pela Ressurreição do Senhor, primícias de todos os outros dias» [16]. S. Agostinho chama o domingo «sacramento da Páscoa» [17].
Esta ligação íntima do domingo com a Ressurreição do Senhor é fortemente sublinhada por todas as Igrejas, tanto do Ocidente como do Oriente. De modo particular na tradição das Igrejas Orientais, cada domingo é a anastàsimos hemèra, o dia da Ressurreição [18], e precisamente por esta sua característica, é o centro de todo o culto.
À luz desta tradição ininterrupta e universal, vê-se com toda a clareza que, embora o «dia do Senhor» tenha as suas raízes, como se disse, na mesma obra da criação, e mais diretamente no mistério do «repouso» bíblico de Deus, contudo é preciso fazer referência especificamente à Ressurreição de Cristo para se alcançar o pleno sentido daquele. É o que faz o domingo cristão, ao repropor cada semana à consideração e à vida dos crentes o evento pascal, donde mana a salvação do mundo.

20. Segundo o unânime testemunho evangélico, a Ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos aconteceu no «primeiro dia depois do sábado» (Mc 16,2.9; Lc 24,1; Jo 20,1). Naquele mesmo dia, o Ressuscitado manifestou-Se aos dois discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) e apareceu aos onze Apóstolos que estavam reunidos (cf. Lc 24,36; Jo 20,19). Passados oito dias - como testemunha o Evangelho de São João (cf. Jo 20,26) - os discípulos estavam novamente juntos, quando Jesus lhes apareceu e fez-Se reconhecer por Tomé, mostrando os sinais da sua Paixão. Era domingo, o dia de Pentecostes, primeiro dia da oitava semana após a páscoa judaica (cf. At 2,1), quando, com a efusão do Espírito Santo, se cumpriu a promessa feita por Jesus aos Apóstolos depois da ressurreição (cf. Lc 24,49; At 1,4-5). Aquele foi o dia do primeiro anúncio e dos primeiros batismos: Pedro proclamou à multidão reunida que Cristo tinha ressuscitado, e «os que aceitaram a sua palavra receberam o batismo» (At 2,41). Foi a epifania da Igreja, manifestada como povo que congrega na unidade, independentemente de toda a variedade, os filhos de Deus dispersos.

O primeiro dia da semana
21. É nesta base que, desde os tempos apostólicos, «o primeiro dia depois do sábado», primeiro da semana, começou a caracterizar o próprio ritmo da vida dos discípulos de Cristo (cf. 1Cor 16,2). «Primeiro dia depois do sábado» era também aquele em que os fiéis de Trôade estavam reunidos «para partir o pão», quando S. Paulo lhes dirigiu o discurso de despedida e realizou um milagre para devolver a vida ao jovem Êutico (cf. At 20,7-12). O livro do Apocalipse testemunha o costume de dar a este primeiro dia da semana o nome de «dia do Senhor» (1,10). Doravante isto será uma das características que distinguirão os cristãos do mundo circunstante. Já o apontava, ao início do segundo século, o governador da Bitínia, Plínio o Jovem, constatando o hábito dos cristãos «se reunirem num dia fixo, antes da aurora, e entoarem juntos um hino a Cristo, como a um deus» [19]. De fato, quando os cristãos diziam «dia do Senhor», faziam-no atribuindo ao termo a plenitude de sentido que lhe vem da mensagem pascal: «Jesus Cristo é o Senhor» (Fl 2,11; cf. At 2,36; 1Cor 12,3). Reconhecia-se, deste modo, Cristo com o mesmo título usado pelos Setenta para traduzirem, na revelação do Antigo Testamento, o nome próprio de Deus, YHWH, que não era lícito pronunciar.

22. Nestes primeiros tempos da Igreja, o ritmo semanal dos dias não era geralmente conhecido nas regiões onde o Evangelho se difundia, e os dias festivos dos calendários grego e romano não coincidiam com o domingo cristão. Isto comportava para os cristãos uma notável dificuldade para observar o dia do Senhor, com o seu caráter fixo semanal. Assim se explica porque os fiéis eram obrigados a reunirem-se antes do nascer do sol [20]. Todavia, a fidelidade ao ritmo semanal mantinha-se porque estava fundada no Novo Testamento e ligada à revelação do Antigo Testamento. Os Apologistas e os Padres da Igreja sublinham-no de bom grado nos seus escritos e na sua pregação. O Mistério Pascal era ilustrado através daqueles textos da Escritura que, conforme o testemunho de São Lucas (cf. Lc 24,27.44-47), o próprio Cristo ressuscitado devia ter explicado aos discípulos. Baseada nesses textos, a celebração do dia da Ressurreição adquiria um valor doutrinal e simbólico, capaz de exprimir toda a novidade do mistério cristão.

Progressiva distinção do sábado
23. É precisamente sobre esta novidade que insiste a catequese dos primeiros séculos, procurando distinguir o domingo do sábado hebraico. O sábado, para os judeus, impunha o dever da reunião na sinagoga e exigia a prática do repouso prescrito pela Lei. Os Apóstolos, e de modo particular São Paulo, continuaram de início a frequentar a sinagoga, para poderem anunciar lá Jesus Cristo, ao comentar «as profecias que são lidas todos os sábados» (At 13,27). Em algumas comunidades, podia-se registar a coexistência da observância do sábado com a celebração dominical. Bem cedo, porém, se começou a diferenciar os dois dias de forma cada vez mais nítida, sobretudo para fazer frente às insistências daqueles cristãos que, vindos do judaísmo, eram favoráveis à conservação da obrigação da Lei Antiga. Santo Inácio de Antioquia escreve: «Se os que viviam no antigo estado de coisas passaram a uma nova esperança, deixando de observar o sábado e vivendo segundo o dia do Senhor, dia em que a nossa vida despontou por meio d'Ele e da sua morte (...), mistério do qual recebemos a fé e no qual perseveramos para sermos reconhecidos discípulos de Cristo, nosso único Mestre, como poderemos viver sem Ele, se inclusive os profetas, que são seus discípulos no Espírito, O aguardavam como mestre?» [21]. E Santo Agostinho, por sua vez, observa: «Por isso, o Senhor também imprimiu o seu selo no seu dia, que é o terceiro após a Paixão. Porém, no ciclo semanal, aquele é o oitavo depois do sétimo, isto é, depois do sábado, e o primeiro da semana» [22]. A distinção entre o domingo e o sábado hebraico vai-se consolidando sempre mais na consciência eclesial, mas em certos períodos da história, devido à ênfase dada à obrigação do descanso festivo, regista-se certa tendência à «sabatização» do dia do Senhor. Não faltaram, inclusive, setores da cristandade em que o sábado e o domingo foram observados como «dois dias irmãos» [23].

O dia da nova criação
24. A comparação do domingo cristão com a concepção do sábado, própria do Antigo Testamento, suscitou também aprofundamentos teológicos de grande interesse. De modo particular evidenciou-se a ligação especial que existe entre a Ressurreição e a criação. Era, de fato, natural para a reflexão cristã relacionar a Ressurreição, acontecida «no primeiro dia da semana», com o primeiro dia daquela semana cósmica (cf. Gn 1,1-2,4) em que o Livro do Gênesis divide o evento da criação: o dia da criação da luz (cf. Gn 1,3-5). O relacionamento feito convidava a ver a Ressurreição como o início de uma nova criação, da qual Cristo glorioso constitui as primícias, sendo Ele «o Primogênito de toda a criação» (Cl 1,15), e também «o Primogênito dos que ressuscitam dos mortos» (Cl 1,18).

25. O domingo, com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o cristão é chamado a lembrar da salvação que lhe foi oferecida no Batismo e que o tornou homem novo em Cristo. «Sepultados com Ele no Batismo, foi também com Ele que ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que O ressuscitou dos mortos» (Cl 2,12; cf. Rm 6,4-6). A Liturgia põe em evidência esta dimensão batismal do domingo, quer exortando a celebrar os batismos, para além da Vigília Pascal, também neste dia da semana «em que a Igreja comemora a Ressurreição do Senhor» [24], quer sugerindo, como oportuno rito penitencial no início da Missa, a aspersão com a água benta, que evoca precisamente o evento batismal em que nasce toda a existência cristã [25].

O oitavo dia, imagem da eternidade
26. Por outro lado, o fato de o sábado ser o sétimo dia da semana fez considerar o dia do Senhor à luz de um simbolismo complementar, muito apreciado pelos Padres: o domingo, além de ser o primeiro dia, é também «o oitavo dia», ou seja, situado, relativamente à sucessão setenária dos dias, numa posição única e transcendente, evocadora não só do início do tempo, mas também do seu fim no «século futuro». S. Basílio explica que o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo atual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho [26]. Nesta perspectiva do dia último, que realiza plenamente o simbolismo prefigurativo do sábado, Santo Agostinho conclui as Confissões falando do eschaton como «paz tranquila, paz do sábado, que não entardece» [27]. A celebração do domingo, dia simultaneamente «primeiro» e «oitavo», orienta o cristão para a meta da vida eterna [28].

O dia de Cristo-luz
27. Nesta perspectiva cristocêntrica, compreende-se outra valência simbólica que a reflexão crente e a prática pastoral atribuíram ao dia do Senhor. De fato, uma perspicaz intuição pastoral sugeriu à Igreja de cristianizar, aplicando-a ao domingo, a conotação de «dia do sol», expressão esta com que os romanos denominavam este dia e que ainda aparece em algumas línguas contemporâneas [29], subtraindo os fiéis às seduções de cultos que divinizavam o sol e orientando a celebração deste dia para Cristo, verdadeiro «sol» da humanidade. S. Justino, escrevendo aos pagãos, utiliza a terminologia corrente para dizer que os cristãos faziam a sua reunião «no chamado dia do sol» [30], mas a alusão a esta expressão assume, já então, para os crentes um novo sentido perfeitamente evangélico [31]. Cristo é realmente a luz do mundo (cf. Jo 9,5; veja-se também Jo 1,4-5.9), e o dia comemorativo da sua Ressurreição é o reflexo perene, no ritmo semanal do tempo, desta epifania da sua glória. O tema do domingo, como dia iluminado pelo triunfo de Cristo ressuscitado, está presente na Liturgia das Horas [32], e possui uma ênfase especial na vigília noturna que, nas Liturgias orientais, prepara e introduz o domingo. Reunindo-se neste dia, a Igreja, de geração em geração, torna própria a admiração de Zacarias, quando dirige o olhar para Cristo anunciando-O como «o sol nascente para iluminar os que se jazem nas trevas e na sombra da morte» (Lc 1,78-79), e vibra em sintonia com a alegria experimentada por Simeão quando tomou em seus braços o Deus Menino enviado como «luz para iluminar as nações» (Lc 2,32).

O dia do dom do Espírito
28. Dia de luz, o domingo poderia chamar-se também, com referência ao Espírito Santo, dia do «fogo». A luz de Cristo, de fato, liga-se intimamente com o «fogo» do Espírito, e ambas as imagens indicam o sentido do domingo cristão [33]. Mostrando-Se aos Apóstolos no entardecer do dia de Páscoa, Jesus soprou sobre eles e disse: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, estes lhes serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, estes lhes serão retidos» (Jo 20,22-23). A efusão do Espírito foi o grande dom do Ressuscitado aos seus discípulos no domingo de Páscoa. Era também domingo, quando, cinquenta dias após a Ressurreição, o Espírito desceu com força, como «vento impetuoso» e «fogo» (At 2,2-3) sobre os Apóstolos reunidos com Maria. O Pentecostes não é só um acontecimento das origens, mas um mistério que anima perenemente a Igreja [34]. Se tal acontecimento tem o seu tempo litúrgico forte na celebração anual com que se encerra o «grande domingo» [35], ele permanece também inscrito, precisamente pela sua íntima ligação com o Mistério Pascal, no sentido profundo de cada domingo. A «Páscoa da semana» torna-se assim, de certa forma, «Pentecostes da semana», no qual os cristãos revivem a experiência feliz do encontro dos Apóstolos com o Ressuscitado, deixando-se vivificar pelo sopro do seu Espírito.

O dia da fé
29. Por todas estas dimensões que o caracterizam, o domingo revela-se como o dia da fé por excelência. Nele, o Espírito Santo, «memória» viva da Igreja (cf. Jo 14,26), faz da primeira manifestação do Ressuscitado um evento que se renova no «hoje» de cada um dos discípulos de Cristo. Encontrando-O na assembleia dominical, os crentes sentem-se interpelados como o apóstolo Tomé: «Chega aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente» (Jo 20,27). Sim, o domingo é o dia da fé. Salienta-o o fato de a Liturgia dominical, como de resto a das solenidades litúrgicas, prever a profissão de fé. O «Credo», recitado ou cantado, põe em relevo o caráter batismal e pascal do domingo, fazendo deste o dia em que, por título especial, o batizado renova a própria adesão a Cristo e ao seu Evangelho, numa consciência mais viva das promessas batismais. Acolhendo a Palavra e recebendo o Corpo do Senhor, ele contempla Jesus ressuscitado, presente nos «sinais sagrados», e confessa com o apóstolo Tomé: «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20,28).

Um dia irrenunciável!
30. Compreende-se assim, porque mesmo no contexto das dificuldades do nosso tempo, a identidade deste dia deva ser salvaguardada e, sobretudo, vivida profundamente. Um autor oriental, do início do século III, conta que em toda a região os crentes, já então, santificavam regularmente o domingo [36]. A prática espontânea tornou-se depois, norma sancionada juridicamente: o dia do Senhor ritmou a história bimilenária da Igreja. Como se poderia pensar que ele deixe de marcar o seu futuro? Os problemas que, no nosso tempo, podem tornar mais difícil a prática do dever dominical, não deixam de sensibilizar a Igreja permanecendo maternalmente atenta às condições de cada um dos seus filhos. De modo particular, ela sente-se chamada a um novo esforço catequético e pastoral, para que nenhum deles, nas condições normais de vida, fique privado do abundante fluxo de graças que a celebração do dia do Senhor traz consigo. Dentro do mesmo espírito, tomando posição acerca de hipóteses de reforma do calendário eclesial em concomitância com variações dos sistemas do calendário civil, o Concílio Ecumênico Vaticano II declarou que a Igreja «não se opõe àqueles que conservam a semana de sete dias, com o respectivo domingo» [37]. No limiar do terceiro milênio, a celebração do domingo cristão, pelos significados que evoca e as dimensões que implica, relativamente aos fundamentos mesmos da fé, permanece um elemento qualificante da identidade cristã.


Notas
[1] cfAp 1,10: «Kyriake heméra»; cf. também Didaché 14,1; Santo Inácio de Antioquia, Aos cristãos da Magnésia 9,1-2: SC 10, 88-89.
[2] Pseudo-Eusébio de Alexandria, Sermão 16: PG 86, 416.
[3] In die dominica Paschae II, 52: CCL 78, 550.
[4] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 106.
[5] ibid.
[6] cf. Motu proprio Mysterii paschalis (14 de fevereiro de 1969).
[7] cf. Nota pastoral da Conferência Episcopal Italiana, « Il giorno del Signore » (15 de julho de 1984), n. 5.
[8] Sacrosanctum Concilium, 106.
[9] Homilia no início do Pontificado (22 de outubro de 1978), 5.
[10] Encíclica Laborem exercens, n. 25..
[11] Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 34.
[12] O sábado é vivido pelos nossos irmãos hebreus com uma espiritualidade «esponsal», como resulta, por exemplo, dos textos do Gênesis Rabbah X, 9 e XI, 8 (cf. Jacob Neusner, Genesis Rabbah, vol. I (Atlanta, 1985), 107 e 117). De tom nupcial, é também o cântico Leka dôdi: «O teu Deus Se alegrará por ti, como é feliz o esposo com a esposa (...). Para o meio dos fiéis do teu povo predileto vem, ó esposa, rainha do shabbat» (cf. Prece vespertina do sábado, de A. Toaff (Roma, 1968-69), p. 3.
[13] cf. A. J. Heschel, The sabbath. Its meaning for modern man, 22 ed., 1995, pp. 3-24.
[14] «Verum autem sabbatum ipsum redemptorem nostrum Iesum Christum Dominum habemus»: Epis. 13,1: CCL 140A, 992.
[15] Epistula ad Decentium XXV, 4, 7: PL 20, 555.
[16] Homiliae in Hexaemeron II, 8: SC 26, 184.
[17] In Io. ev. tractatus XX, 20, 2: CCL 36, 203; Epist. 55, 2: CSEL 34, 170-171.
[18] Esta referência à Ressurreição é particularmente visível na língua russa, onde domingo se diz precisamente voskresén'e, «ressurreição».
[19] Epistula 10, 96, 7.
[20] Cf. ibid. A propósito da referência feita pela carta de Plínio, também Tertuliano lembra os coetus antelucani, em Apologeticum 2,6: CCL 1, 88; De corona 3,3: CCL 2, 1043.
[21] Aos cristãos da Magnésia 9, 1-2: SC 10, 88-89.
[22] Sermo 8 in octava Paschalis 1, 4: PL 46, 841. Este caráter de «primeiro dia» próprio do domingo é evidente no calendário litúrgico latino, onde a segunda-feira se diz feria secunda, a terça, feria tertia, etc. Tal denominação dos dias da semana encontra-se na língua portuguesa.
[23] S. Gregório de Nissa, De castigationePG 46, 309. Também na Liturgia Maronita se sublinha a ligação entre o sábado e o domingo, a partir do «mistério do Sábado Santo» (cf. M. Hayek, Maronite (Eglise): Dictionnaire de spiritualité, X, 1980, 632-644).
[24] Ritual do Batismo das crianças, n. 9; cf. Ritual da iniciação cristã dos adultos, n. 59.
[25] cfMissal Romano, Rito para a aspersão dominical da água benta.
[26] cf. Sobre o Espírito Santo, 27, 66: SC 17, 484-485. Ver também Epístola de Barnabé 15, 8-9: SC 172, 186-189; Justino, Diálogo com Trifão 24.138: PG 6,528 e 793; Orígenes, Comentário sobre os Salmos, Salmo 118 (119), 1: PG 12, 1588.
[27] «Domine, praestitisti nobis pacem quietis, pacem sabbati, pacem sine vespera»: Conf., 13, 50: CCL 27, 272.
[28] cf. S. Agostinho, Epist. 55, 17: CSEL 34, 188: «Ita ergo erit octavus, qui primus, ut prima vita sed aeterna reddatur».
[29] No inglês, por exemplo, Sunday, e no alemão Sonntag.
[30] Apologia I, 67: PG 6,430.
[31] cf. S. Máximo de Turim, Sermo 44, 1: CCL 23, 178; idemSermo 53, 2: CCL 12, 219; Eusébio de Cesareia, Comm. in Ps 91: PG 23, 1169-1173.
[32] Veja-se, por exemplo, o hino para o Ofício das Leituras: «Dies aestasque ceteris octava splendet sanctior in te quam, Iesuconsecras primitiae surgentium » (I semana); e também: «Salve dies, dierum gloria, dies felix Christi victoria, dies digna iugi laetitia dies prima. Lux divina caecis irradiat, in qua Christus infernum spoliat, mortem vincit et reconciliat summis ima» (II semana). Idênticas expressões aparecem em hinos adotados na Liturgia das Horas de diversas línguas modernas.
[33] cf. Clemente de Alexandria, Stromates, VI, 138, 1-2: PG 9,364.
[34] cf. João Paulo II, Carta Enc. Dominum et vivificantem (18 de maio de 1986), 22-26.
[35] S. Atanásio de Alexandria, Cartas dominicais, 1,10: PG 26,1366.
[36] cf. Bardesane, Diálogo sobre o destino, 46: PS 2, 606-607.
[37] Sacrosanctum Concilium, Apêndice: Declaração sobre a reforma do calendário.

Fonte: Santa Sé.

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