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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Homilias do Patriarca de Lisboa: Natal 2018

Publicamos aqui as homilias de Natal (Missa da Noite e Missa do Dia) do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente neste ano de 2018:

Homilia: Missa da Noite de Natal
"É urgente o Natal, na grande hospedaria do mundo"

Em cada Natal algo de novo acontece, começando em nós próprios e antes de mais como expectativa. Seja o que for a vida, mais fácil ou mais sofrida, há como que um suplemento de alma para o que possa acontecer de bom e de belo. Em nós, à nossa volta e no mundo inteiro.
Impressiona verificar isto mesmo, entre tanta notícia que se dá e recebe, entre tantas palavras que se dizem, entre tantas mensagens que se trocam. Como se nunca conseguíssemos esgotar o anseio mais profundo, que não só mantemos, mas sobretudo nos mantém a nós. Ser realmente humano é não desistir do divino e o destino da terra é finalmente o céu.
Os antigos cristãos colocaram nesta altura a celebração do nascimento de Jesus, certamente por coincidir com o solstício do Inverno, quando os dias recomeçam a crescer. Mas a razão do que sentimos e esperamos é bem maior do que o simples calendário. Ou, se quisermos, resulta da absorção do calendário, que passou a marcar um tempo interior e definitivo. O de um solstício absoluto, que não decresce nunca.    
Terá sombras, certamente, como as que nos podem obscurecer o mundo ou a alma. E não faltaram nem faltam, físicas ou morais, no pequeno mundo de cada um e no grande mundo de nós todos, pessoas, países e a terra inteira. Aí mesmo, onde tanto contrastam promessas e desenganos, opulências de uns tantos e misérias de multidões, infidelidades próprias e alheias, graves contradições do que devíamos ser. 
Sombras sim e muitas. E, no entanto, o Natal persiste como promessa, como possibilidade de ser doutra maneira, da melhor maneira. Nas sociedades a que o anúncio chegou, o seu bom espírito manifesta-se e muito para além dos próprios crentes e entre crentes de vários credos.
O nascimento de Cristo suscita-nos o renascimento do mundo, como uma criança que nasce, para crescer sempre e se projetar muito além. As famílias reencontram-se, cresce a atenção aos outros, os gestos solidários aumentam. Por isso se diz que “o Natal havia de ser todos os dias”. Como realmente pode ser.
Pode ser, desde que lhe demos o lugar devido, como acontecimento e significado. O Evangelho refere que Jesus nasceu numa manjedoura, porque não havia lugar na hospedaria. Continua a ser este o verdadeiro problema, o de não haver lugar. Não há lugar para Jesus quando não há lugar para os outros, com quem Ele se identifica. Se quisermos uma linguagem mais “teológica”, diremos que os outros ganham, no Natal de Jesus que em cada um se alarga, uma densidade absoluta, indispensável e irrepetível. Diremos que só dá pelo Natal quem o acolhe nos outros, muito especialmente quando são pobres e frágeis, como o foi Jesus menino.
Não precisamos de enfeitar muito os presépios que fazemos, pois o encontramos no leito de quem está enfermo, no lar de quem está só, na rua dos que não têm abrigo, nas fronteiras dos procuram melhor vida, nas prisões físicas ou morais em que a vida encerra a tantos.
Há dois mil anos o presépio era aquela manjedoura... Infelizmente, muito infelizmente mesmo, continua a não haver lugar para todos na grande hospedaria que o mundo podia realmente ser. Se o espírito natalício nos é dado, se a esperança renasce nestes dias, se desejamos um Natal continuado, façamos então doutra maneira e demos-lhe agora mais lugar. Lugar nas nossas cidades, para melhores condições dos que as habitam, com casas apropriadas para viverem famílias e conviverem gerações. Cidades certamente enriquecidas pelos que as visitam, mas sem dispensar os que nelas moram e são afinal o que têm de melhor para oferecer.
Se aquela criança tivesse nascido na hospedaria, onde tanta gente se albergava por aqueles dias, o acontecimento seria decerto mais notório. Assim o adivinharam os construtores de presépios, que foram juntando mais e mais figuras às de Jesus, Maria e José, às dos pastores que acorreram ou dos magos que chegaram depois. Essas inúmeras figuras acrescentadas indicam-nos o que o Natal podia ter sido então e sobretudo o que ele deve ser agora, como acontecimento total e para todos. 
É urgente que o Natal aconteça na grande hospedaria do mundo. Ainda que continue a ser humilde, pois esse é o modo habitual de Deus acontecer entre nós.  
Só assim o encontraremos de vez. De tudo quanto é imponente, mesmo que por momentos nos ofusque, acabamos por fugir. Submissão não é conversão. Os crentes pressentem o poder criador de Deus como algo que vem de dentro, um infinitamente pequeno que faz crescer a vida em tudo e em todos, de cada um para todos. Por isso escreveu Santo Agostinho que «Deus nos é mais íntimo do que o nosso próprio íntimo», ainda que nos seja infinitamente superior. Revemos isso mesmo naquele Jesus que nasceu tão pequeno, cresceu tão periférico, morreu entre outros condenados e desde há dois mil anos não deixa de nos atrair, religiosa e culturalmente também. 
O Natal enternece e comove porque acontece como semente lançada no lugar a que chamamos “coração”. E assim se faz coração do mundo, melhor sentido entre os pequenos – os que têm espírito de pobre e são os primeiros no Reino anunciado. Porque Deus é humilde, ao ponto de crescer entre nós como Jesus nasceu e cresceu.
Esta é a verdade que cada Natal nos propõe de dentro. Não a procuremos por fora, em festas sem encontro dos outros, em presentes que disfarçam a nossa ausência e decorações vazias de sentido. Não deixemos que o Menino continue a nascer numa manjedoura por não haver lugar na hospedaria. Na única hospedaria que pode conter a sua incomensurável pequenez – e que é o nosso coração. 
A grandeza das coisas pequenas é afinal a de cada ser humano, de quem Deus se abeira e onde Deus nos espera, na atenção concreta que lhe dermos, no gesto que agora mais urja, na companhia realmente feita. Façamo-lo já, na celebração em que todos estamos. Façamo-lo logo, onde ela há de continuar, no testemunho que dermos. Exercitemos hoje o Natal de todos os dias.

Sé de Lisboa, 24 de dezembro de 2018
+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Homilia: Missa do Dia de Natal 
"Para haver Natal no mundo inteiro"

De tudo o que acabamos de escutar – sendo certo que a Palavra de Deus nunca acabará – um trecho em especial ressoa, de Natal para Natal, sucessivamente luminoso, triste e promissor. É este do prólogo do Quarto Evangelho: «O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem. Estava no mundo, e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam. Mas àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filho de Deus».
Encontramos neste trecho tudo o que devíamos ser, da parte de Deus; tudo o que ainda não somos, por resistência nossa; tudo o que poderemos ser, pois não desaparece o desígnio. E tudo concentrado na aceitação ou não do que nos é oferecido em Cristo, cujo Natal celebramos.
«O Verbo era a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem». O Verbo é Cristo, em quem Deus totalmente se diz e ao seu desígnio sobre nós, esclarecendo o que Lhe pressentimos como criaturas e Lhe poderemos herdar como filhos. Precisamente como “filhos no Filho”, em Cristo, a sua Palavra que nos cumpre.
É impressionante verificar como de há dois mil anos para cá, tantos homens e mulheres, das mais diversas geografias e credos, ficaram e ficam tão deslumbrados com Jesus Cristo, sempre que acedem realmente ao seu Evangelho, sem as contrafações que outros, ou nós mesmos, lhe inflijamos. Concordemos que, sem Cristo, a história e a literatura, a música e as artes, a própria solidariedade humana, não teriam o mesmo brilho e motivação. E muito mais assim seria – e muito mais assim será! – se nos transfigurarmos com tanta luz.
«Mas o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu», continua o trecho. Impressiona também, e agora negativamente, o que lemos em tanta página evangélica. Em Nazaré, onde cresceu e viveu até aos trinta anos; na vida pública, onde tanto o seguiam por momentos como o abandonavam depois; e onde mantinham a cegueira da alma mesmo quando curava a cegueira dos olhos; em Jerusalém, onde passaram tão depressa do alvoroço dos ramos às trevas do Gólgota…
Somemos dois milênios e continua o drama, quando não é tragédia. Mas temos na vida de Jesus Cristo a verdade que nos fez e refaz, num deslumbramento pascal que passa necessariamente pela cruz. Do presépio ao Tabor e do Tabor a Jerusalém, onde a morte se tornou ressurreição.
No seu Evangelho, Lucas narra assim o nascimento de Jesus, como ouvimos na Missa desta noite: «Quando eles ali se encontravam [José e Maria em Belém], completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 6-7). Maria “deu à luz” o seu Menino, mas os panos em que o envolveu anunciavam já os da sepultura, como aconteceu trinta e poucos anos depois; e o lugar que não teve na hospedaria continua a não encontrá-lo também hoje, tantas vezes e porventura entre nós, mesmo quando lhe fazemos presépios… 
O Natal não é fácil e a transfiguração exige tudo, como foi dito aos três discípulos no Tabor: Ficaram deslumbrados com aquela luz nunca vista, mas ficaram perplexos com o que aconteceria em Jerusalém. É de novo Evangelho de Lucas a precisá-lo: «Enquanto [Jesus] orava, o aspeto do seu rosto modificou-se, e as suas vestes tornaram-se de uma brancura fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, os quais aparecendo, rodeados de glória, falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém» (Lc 9,29-31).A luz do Natal quase cega, para nos revermos depois na luz pascal, na verdade inteira de Jesus, se a recebermos inteiramente também. Se assim não for, se a quisermos reduzir a meras iluminações da quadra, ou a distrações que por vezes a contradizem em absoluto, continuarão a ressoar, graves e pesadas, aquelas palavras do prólogo de João, há pouco ouvidas, que devemos reter como séria advertência, para nós agora: «Estava no mundo, e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam».
Há Natal de Cristo a cumprir em muito lado e aqui bem perto. Sabemos bem onde havemos de O receber, acolhendo todos aqueles com quem especialmente se identifica: os mais pobres, os mais sós, os mais frágeis, tenham o nome que tiverem e venham donde vierem, na vasta geografia do mundo.
Mas sejamos felizes hoje, como Cristo nos quer e nos merece. Como continuava o trecho evangélico: «Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus».
Reparemos na sequência, tão promissora como obrigatória, passo a passo. Primeiro receber a Cristo, depois acreditar nele, só assim podendo alcançar a filiação divina.
Receber a Cristo e como Ele se oferece, em continuado Natal. Tão simples e desprovido como na manjedoura que lhe sobrou apenas. Como em cada pessoa que nos cerque ou procuremos, simples naquilo que é – ou ainda não é – e desprovida do que não tem e devia ter, no que respeita à vida, à companhia e ao bem-estar. Como no Evangelho se apresenta, tal e qual, e sem o truncarmos no que propõe e exige.   
Acreditar em Cristo, acreditar mesmo quando parece demasiado o que diz e grande demais o que nos pede. Repetir, sobretudo nessas alturas, o que Pedro lhe respondeu em bom momento, por si e pelos outros: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! Por isso nós cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus!» (Jo 6,68-69).

E assim mesmo, apenas assim, alcançando o que Cristo veio compartilhar connosco, da noite de Natal à alvorada de Páscoa: nada menos do que a filiação divina, cumprindo-se o desígnio de Deus, que para si nos criou e em Cristo nos recupera.  É o que desejamos mais profundamente e é o que Deus totalmente nos oferece no Natal de Cristo – em que podemos descobrir o anúncio da sua e nossa Páscoa. Como diria depois: «Saí do Pai e vim ao mundo, agora deixo o mundo e vou para o Pai» (Jo 16,28). Vamos então com Ele, único modo de nos realizarmos plenamente em Deus, como seus filhos também (cf. Jo 14,6). 
Do Natal à Páscoa está o caminho aberto. Importa que o percorramos, porque tudo espera que o Evangelho de Cristo finalmente aconteça, convincente e pleno, e já nas nossas vidas. Como São Paulo divisou e escreveu: «A criação encontra-se em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19).
Respondamos a tal expetativa. Façamo-lo já hoje, aqui e onde formos, filhos de Deus em Cristo, pela atenção aos outros, pelo cuidado de cada um, pela caridade ativa. É uma altura de muitos “presentes”, no sentido corrente do termo. Seja altura, isso sim, para acolhermos o presente absoluto de Deus, que quer nascer nas nossa vidas, para haver Natal no mundo inteiro!

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2018
+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Fonte: Patriarcado de Lisboa

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