Dentro das suas Catequeses sobre Deus Pai, após as seções sobre “a criação do mundo e do homem” (nn. 24-32) e sobre “a Divina Providência” (nn. 33-41), o Papa São João Paulo II dedicou seis encontros a Deus como “Criador das coisas invisíveis”, isto é, dos anjos (nn. 42-47).
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
1.2 DEUS CRIADOR E PROVIDENTE
III. Os anjos e os demônios (nn. 42-47)
42. “Criador das coisas visíveis e invisíveis”
João Paulo II - 09 de julho de 1986
1. Não poderíamos concluir nossas
catequeses sobre Deus, Criador do mundo, sem dedicar a adequada atenção a um
conteúdo preciso da Revelação divina: a criação dos seres puramente
espirituais, que a Sagrada Escritura chama “anjos”. Tal criação aparece
claramente nos Símbolos da Fé, particularmente no Símbolo Niceno-Constantinopolitano:
“Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as
coisas (isto é, entes ou seres) visíveis e invisíveis”. Sabemos que o homem possui,
dentro da criação, uma posição singular: graças ao seu corpo pertence ao mundo
visível, enquanto por sua alma espiritual, que vivifica o corpo, ele se encontra
quase nos confins entre a criação visível e a invisível. A esta
última, segundo o Credo que a Igreja professa à luz da Revelação, pertencem outros
seres, puramente espirituais, e, portanto, não próprios do mundo visível,
ainda que presentes e atuantes nele. Eles constituem um mundo específico.
Deus Pai rodeado por anjos (Bernardino Poccetti) |
2. Hoje, como nos tempos passados,
se discute com maior ou menor sabedoria sobre estes seres espirituais. É
preciso reconhecer que às vezes a confusão é grande, com o consequente risco de
fazer passar como fé da Igreja sobre os anjos coisas que não pertencem à fé ou,
ao contrário, de deixar de lado algum aspecto importante da verdade revelada. A
existência dos seres espirituais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente “anjos”, era
negada já nos tempos de Cristo pelos saduceus (cf. At 23,8).
Negam-na também os materialistas e os racionalistas de todos os tempos.
No entanto, como agudamente observa um teólogo moderno, “se quiséssemos nos livrar
dos anjos, deveríamos revisar radicalmente a própria Sagrada Escritura, e com
ela toda a história da salvação” (A. Winklhofer, Die Welt der Engel,
Ettal, 1961, p. 144, nota 2; in: Mysterium salutis, II, 2, p.
726). A Tradição é unânime sobre esta questão. O Credo da Igreja, no
fundo, é um eco daquilo que Paulo escreve aos colossenses: “Pois é n’Ele [Cristo]
que foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, os seres visíveis e os
invisíveis, tronos, dominações, principados, potestades; tudo foi criado
por Ele e para Ele” (Cl 1,16). Ou seja: Cristo que, como Filho-Verbo
eterno e consubstancial ao Pai, é “primogênito de toda criação” (Cl 1,15),
está no centro do universo como razão e pedra angular de toda a criação, como já
vimos nas catequeses anteriores e como ainda veremos quando falarmos mais diretamente
d’Ele.
3. A referência ao “primado” de
Cristo nos ajuda a compreender que a verdade sobre a existência e a ação dos anjos
(bons e maus) não constitui o conteúdo central da Palavra de Deus. Na Revelação
Deus fala em primeiro lugar “aos homens... e convive com eles (Br 3,38) a
fim de convidá-los à comunhão com Ele e de nela os acolher”, como lemos na
Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II (n. 2). Assim, “a verdade
mais profunda acerca de Deus e da salvação dos homens” é o conteúdo central da
Revelação, que “resplandece” mais plenamente na pessoa de Cristo (ibid.).
A verdade sobre os anjos é, em certo sentido, “colateral”, embora inseparável da
Revelação central, que é a existência, a majestade e a glória do Criador que refulgem
em toda a criação, “visível e invisível”, e na ação salvífica de Deus na história
do homem. Os anjos não são, pois, criaturas de primeiro plano na
realidade da Revelação, embora pertençam plenamente a ela, tanto que em alguns
momentos os vemos cumprir missões fundamentais em nome do próprio Deus.
4. Tudo o que pertence à criação
entra, segundo a Revelação, no mistério da Divina Providência. Afirma-o de modo
exemplarmente conciso o Concílio Vaticano I, que já citamos muitas vezes: “Tudo
o que criou, Deus o conserva e governa com sua Providência ‘alcançando com
força de uma extremidade a outra, e dispondo com suavidade todas as coisas’ (cf. Sb 8,1).
Pois ‘tudo está nu e descoberto aos seus olhos’ (cf. Hb 4,13),
mesmo o que há de acontecer por livre ação das criaturas” (Denzinger, n. 3003).
A Providência abrange, portanto, também o mundo dos espíritos puros, que ainda
mais plenamente que os homens são seres racionais e livres. Na Sagrada
Escritura encontramos preciosas indicações a respeito. Há inclusive a
revelação de um drama misterioso, mas real, que afetou estas criaturas
angélicas, sem que nada escapasse à eterna Sabedoria, a qual com força (fortiter)
e ao mesmo tempo com bondade (suaviter) leva tudo a cumprimento no reino
do Padre e do Filho e do Espírito Santo.
5. Reconheçamos antes de tudo que a Providência,
como amorosa Sabedoria de Deus, manifestou-se precisamente no criar
seres puramente espirituais, através dos quais a semelhança de Deus poderia ser
melhor expressa, a qual supera em muito tudo o que foi criado no mundo visível
junto com o homem, também ele imagem indelével de Deus. Deus, que é Espírito
absolutamente perfeito, se reflete sobretudo nos seres espirituais que, por
natureza - isto é, por causa da sua “espiritualidade” - estão muito mais próximos
d’Ele que as criaturas materiais e que constituem quase que o “ambiente” mais
próximo ao Criador. A Sagrada Escritura oferece um testemunho bastante
explícito desta máxima proximidade a Deus dos anjos, dos quais fala, em linguagem
figurada, como do “trono” de Deus, dos seus “exércitos”, do seu “céu”. A
Escritura inspirou a poesia e a arte dos séculos cristãos, que nos apresentam os
anjos como a “corte de Deus”.
43. “Criador dos anjos, seres livres”
João Paulo II - 23 de julho de 1986
1. Prosseguimos hoje nossa
catequese sobre os anjos, cuja existência, desejada por um ato do amor eterno
de Deus, professamos com as palavras do Símbolo Niceno-Constantinopolitano: “Creio
em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas
visíveis e invisíveis”.
Na perfeição da sua natureza
espiritual, os anjos são chamados desde o princípio, em virtude da sua inteligência,
a conhecer a verdade e a amar o bem que conhecem na verdade de modo muito mais
pleno e perfeito do que é possível ao homem. Este amor é o ato de uma vontade
livre, pois também para os anjos a liberdade significa possibilidade de fazer
uma escolha a favor ou contra o bem que conhecem, isto é, Deus mesmo. É
preciso repetir aqui o que já recordamos a respeito do homem: criando os seres
livres, Deus quer que no mundo se realize aquele amor verdadeiro
que só é possível sobre a base da liberdade. Ele quis, pois, que a criatura,
constituída à imagem e semelhança do seu Criador, pudesse, da forma mais plena
possível, tornar-se semelhante a Ele, Deus, que “é amor” (1Jo 4,16).
Criando os espíritos puros como seres livres, Deus, em sua Providência, não podia
não prever também a possibilidade do pecado dos anjos. Mas justamente
porque a Providência é eterna sabedoria que ama, Deus soube tirar da história deste
pecado, incomparavelmente mais radical enquanto pecado de um espírito
puro, o definitivo bem de todo o cosmos criado.
2. De fato, como diz claramente a
Revelação, o mundo dos espíritos puros aparece dividido entre bons e maus.
Pois bem, esta divisão não se realizou por criação de Deus, mas em base à
liberdade própria da natureza espiritual de cada um deles. Realizou-se mediante
a escolha, que para os seres puramente espirituais possui um caráter incomparavelmente mais
radical que a do homem e é irreversível, dado o grau de intuição e de
penetração do bem do qual está dotada sua inteligência. A este respeito se deve
dizer também que os espíritos puros foram submetidos a uma prova de caráter
moral. Foi uma escolha decisiva, concernente antes de tudo a Deus mesmo, um Deus
conhecido de modo mais essencial e direto do que é possível ao homem, um Deus
que a esses seres espirituais havia feito o dom, antes que ao homem, de
participar da sua natureza divina.
3. No caso dos espíritos puros a escolha decisiva diz
respeito antes de tudo a Deus mesmo, primeiro e supremo Bem, aceitado
ou rejeitado de um modo mais essencial e direto do que poderia acontecer no raio
de ação da livre vontade do homem. Os espíritos puros possuem um conhecimento
de Deus incomparavelmente mais perfeito que o homem, porque com a potência
da sua inteligência, não condicionada nem limitada pela mediação do conhecimento
sensível, veem até o fundo a grandeza do Ser infinito, da primeira Verdade, do
sumo Bem. A esta sublime capacidade de conhecimento dos espíritos puros Deus ofereceu
o mistério da sua divindade, tornando-os assim participantes, mediante a graça,
da sua infinita glória. Justamente porque seres de natureza espiritual, há em seu
intelecto a capacidade, o desejo desta elevação sobrenatural à qual Deus lhes havia
chamado, para fazer deles, muito antes do homem, “participantes da natureza
divina” (cf. 2Pd 1,4), participantes da vida íntima d’Aquele que
é Pai e Filho e Espírito Santo, d’Aquele que, na comunhão das três Pessoas Divinas,
“é Amor” (1Jo 4,16). Deus havia admitido todos os espíritos puros,
antes e em maior grau do que o homem, à eterna comunhão do amor.
4. A escolha realizada sobre a
base da verdade de Deus, conhecida de forma superior dada a lucidez de suas
inteligências, dividiu também o mundo dos espíritos puros em bons e maus. Os
bons escolheram Deus como Bem supremo e definitivo, conhecido à luz da inteligência
iluminada pela Revelação. Ter escolhido Deus significa que se voltaram a Ele com
toda a força interior de sua liberdade, força que é amor. Deus se tornou o total
e definitivo objetivo da sua existência espiritual.
Os outros, ao contrário, “deram as
costas” a Deus, contra a verdade do conhecimento que indicava n’Ele o Bem
total e definitivo. Escolheram contra a Revelação do mistério de Deus, contra a
sua graça que os fazia participantes da Trindade e da eterna amizade com Deus na
comunhão com Ele mediante o amor. Baseando-se em sua liberdade criada, fizeram
uma escolha radical e irreversível, igual àquela dos anjos bons, mas diametralmente
oposta: no lugar de uma aceitação de Deus plena de amor, opuseram-lhe uma recusa
inspirada por um falso sentido de autossuficiência, de aversão e mesmo de ódio
que se transformou em rebelião.
5. Como compreender tal oposição e
rebelião a Deus em seres dotados de uma inteligência tão viva e enriquecidos com
tanta luz? Qual será o motivo de tal radical e irreversível opção contra Deus,
desse ódio tão profundo que pode aparecer como fruto da loucura? Os Padres da
Igreja e os teólogos não hesitam em falar de “cegueira” produzida pela supervalorização
da perfeição do próprio ser, levada ao ponto de “obscurecer” a supremacia de Deus,
que exigia em troca um ato de dócil e obediente submissão. Tudo isto parece
expresso de modo conciso nas palavras “Não servirei!” (Jr 2,20), que
manifestam a radical e irreversível recusa em tomar parte na edificação do
reino de Deus no mundo criado. “Satanás”, o espírito rebelde, quer seu próprio
reino, não o de Deus, e se ergue como primeiro “adversário” do Criador, como
opositor da Providência, como antagonista da amorosa sabedoria de Deus. Da
rebelião e do pecado de Satanás, como também daquele do homem, devemos concluir
acolhendo a sábia experiência da Escritura, que afirma: “No orgulho está a
perdição” (Tb 4,13).
Deus Pai rodeado por anjos (Pietro Perugino) |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (09 de julho e 23 de julho de 1986).
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