Com esta publicação concluímos as meditações do Padre Raniero Cantalamessa, então Pregador da Casa Pontifícia, sobre a teologia do Oriente e do Ocidente, proferidas durante a Quaresma de 2015 e repropostas aqui no contexto dos 1700 anos do I Concílio de Niceia (325).
Confira nesta quarta e última postagem a meditação sobre o mistério da salvação:
Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
V pregação de Quaresma
27 de março de 2015
Oriente e Ocidente perante o mistério da salvação
Com esta meditação
encerramos o nosso percurso pela fé comum do Oriente e do Ocidente, e o
encerramos com o que nos diz respeito mais diretamente: o problema da salvação,
ou seja, como ortodoxos e o mundo latino compreenderam o conteúdo da salvação
cristã.
É, provavelmente, o campo em
que é mais necessário para nós, latinos, voltar o olhar para o Oriente, a fim
de enriquecer e, em parte, corrigir o nosso modo difuso de conceber a redenção
operada por Cristo. Temos o privilégio de fazê-lo nesta Capela, onde a obra de
Cristo e do mistério da salvação foi representada pela arte do Padre Rupnik, de
acordo com a concepção da Igreja do Oriente e da iconografia bizantina.
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Juízo final, tendo ao centro Cristo Redentor |
Vamos começar com uma
autorizada apresentação do modo diferente de entender a salvação entre Oriente
e Ocidente, exposta no Dictionnaire
de Spiritualité e que
sintetiza a opinião dominante nos círculos teológicos:
“O propósito da vida para os
cristãos gregos é a divinização; o dos cristãos do Ocidente é a conquista da
santidade... O Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para restituir ao
homem a semelhança divina perdida em Adão e para divinizá-lo. De acordo com os
latinos, Ele se fez homem para redimir a humanidade... e para pagar a dívida
devida à justiça de Deus” [1].
Procuraremos ver em que se
baseia essa diferença de visão e o que há de verdadeiro na maneira de
apresentá-la.
1. Os dois elementos da salvação na Escritura
Nas profecias do Antigo
Testamento que anunciam “a nova e eterna aliança” já se nota a presença de dois
elementos fundamentais: um negativo, que consiste na eliminação do pecado e do
mal em geral; e um positivo, que consiste no dom de um coração novo e de um
espírito novo; em outras palavras, na destruição das obras do homem e na
reedificação ou restauração da obra de Deus. Um texto claro, neste sentido, é
este de Ezequiel:
“Derramarei sobre vós uma
água pura, e sereis purificados. Eu vos purificarei de todas as impurezas e de
todos os ídolos. Eu vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro
de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de
carne; porei meu espírito dentro de vós e farei com que sigais a minha lei e
cuideis de observar os meus mandamentos” (Ez 36,25-27).
Existe algo que Deus tirará
do homem: a iniquidade, o coração de pedra, e algo que Ele colocará no homem:
um coração novo, um espírito novo. No Novo Testamento, esses dois componentes
são evidentes. Desde o início do Evangelho, João Batista apresenta Jesus como
“o Cordeiro que tira o pecado do mundo”, mas também como “Aquele que batiza no
Espírito Santo” (Jo 1,29.33). Nos Sinóticos prevalece o aspecto da
redenção do pecado: Jesus aplica a si, em várias ocasiões, a figura do Servo de
Yahweh que toma sobre si e expia os pecados do povo (cf. Is 52,13–53,9);
na instituição da Eucaristia, Ele fala do seu sangue derramado “para a remissão
dos pecados” (Mt 26,28).
Em João também está presente
este aspecto, ligado, precisamente, ao tema do Cordeiro de Deus que tira os
pecados do mundo. A sua Primeira Carta apresenta Jesus como “a vítima de
expiação pelos nossos pecados; e só pelos nossos, mas também pelos pecados do
mundo inteiro” (1Jo 2,2). Mais acentuado, porém, é o elemento positivo
em João. Com o Verbo feito carne, veio ao mundo a luz, a verdade, a vida eterna
e a plenitude de toda a graça (cf. Jo 1,16). O fruto da Morte de Jesus mais
enfatizado não é a expiação dos pecados, mas o dom do Espírito (cf. Jo
7,39; 19,34).
Em São Paulo vemos estes
dois elementos em perfeito equilíbrio. Na Carta aos Romanos, que podemos
considerar a primeira exposição fundamentada da salvação cristã, ele primeiro
destaca aquilo de que Cristo, com a sua Morte na cruz (Rm 3,25), veio
nos libertar: a morte, o pecado e a lei (Rm 5–7); em seguida, no oitavo
capítulo, ele expõe todo o esplendor daquilo que Cristo, por meio da sua Morte
e Ressurreição, trouxe para o homem: o Espírito Santo e, com Ele, a filiação
divina, o amor de Deus e a certeza da glorificação final. Os dois elementos
estão presentes no próprio coração do querigma. Jesus “foi condenado à morte
pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação” (Rm 4,25);
por “justificação” não se quer falar apenas da remissão dos pecados, mas também
do que é dito em seguida no texto: da graça, da paz com Deus, da fé, da
esperança, do amor de Deus derramado em nossos corações (Rm 5,1-5).
Como sempre, na passagem da
Escritura para os Padres da Igreja, observa-se uma recepção diferente desses
dois elementos. De acordo com a opinião comum, resumida por Bardy no texto
citado, o Oriente incorporou o elemento positivo da salvação: a divinização do
homem e a restauração da imagem de Deus; o Ocidente recebeu o elemento negativo:
a libertação do pecado. A realidade é muito mais complexa e a tentativa de
esclarecê-la facilitará a mútua compreensão.
Vamos corrigir, primeiro,
algumas generalizações que fazem as duas visões da salvação parecerem mais
distantes uma da outra do que de fato estão. Não é de admirar, antes de tudo,
se, no âmbito latino, não encontramos alguns conceitos centrais para os gregos,
como o de “divinização” e “restauração da imagem de Deus”. Eles não aparecem,
como tais, no Novo Testamento, que é a única fonte comum, embora tenham servido
para transmitir um modo primorosamente bíblico de entender a salvação. O
próprio termo theosis, divinização,
despertava reservas devido ao uso que dele se fazia na linguagem pagã e na da
Roma imperial (apotheosis).
Os latinos expressaram de
preferência o efeito positivo do Batismo com o conceito paulino da filiação
divina. De acordo com São João da Cruz, realizam-se na alma cristã, pela graça,
as operações que ocorrem por natureza na Trindade: uma doutrina que não é
distante da visão ortodoxa da deificação, mas baseada na afirmação joanina da
inabitação da Trindade (cf. Jo 14,23) [2].
Outra observação. Não é
inteiramente verdade que a soteriologia ortodoxa se resuma na visão ontológica da divinização e a ocidental na teoria jurídica de Santo Anselmo, da expiação devida
ao pecado. A ideia de sacrifício pelo pecado, de redenção, de pagamento de uma
dívida (e até mesmo, em alguns casos, de um resgate pago ao diabo!) está
presente em Santo Atanásio, em São Basílio, em São Gregório de Nissa e em São
João Crisóstomo não menos do que nos seus contemporâneos latinos. Basta, a respeito,
consultar uma boa reconstrução do pensamento cristão das origens [3]. Um texto
entre os muitos é este, de Atanásio, que é também um dos mais determinados
defensores da tese de divinização:
“Restava ainda a pagar a
dívida que todos devíamos, porque estávamos todos condenados à morte, e esta
foi a causa principal da sua vinda até nós. É por isso que, depois de revelar a
sua divindade com as obras, restava-lhe oferecer o sacrifício por todos,
cedendo o templo do seu corpo à morte por todos” [4].
Para estes Padres gregos
antigos, o Mistério Pascal de Cristo é ainda parte integrante e caminho para a
divinização, inclusive na época bizantina. Para Nicolau Cabasilas, havia dois
muros que impediam a comunicação entre Deus e nós: a natureza e o pecado. “O
primeiro foi retirado pelo Salvador com a sua Encarnação; o segundo, com a Crucificação,
pois a cruz destruiu o pecado” [5].
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Ícone copta da Última Vinda de Cristo |
Apenas em alguns casos é que
vemos afirmar-se, no seio da Ortodoxia, a ideia de uma salvação da humanidade
realizada à raiz da própria Encarnação do Verbo, entendida como a assunção não
de uma humanidade singular, mas da natureza humana presente em todos os homens,
à maneira do universal platônico. Em um caso extremo, a divinização ocorre antes
mesmo do Batismo. Escreve São Simeão, o Novo Teólogo:
“Descendo do teu santuário
excelso sem te apartares do seio do Pai, e encarnado e nascido da Santa Virgem
Maria, já então me replasmaste e vivificaste, liberto da culpa dos nossos
primeiros pais e preparada a ascensão ao céu. Em seguida, depois de me teres
criado e feito aos poucos crescer, tu, também em teu santo Batismo da nova
criação, me renovaste e ornaste com o Espírito Santo” [6].
Até aqui, portanto, as
diferentes teorias da salvação não são tão fortemente divididas entre Oriente e
Ocidente como se costuma acreditar. A diferença é clara e constante, desde o
início até hoje, na compreensão do pecado original e, portanto, no efeito
primário do Batismo. Os orientais nunca entenderam o pecado original no sentido
de uma verdadeira “culpa” hereditária, mas como a transmissão de uma natureza
ferida e propensa ao pecado, como uma perda progressiva da imagem de Deus no
homem, não só devida ao pecado de Adão, mas ao de todas as gerações sucessivas.
Com o Símbolo Niceno-Constantinopolitano,
todos professam “um só Batismo para a remissão dos pecados”, mas, para os
orientais, o Batismo não tem principalmente o escopo de tirar o pecado original
(nas crianças, não tem de forma alguma este escopo), mas sim o de libertar o
homem do poder do pecado em geral, restaurar a imagem de Deus perdida e inserir
a criatura no novo Adão, que é Cristo. Esta perspectiva diferente se reflete,
por exemplo, na imagem que temos da Virgem Maria. No Ocidente, ela é vista como
“Imaculada”, ou seja, concebida sem o pecado (mácula) original, inclusive com a
definição dogmática deste título; no Oriente, o título correspondente é o de Panagia, a “Toda Santa”.
2. Uma comparação assimétrica
Não preciso me debruçar
longamente sobre o modo ocidental de conceber a salvação operada por Cristo,
porque ele nos é mais familiar. Digamos apenas que acontece aqui um paradoxo
notável. Aquele que foi, em todo o Cristianismo, o cantor por excelência da
graça, aquele que destacou melhor do que todos a sua novidade no tocante à lei
e a sua necessidade absoluta para a salvação, aquele que identificou tal dom
com o próprio Doador, que é o Espírito Santo, foi também aquele que, por
circunstâncias históricas, mais contribuiu para restringir o seu campo de ação.
A polêmica com os pelagianos
levou Agostinho a destacar, da graça, especialmente o aspecto de preservação e
cura do pecado, a chamada graça preveniente, adjuvante, sanante. A sua doutrina
do pecado original como verdadeira culpa hereditária, transmitida no ato da
geração sexual, fez com que o Batismo fosse visto prevalentemente como
libertação do pecado original.
Nem Agostinho nem outros
depois dele silenciaram quanto aos demais bens do Batismo: a filiação divina, a
inserção no corpo de Cristo, o dom do Espírito e tantos outros magníficos dons.
O fato, porém, é que, no modo de administrá-lo e na opinião geral, o aspecto
negativo de libertação do pecado original prevaleceu sempre sobre o positivo de
dom do Espírito Santo (sendo este atribuído mais destacadamente ao sacramento
da Confirmação). Mesmo hoje, quando se pergunta a um cristão o que significa
estar “em graça de Deus” ou viver “em graça”, a resposta é quase sempre viver
sem pecados mortais na consciência.
É a consequência inevitável
de todas as heresias: a de forçar a teologia a se concentrar momentaneamente em
um ponto da doutrina em detrimento do todo. É um fato normal em muitos momentos
do desenvolvimento do dogma. Foi isto o que levou alguns autores alexandrinos
ao limite do monofisismo para se oporem ao nestorianismo, e vice-versa. E o que
foi que fez com que a ruptura momentânea do equilíbrio, no caso de Agostinho,
fosse tão diferente e tão duradoura? A resposta é simples: a sua própria
estatura e autoridade solitária!
Houve, depois dele, quem
propusesse uma explicação diferente e mais próxima da dos gregos: João Duns
Scotus (1265-1308). O fim principal da Encarnação não é, para ele, a redenção
do pecado, mas a restauração de todas as coisas em Cristo, “em vista do qual
todas as coisas foram criadas” (Cl 1,15ss); o objetivo é a união, em
Cristo, da natureza divina com a humana [7]. A Encarnação, portanto, teria
ocorrido mesmo que Adão não tivesse pecado. O pecado de Adão só determinou a
modalidade desta recapitulação de todas as coisas em Cristo, tornando-a
“redentora”.
Mas a voz de Scotus ficou
isolada e só recentemente foi reavaliada pelos teólogos. A que se impôs foi
outra voz, que não reequilibrava o pensamento de Agostinho, mas o exasperava.
Falo de Lutero, que também teve o mérito, para toda a Cristandade, de recolocar
a Palavra de Deus, a Bíblia, no centro e no topo de tudo, inclusive das
palavras dos Padres, que são sempre palavras de homens. Com ele, a diferença em
relação ao Oriente, no entendimento da salvação, se torna realmente radical. À
teoria da divinização do homem opõe-se a tese de uma justiça imputada
extrinsecamente por Deus, que mantém o batizado “justo e pecador” ao mesmo
tempo: pecador em si mesmo, justo aos olhos de Deus.
Mas deixemos de lado este
desenvolvimento posterior, que merece uma discussão à parte. Voltando à
comparação entre a Ortodoxia e a Igreja católica, precisamos destacar um fato
que, aos olhos de alguns autores ortodoxos, fazia com que, no passado, a nossa
concepção da salvação e da vida cristã parecesse diferente da deles em quase
todos os pontos. Trata-se de uma assimetria de fundo. No Oriente, a teologia, a
espiritualidade e a mística são unidas; não se concebe uma teologia que não
seja também mística, isto é, experiencial. A reconstrução da posição ortodoxa é
feita levando-se em conta os teólogos, como os Capadócios, o Damasceno, Máximo,
o Confessor, mas também os movimentos espirituais, como os Padres do Deserto, o
hesicasmo, o monaquismo, o palamismo, a Filocalia, autores místicos como
Simeão, o Novo Teólogo, Serafim de Sarov, e assim por diante.
Infelizmente isto não
aconteceu no Ocidente, onde, inclusive no ensino, a mística e a espiritualidade
ocuparam, especialmente com o advento da Escolástica, um lugar diferente da
dogmática; mais do que isto: a mistura das coisas chegou a ser vista com
desconfiança. A comparação entre o Oriente e o Ocidente levaria a resultados
muito diferentes e muito menos conflitivos se fossem considerados os muitos
movimentos espirituais e autores místicos católicos nos quais a salvação cristã
não é teorizada, mas vivida.
Dos três livros já citados [8],
que são os que mais contribuíram para tornar conhecida no Ocidente a “teologia
mística” do Oriente cristão, só um menciona (duas vezes, e com tendência
negativa) São João da Cruz. No entanto, com o tema da “noite escura”, ele,
assim como vários outros no Ocidente, se coloca na linha da visão de Deus na
escuridão de São Gregório de Nissa. Nenhuma menção é feita ao monaquismo
ocidental, a São Francisco de Assis e à sua espiritualidade positiva e
cristocêntrica; a escritos místicos como a “Nuvem do Não-Conhecimento”, tão em
sintonia com o apofatismo da teologia oriental. Mas isto, repito, é culpa mais
nossa que dos autores orientais, se é que podemos falar de culpa. Fomos nós que
realizamos a nefasta separação entre teologia e espiritualidade e não podemos
pedir que os outros façam uma síntese que nem nós tentamos fazer ainda.
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Vitrais representando a “Jerusalém celeste” |
3. Uma chance para o Ocidente
Voltemos ao parecer de
Bardy, do qual partimos: o Oriente, diz ele, tem uma visão mais otimista e
positiva do homem e da salvação; o Ocidente, uma visão mais pessimista. Eu
gostaria de mostrar que, também neste caso, a regra de ouro no diálogo entre
Oriente e Ocidente não é a do aut
- aut (ou - ou), mas a do et - et (e - e). Se a
doutrina oriental, com a sua altíssima ideia da grandeza e da dignidade do
homem como imagem de Deus, destacou a possibilidade da Encarnação, a doutrina ocidental,
com a insistência no pecado e na miséria do homem, salientou a sua necessidade. Um discípulo
tardio de Agostinho, Blaise Pascal, observou:
“O conhecimento de Deus sem
o conhecimento da nossa miséria produz orgulho. O conhecimento da nossa miséria
sem o conhecimento de Deus produz desespero. O conhecimento de Jesus Cristo é o
ponto de equilíbrio, porque nele encontramos Deus e a nossa miséria” [9].
Para Agostinho, Santo
Anselmo, Lutero, a insistência na gravidade do pecado [10] era um modo diferente de enfatizar a
grandeza do remédio proporcionado por Cristo. Eles acentuavam “a abundância do
pecado” para exaltar “a superabundância da graça” (cf. Rm 5,20). Em
ambos os casos, a chave de tudo é a obra de Jesus, vista pelos orientais a
partir de um lado, por assim dizer, e pelos ocidentais a partir de outro. Os
dois lados são legítimos e necessários. Diante da explosão do “mal absoluto” na
Segunda Guerra Mundial, alguém notou até que ponto tinha chegado o esquecimento
desta amarga verdade sobre o homem, depois de dois séculos de ingênua fé no
supostamente imparável progresso do homem [11].
Onde está, então, a lacuna
da nossa soteriologia que nos faz ter que olhar para o Oriente? Está no fato de
que a graça, mesmo sendo exaltada, acabou reduzida, na prática, à sua dimensão
negativa de remédio para o pecado. Até o grito do Exsultet pascal - “Ó feliz culpa que nos
mereceu tão grande Redentor!” - se bem considerarmos, fica na perspectiva do
pecado e da redenção.
É precisamente neste ponto,
graças a Deus, que vemos há certo tempo uma mudança capaz de marcar época.
Todas as Igrejas do Ocidente, ou nascidas dele, têm sido atravessadas há mais
de um século por uma “corrente de graça” que é o movimento pentecostal e as
várias renovações carismáticas derivadas dele nas Igrejas tradicionais. Não se
trata, na realidade, de um movimento no sentido corrente do termo. Não tem
fundador, regra, espiritualidade própria; não tem estruturas de governo, apenas
de coordenação e serviço. É justamente uma “corrente de graça”, que deveria se
espalhar por toda a Igreja como um choque elétrico na massa, para, assim,
deixar de ser um fenômeno separado.
Não é possível ignorar por
mais tempo, ou considerar marginal, um fenômeno que, de formas mais ou menos
profundas, atingiu centenas de milhões de fiéis em Cristo em todas as
confissões cristãs e dezenas de milhões só na Igreja Católica. Ao receber pela
primeira vez, em 19 de maio de 1975, os líderes da Renovação Carismática
Católica na Basílica de São Pedro, o Beato Papa Paulo VI, em seu discurso,
chamou o movimento de “uma chance para a Igreja e para o mundo”.
O teólogo Yves Congar, em
seu relatório ao Congresso Internacional de Pneumatologia, realizado no
Vaticano por ocasião do XVI Centenário do Primeiro Concílio Ecumênico de
Constantinopla (381), declarou a respeito dos sinais do despertar do Espírito
Santo em nosso tempo:
“Como não situar aqui a
corrente carismática, também conhecida como ‘Renovação no Espírito’? Ela se
espalhou como fogo em palha. É muito mais que uma moda passageira... Por um
lado, acima de tudo, ela se parece com um movimento de avivamento: pelo caráter
público e verificável da sua ação que muda a vida das pessoas... É como uma
jovialidade, um frescor e novas possibilidades dentro da velha Igreja, nossa
Mãe” [12].
O que, neste momento, eu
gostaria de destacar é um ponto preciso: em que sentido e de que maneira
podemos dizer que esta realidade é uma chance para a Igreja Católica e para as
Igrejas nascidas da Reforma? Eu acho que é por isso: ela permite restituir à
salvação cristã o rico e edificante conteúdo positivo resumido no dom do
Espírito Santo. O objetivo primário da vida cristã reaparece, conforme dizia
São Serafim de Sarov, como “o receber o Espírito Santo” [13]. São João Paulo
II, em um discurso para os líderes da Renovação Carismática Católica em 1998,
disse:
“O Movimento Carismático
Católico... como um novo Pentecostes, despertou na vida da Igreja um
extraordinário florescimento de grupos e movimentos particularmente sensíveis à
ação do Espírito... Quantos fiéis leigos têm experimentado em suas próprias
vidas o impactante poder do Espírito Santo e dos seus dons! Quantas pessoas
redescobriram a fé, o gosto da oração, a força e a beleza da Palavra de Deus,
traduzindo tudo isso em generoso serviço à missão da Igreja! Quantas vidas
foram profundamente mudadas!” [14].
Eu não digo que, entre as
pessoas que se identificam com esta “corrente de graça”, todas vivam essas
características, mas sei, por experiência, que todos, mesmo os mais simples,
sabem do que se trata e aspiram a realizá-las na sua vida. Até a imagem externa
da vida cristã é diferente: é um Cristianismo alegre, contagiante, que nada tem
do pessimismo sombrio que Nietzsche censurava. O pecado não é banalizado,
porque um dos primeiros efeitos da vinda do Paráclito ao coração do homem é
“convencê-lo do pecado” (Jo 16,8).
Não é questão de aderir a
este “movimento”, ou a qualquer movimento, mas de abrir-se à ação do Espírito
no estado de vida em que se está. O Espírito Santo não é monopólio de ninguém,
muito menos do movimento pentecostal e carismático. O importante é não sair da
corrente de graça que atravessa, de várias formas, todo o Cristianismo; é ver
nela uma iniciativa de Deus e uma chance para a Igreja, e não uma ameaça ou uma
infiltração estranha ao Catolicismo.
Algo que pode destruir essa
chance vem de dentro dela. A Escritura afirma a primazia da obra santificadora
do Espírito sobre a sua atividade carismática. Basta ler conjuntamente os capítulos
12 e 13 da Primeira Carta aos Coríntios, sobre os diversos carismas e
sobre a melhor estrada de todas, que é a caridade. Seria comprometer esta
oportunidade se a ênfase nos carismas, e em algum deles em particular,
prevalecesse sobre o esforço de uma autêntica vida “em Cristo” e “no Espírito”,
com base na conformação a Cristo e, portanto, na mortificação das obras da
carne e na busca dos frutos do Espírito.
Espero que o próximo Retiro Mundial
do Clero, previsto para junho aqui em Roma em preparação do 50º aniversário da
Renovação Carismática Católica, em 2017, sirva para reafirmar vigorosamente
esta prioridade, continuando também a incentivar de todas as formas o exercício
dos carismas, tão úteis e necessários, de acordo com o Concílio Vaticano II, “à
renovação e à maior expansão da Igreja” (Lumen gentium, n. 12).
Deixemos os irmãos ortodoxos
decidirem se esta corrente de graça é destinada apenas a nós, Igrejas do
Ocidente e nascidas dele, ou se um novo Pentecostes é uma necessidade também do
Oriente cristão. Enquanto isso, não podemos deixar de lhes agradecer por terem
cultivado e tenazmente defendido ao longo dos séculos um ideal de vida cristã
bonito e edificante, do qual toda a Cristandade se beneficiou, inclusive por
meio do silencioso instrumento do ícone.
Desenvolvemos as nossas
reflexões sobre a fé comum do Oriente e do Ocidente tendo à nossa frente, nesta
Capela, a imagem da Jerusalém celeste com os santos ortodoxos e católicos
reunidos em grupos mistos, de três em três. Peçamos a eles a ajuda para
realizar, na Igreja aqui da terra, a mesma comunhão fraterna de amor que eles
vivem na Jerusalém celeste.
Agradeço ao Santo Padre e
aos veneráveis padres, irmãos e irmãs, pela benévola atenção e desejo a todos
uma feliz Páscoa!
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Capela Redemptoris Mater com a imagem da “Jerusalém celeste” |
Notas:
[1] G. Bardy, Dictionnaire de spiritualité, ascétique
et mystique, III, Beauchesne, Paris, 1937, col. 1389s; cf. também
Y. Spiteris, Salvezza e
peccato nella tradizione orientale, EDB, Bolonha, 1999
[2] João da Cruz, Cântico Espiritual A, estrofe 38.
[3] cf. J.N.D.
Kelly, Early Christian
Doctrines, Londres, 1968, cap. 14.
[4] Atanásio, De Incarnatione, 20.
[5] Nicolau Cabasilas, Vida em Cristo, III, 1 (PG
153, 572).
[6] Simeão, o Novo Teólogo, Hinos (SCh 196, 1973, 330s).
[7] Duns Scotus, Reportationes Parisienses, III, d. 7, q. 4, § 5 (ed. Wadding, vol. XI, p. 451).
[8] V. Lossky, P. Evdokimov, J. Meyendorf,
citados na primeira meditação.
[9] Blaise Pascal, Pensamentos, 527
(Brunschvicg); cf. M. Pelikan, Jesus
through the centuries, Harper and Row, Nova York, 1987, pp. 73-76.
[10] Anselmo, Cur Deus homo, XXI: (Nondum
considerasti quanti ponderis sit peccatum: “Não considerastes ainda a
gravidade do pecado”).
[11] W. Lippman, citado por M. Pelikan, op.
cit., p. 76.
[12] Y. Congar, Actualité de la Pneumatologie, in: Credo in Spiritum Sanctum, Libreria Editrice Vaticana, 1983, I, pp.
17ss.
[13] Serafim de Sarov, Colóquio com Motovilov, in:
I. Gorainoff, Seraphim de
Sarov, Paris, 1996.
[14] João Paulo II, Discurso à Comissão
Nacional de Serviço e ao Conselho Nacional da Renovação Carismática, 04 de
abril de 1998.
Fonte: Zenit (Acesso em março de 2015).
Observação: Os elogios do Padre Raniero Cantalamessa ao chamado “movimento carismático” não refletem a opinião do autor deste blog.
Confira o índice das meditações do Cardeal Cantalamessa publicadas em nosso blog clicando aqui.
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