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sexta-feira, 7 de junho de 2024

Homilia do Papa João Paulo II: Sagrado Coração (Ano B)

No dia 07 de junho de 1991 o Papa João Paulo II celebrou a Missa da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus em Włocławek, durante sua quarta Viagem Apostólica à Polônia.

Confira a seguir sua homilia, na qual, além de meditar sobre as leituras da Solenidade para o Ano B (Os 11,3-4.8c-9; Is 12,2-6; Ef 3,8-12.14-19; Jo 19,31-37), o Papa refletiu sobre a realidade da Polônia e da Europa na época, além de recordar o martírio do Padre Jerzy Popiełuszko (†1984), o qual seria beatificado em 2010.

Viagem Apostólica à Polônia
Missa para os fiéis da Diocese de Włocławek
Homilia do Papa João Paulo II
Aeroclube de Włocławek
Sexta-feira, 07 de junho de 1991

“Um dos soldados abriu-lhe o lado com a lança” (Jo 19,34).
Caros irmãos e irmãs,
1. Hoje a Igreja retorna à Sexta-feira Santa. A Solenidade do Sagrado Coração de Jesus é como um grande “complemento” e um profundo comentário dos acontecimentos da Sexta-feira Santa. A passagem do Evangelho segundo João se refere justamente à conclusão desses acontecimentos. Os soldados enviados por Pilatos verificam se os condenados sobre o Gólgota estão mortos. Cristo já está morto. Para confirmá-lo, um dos soldados o golpeia com a lança - e então do lado transpassadosaiu sangue e água” (Jo 19,34). Foi a prova da morte.

O evangelista não fala do coração - mas foi transpassado precisamente o coração humano do Crucificado: é dele que brotam o sangue e a água, o que significa que Jesus, o Nazareno, já não vive. Isso aconteceu na tarde da Sexta-feira Santa. A lei ritual exigia que os corpos dos crucificados não fossem deixados na cruz no sábado da Páscoa, que era a maior festa de Israel.

Mosaico da Basílica do Sagrado Coração de Jesus
(Cracóvia, Polônia)

2. A essa descrição o evangelista acrescenta duas frases que devem testemunhar o cumprimento das profecias da Antiga Aliança. A Escritura diz: “Não quebrarão nenhum dos seus ossos” (Jo 19,36; cf. Ex 12,46), e assim aconteceu, à diferença dos outros dois crucificados. A Escritura também diz: “Olharão para aquele que transpassaram” (Jo 19,37; Zc 12,10).

Olharão para o Crucificado. Fixarão o olhar sobre o seu Coração. Essas palavras contêm a chave do mistério que está no centro da Solenidade deste dia. Não só a chave. A chave da história da alma de tantas pessoas que, através dessa chaga aberta no lado de Cristo Crucificado, visível externamente, alcançam aquilo que está escondido à vista. Olham para o seu Coração. Fixam o olhar no seu Coração.

Quantas pessoas assim, com o olhar fixo no Coração do Redentor, passaram por esta terra do Vístula, por esta cidade e sede episcopal?

Não foi uma dessas pessoas o Beato Abade Bogumił, mais tarde Arcebispo de Gniezno, e depois eremita, ou a Beata Jolanta, Princesa dos Piast, ambos em séculos distantes? E neste nosso difícil século XX, não foram esses homens São Maximiliano Maria Kolbe e o Beato Bispo Michał Kozal? Não o foi o Servo de Deus, o grande Primaz do Milênio, Cardeal Stefan Wyszyński? E ainda antes dele, todos aqueles mártires dos campos de concentração nazistas, nos quais a Diocese de Włocławek teve de pagar um tributo de sangue particularmente alto? Só durante a última guerra morreram duzentos e vinte sacerdotes, o que era mais da metade do clero da vossa Diocese.

Todos fixaram o olhar no Coração transpassado sobre a Cruz e encontraram força sobre-humana para dar um testemunho de vida e de morte. O Coração que é fonte de vida e de santidade.

3. Este Coração esconde em si de modo humano o mistério do amor eterno de Deus. O Apóstolo anuncia este mistério na Carta aos Efésios: “A insondável riqueza de Cristo... o cumprimento do mistério, escondido desde sempre em Deus, o criador do universo” (cf. Ef 3,8-9).

Qual é esse desígnio? E qual é a riqueza? A Liturgia deste dia responde com as palavras do Livro do Profeta Oseias. Antes de tudo com apenas esta palavra: “amor” - “Eu o amava”. “Quando Israel era criança, Eu já o amava... Ensinei Efraim a dar os primeiros passos, tomei-o em meus braços... Eu os atraía com laços de humanidade, com laços de amor” (Os 11,1.3-4). Amor divino, laços humanos. É a expressão humana deste amor divino, à semelhança de um pai ou de uma mãe que “leva uma criança ao colo, e se rebaixava a dar-lhes de comer” (v. 4). O Coração transpassado na Cruz - o Coração do Filho Unigênito - é o fruto maduro deste amor eterno de Deus pelo homem. Nele permanece inscrita para sempre a verdade da Primeira Carta de João: Deus, por primeiro, “nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados” (1Jo 4,10). Não há amor maior do que este: não há amor maior do que aquele que dá a própria vida pelos outros (cf. Jo 15,13). Não há amor maior do que aquele que, até o fim, se manifesta no Coração transpassado pela lança do centurião no Gólgota. “Meu coração comove-se no íntimo e arde de compaixão. Não darei largas à minha ira...” (Os 11,8-9). Sim. Aquele ardor da sua ira se soltou e consumiu o Coração do Filho. E no Coração do Filho aquela chama divina permanece para cada homem não como uma chama de punição que destrói, mas como a chama do amor que renova.

E desse modo o Deus-Amor está presente na história da humanidade, na história interior de cada um de nós: “Sou o Santo no meio de vós, e não me servirei do terror” (v. 9). Coração de Jesus, propiciação por nossos pecados! Coração de Jesus, fonte de vida e santidade!

Sagrado Coração de Jesus
(Santuário de Jasna Góra, Polônia)

4. É preciso que nós, seguindo os passos de tantos filhos e filhas desta terra de Kujawy, desta cidade episcopal, fixemos o olhar neste Coração Divino. Assim seremos “robustecidos quanto ao homem interior”, como ensina o Apóstolo na Carta aos Efésios (Ef 3,16).

Ao mesmo tempo, aqui se encontra a resposta a tantas fraquezas e a tantos pecados dos homens de hoje, que não vivem a vida interior. Vivem apenas externamente. Vivem dos sentidos, vivem dos instintos. Seguindo os mandamentos do Decálogo, que traçam o programa desta minha peregrinação através da Polônia, convém chamar a atenção para o nono mandamento: “Não desejar a mulher do próximo”. Não apenas “não cometer adultério”, mas também “não desejar...”. Não permitir que estas forças do desejo, adormecidas em ti como o “germe do pecado”, te envolvam. Não permitir que o “homem carnal” te domine (cf. 1Cor 3,3). “Se viverdes segundo a carne, morrereis”, escreve o Apóstolo (Rm 8,13). A carne em si não tem outra perspectiva - só o espírito tem outra. “Se, pelo espírito, matardes o procedimento carnal, então vivereis” (ibid.).

No homem estão as forças do espírito. E no coração do homem age também o amor, que provém do Espírito, do Espírito Santo. E, portanto, o que cada um de nós tem dentro de si deve ser realizado pelo espírito, e pelo Espírito Santo.

Não deixar nem mesmo se envolver por toda esta civilização do desejo e do prazer que domina no meio de nós, autodenominando-se “europeísmo”, domina no meio de nós aproveitando os vários meios de transmissão e de sedução. É esta a civilização ou, ao contrário, a anticivilização? A cultura ou, ao contrário, a anticultura? Aqui é preciso retornar às distinções elementares. A cultura, pois, é aquilo que torna o homem mais humano. Não aquilo que só “consome” a sua humanidade.

5. Voltemos às leituras da Liturgia de hoje. Lemos na Carta aos Efésios: “Dobro os joelhos diante do Pai... que Ele vos conceda, segundo a riqueza da sua glória, serdes robustecidos, por seu Espírito, quanto ao homem interior” (Ef 3,14.16).

Não estamos tocando aqui as próprias bases da cultura humana? No início está Deus - está o Pai, o qual, criando o homem à sua imagem e semelhança, o torna sensível à ação do Espírito: do Espírito da verdade, do bem e da beleza. Estas são, com efeito, as eternas dimensões de toda cultura, de toda cultura humana. Também da nossa, polonesa - aquela que incide sobre nós ao longo dos séculos da nossa história.

E o Apóstolo continua: “Que Ele faça habitar, pela fé, Cristo em vossos corações, que estejais enraizados e fundados no amor. Tereis assim a capacidade de compreender... e de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento, a fim de que sejais cumulados até receber toda a plenitude de Deus” (Ef 3,17-19).

Assim, no início está o Pai e o Espírito Criador - e no próprio coração das obras e das aspirações da criatividade e do trabalho humanos: está Cristo. O amor de Cristo, que permite a cada homem superar a si mesmo. Santo Estanislau [Kostka], o vosso compatriota de Rostkow, da Diocese de Płock, costumava dizer: “Fui criado para coisas mais elevadas”. Tinha a consciência de que o homem é ele mesmo quando está disposto a superar-se. Com a sua linguagem simples e juvenil expressou a mesmo verdade que o grande francês Blaise Pascal.

Junto com todos aqueles que passaram por esta terra do Vístula, junto com o Padre Jerzy [Popiełuszko] que, próximo daqui, encontrou a morte por martírio na barragem do Vístula, dobro meus joelhos diante do Pai e rezo pelo “fortalecimento do homem interior” para todos os filhos e filhas da nossa Pátria no limiar dos tempos que já passaram - e daqueles que virão.

Jesus, manso e humilde de coração, torna o meu coração semelhante ao teu. O homem pode falar desta forma com Deus, aquele Deus que se fez homem, que, como homem, traz toda a plenitude da divindade e toda a incomensurável profundidade da vocação do homem em Deus, precisamente neste coração humano. Traz também neste coração humano, transpassado pela lança, todo o mistério do preço, do valor que o homem possui, todo o mistério da redenção.

E o que é a redenção senão um recuperar o valor? Revalorizar o homem não é impeli-lo a tudo aquilo que faz parte dos sentidos, a todo tipo de desejo, a todas essas facilitações no âmbito dos sentidos, no campo da vida sexual, no campo do prazer. Não é uma elevação, não é uma medida da cultura, não é uma medida europeia, à qual com frequência se referem alguns porta-vozes do nosso “entrar na Europa”.

Antes de tudo nós não devemos entrar, porque já estamos nela. O Primeiro Ministro da Terceira República [Polonesa] o disse, o disse no Conselho Europeu de Estrasburgo: de certo modo sempre estivemos e estamos na Europa. Não precisamos entrar porque nós a construímos e continuamos a construir com fadiga maior do que outros, aos quais se atribui, ou se atribuem sozinhos, esta responsabilidade.

Coração de Jesus, transpassado pela lança

E qual deve ser o critério, qual deve ser o critério da liberdade? Qual liberdade? Por exemplo, a de tirar a vida de uma criança ainda não nascida?

Meus caros irmãos e irmãs, eu desejo, como Bispo de Roma, protestar contra tal qualificação da Europa, da Europa Ocidental. Isto ofende este grande mundo da cultura, da cultura cristã, do qual haurimos e que criamos junto com outros, cocriamos mesmo ao preço dos nossos sofrimentos. Aqui, nesta terra de Kujawy, nesta cidade de mártires, é preciso dizer isto em alta voz. A cultura europeia foi criada pelos mártires dos três primeiros séculos. Criaram-na também os mártires do Leste da nossa terra, nas últimas décadas, e também aqui, sempre nas últimas décadas. Sim, criou-a o Padre Jerzy.

Ele é o “patrono” da nossa presença na Europa por causa da oferta da vida, assim como Cristo, como Cristo tem o direito de cidadania no mundo, tem o direito de cidadania na Europa, porque deu a própria vida por todos nós. Tem o direito de cidadania entre nós e em todos os povos deste continente e do mundo inteiro pela sua Cruz. O mistério do Coração que transpassaram, o mistério do Coração no qual fixaram o olhar. Estes são os grandes pioneiros da Europa. Aceitamos no passado e no futuro tal medida de europeísmo, e desejamos empreendê-la e continuá-la, e não permitiremos para nós que se rebaixe esta medida.

Sim, certamente a Europa é também uma história de grandes crises. A história da crise europeia que tem muitas raízes, que persiste e se desenvolve, e que tem a sua continuidade no nosso tempo, neste século infelizmente tão trágico, neste século continuamente trágico. Com efeito, precisamente neste século foi criada aquela filosofia em nome da qual o homem pode tirar a vida de um outro homem porque é de outra raça, porque é de determinado grupo étnico, porque é judeu, porque é cigano, porque é polaco. Uma raça de patrões e uma raça de escravos. E depois de novo o “mito das classes”. Tudo isso é patrimônio europeu, mas disso nós devemos nos libertar!

A Europa precisa de redenção. A celebração do Sagrado Coração de Jesus é a celebração da redenção da Europa, da redenção do mundo, da redenção da Europa para o mundo. O mundo precisa de uma Europa redimida.

Meus caros, perdoai-me por estas palavras inflamadas; talvez sejam assim porque o dia está um pouco frio, mas há também o “genius loci” [espírito do lugar]. “Genius loci” é este lugar extraordinário. Talvez isso não seja conhecido no mundo. Na Europa, não é muito conhecida Włocławek, que traz em si esta misteriosa inscrição do nosso século, no nosso século que é como a resposta àquela inscrição de toda a civilização do ódio, da morte, de toda a civilização da morte; é esta inscrição da civilização da vida, da vida através da morte, assim como Cristo, assim como o Coração de Deus. Sua última testemunha, testemunha desta inscrição, foi precisamente o Padre Jerzy. Ele não deve ser tratado apenas - que Deus não permita, não penso que alguém o veja ou procure vê-lo assim -, não deve ser tratado apenas na medida em que serviu certa causa de ordem política, embora se tratasse de uma causa profundamente ética. É preciso vê-lo e ler a sua figura na verdade integral da sua história. É preciso lê-lo do ponto de vista daquele homem interior que pede o Apóstolo na Carta aos Efésios. Precisamente este homem interior pode ser testemunha, testemunha dos nossos tempos difíceis, na nossa década difícil, assim como ele foi.

Junto com todos repito a última passagem, junto com todos aqueles que passaram por esta terra do Vístula, junto com o Padre Jerzy, “dobro os joelhos diante do Pai” (Ef 3,14). Rezo pelo fortalecimento do homem interior, imploro o fortalecimento do homem interior para todos os filhos e filhas desta terra, da minha pátria, agora, no limiar dos tempos que passaram e que virão. Amém!

No final da celebração o Papa proferiu um Ato de Consagração ao Sacratíssimo Coração de Jesus:

Ato de Consagração ao Sacratíssimo Coração de Jesus

No dia em que a Igreja nos mostra o Amor revelado no sinal do lado transpassado de nosso Senhor Jesus Cristo, pregado na Cruz, do qual saiu sangue e água, na presença dos Bispos, sacerdotes e diáconos e dos fiéis aqui reunidos, eu, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus, consagro a Diocese de Włocławek, junto com todo o rebanho a mim confiado, ao Sacratíssimo Coração de Jesus, para que permaneça sempre “a raça escolhida, o sacerdócio real, a nação santa, o povo que Deus conquistou” (1Pd 2,9).

Dando graças a Vós, Senhor Jesus Cristo, porque nos fizestes conhecer o nome do Pai e vos oferecestes em sacrifício por nós (cf. Jo 17,26.19), vos prometemos a nossa fidelidade sem limites e pedimos a vossa graça, para podermos continuar a servir-te com o espírito e o fervor dos nossos pais.

Por intercessão da Virgem Maria, aquela que estava aos pés da Cruz e diante da Cruz, sobre a qual Vós, ó Jesus Cristo, nos destes os tesouros do vosso Coração aberto, pedimos do profundo do nosso ser: “Jesus, manso e humilde de Coração, fazei o nosso coração semelhante ao vosso”. Amém.

São João Paulo II em uma de suas Viagens à Polônia

Tradução nossa a partir do texto italiano. Fonte: Santa Sé.

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