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sexta-feira, 1 de março de 2024

Raniero Cantalamessa: Celebração da Paixão 2013

A segunda homilia do Cardeal Raniero Cantalamessa na Celebração da Paixão do Senhor que queremos resgatar nesta Quaresma é aquela da Sexta-feira Santa de 2013, a última do pontificado do Papa Francisco:

Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Basílica de São Pedro
Sexta-feira Santa, 29 de março de 2013
Justificados gratuitamente por meio da fé no sangue de Cristo

1. “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus, e a justificação se dá gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Jesus Cristo. Deus o destinou a ser, por seu próprio sangue, instrumento de expiação mediante a realidade da fé... Assim Ele demonstra sua justiça no tempo presente, para ser Ele mesmo justo, e tornar justo aquele que vive a partir da fé em Jesus” (Rm 3,23-26).

Chegamos ao ápice do Ano da Fé e ao seu momento decisivo. Esta é a fé que salva, “a fé que vence o mundo” (1Jo 5,5)! A fé, apropriação pela qual tornamos nossa a salvação operada por Cristo e nos vestimos do manto da sua justiça. Por um lado, temos a mão estendida de Deus, que oferece a sua graça ao homem; por outro, a mão do homem, que se estende para recebê-la mediante a fé. A “nova e eterna aliança” é selada com um aperto de mão entre Deus e o homem.

Nós temos a possibilidade de tomar, neste dia, a decisão mais importante da vida, aquela que nos abre de par em par os portões da eternidade: acreditar! Acreditar que “Jesus morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação” (Rm 4,25)! Em uma homilia pascal do século IV, o Bispo proclamava estas palavras excepcionalmente contemporâneas e, de certa forma, existenciais: “Para cada homem, o princípio da vida é que Cristo foi imolado por ele. Mas Cristo é imolado por ele quando este reconhece a graça e se torna consciente da vida que lhe foi dada por aquela imolação” (Homilia pascal do ano 387; SCh 36, pp. 59s).


Que extraordinário! Esta Sexta-feira Santa, celebrada no Ano da Fé e na presença do novo Sucessor de Pedro, poderá ser, se quisermos, o início de uma nova vida. O Bispo Hilário de Poitiers, que se converteu ao Cristianismo quando já era adulto, dizia a Jesus, ao repensar sua vida passada: “Antes de te conhecer, eu não existia”.

O necessário é apenas nos situarmos na verdade, reconhecermos que precisamos ser justificados, que não nos auto-justificamos. O publicano da parábola subiu ao templo e fez uma brevíssima oração: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador”. E Jesus diz que aquele homem foi para casa “justificado”, ou seja, transformado em homem justo, perdoado, feito criatura nova; cantando alegremente, penso, dentro do seu coração (Lc 18,13-14). O que ele tinha feito de tão extraordinário? Nada. Ele se colocou na verdade diante de Deus, e esta é a única coisa que Ele precisa para agir.

2. Como o alpinista que, superando uma passagem perigosa, faz uma parada para retomar o fôlego e admirar a paisagem que se abre à sua frente, assim o Apóstolo Paulo, no início do capítulo 5 da Carta aos Romanos, depois de proclamar a justificação pela fé, escreve: “Justificados pela fé, estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por Ele tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus. E não só isso, pois nos gloriamos também de nossas tribulações, sabendo que a tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada, a virtude provada desabrocha em esperança; e a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,1-5).

Hoje, a partir de satélites artificiais, são tiradas fotografias infravermelhas de regiões inteiras da terra em todo o planeta. Como é diferente a paisagem vista de cima, à luz desses raios, em comparação com o que vemos à luz natural e estando presentes no local! Eu me lembro de uma das primeiras fotos de satélite que correram o mundo, reproduzindo a península inteira do Sinai. As cores eram muito diferentes, eram mais evidentes os relevos e as depressões. É um símbolo. A vida humana, vista pelo infravermelho da fé, do alto do Calvário, também se mostra diferente de como é vista “a olho nu”.

Dizia o sábio do Antigo Testamento: “Tudo acontece para o justo e para o ímpio... Percebi que, sob o sol, em vez da lei existe a iniquidade, e, no lugar da justiça, a maldade” (Ecl 3,16; 9,2). Em todos os tempos, de fato, viu-se a maldade triunfante e a inocência humilhada. Mas para que não se pense que no mundo não há nada de fixo e de certo, observa Bossuet, às vezes se vê o oposto, ou seja, a inocência no trono e a maldade no cadafalso. Mas o que o Eclesiastes concluía? “Então eu pensei: Deus julgará o justo e o ímpio, porque há um tempo para cada coisa” (Ecl 3, 17). Ele encontra o ponto de observação justo que devolve a paz à alma.

O que o Eclesiastes não podia saber, mas que nós sabemos, é que esse juízo já aconteceu: “Agora”, diz Jesus, caminhando para a sua Paixão, “é o julgamento deste mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo; e Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,31-32).

Em Cristo, morto e ressuscitado, o mundo chegou ao seu destino final. E é necessária a fé para acreditar. O progresso da humanidade avança a um ritmo vertiginoso e a humanidade vê desenrolar-se à sua frente horizontes novos e inesperados, fruto das suas descobertas. Pode-se dizer, porém, que já chegou o fim do tempo, porque em Cristo, que subiu à direita do Pai, a humanidade encontrou o seu objetivo final. Já começaram os novos céus e a nova terra.

Apesar de toda a miséria, injustiça e monstruosidade na terra, Ele já inaugurou a ordem definitiva no mundo. O que vemos com nossos olhos pode nos sugerir o contrário, mas o mal e a morte foram, na verdade, derrotados para sempre. As suas fontes secaram; a realidade é que Jesus é o Senhor do mundo. O mal foi vencido radicalmente pela redenção que Ele realizou. O novo mundo já começou.

Uma coisa, acima de tudo, parece diferente quando vista através dos olhos da fé: a morte! Cristo entrou na morte como se entra em uma prisão escura, mas saiu dela pela muralha oposta. Ele não voltou por onde tinha entrado, como Lázaro, que tornara à vida para depois morrer de novo. Cristo abriu uma brecha para a vida que ninguém poderá fechar e pela qual todos podem segui-lo. A morte não é mais um muro contra o qual se parte toda esperança humana; ela se tornou uma ponte para a eternidade. Uma “ponte dos suspiros”, talvez, porque ninguém gosta do fato de morrer, mas uma ponte, não mais um abismo que engole tudo. “O amor é forte como a morte”, diz o Cântico dos Cânticos (Ct 8,6). Em Cristo, ele é mais forte do que a morte!

Na sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”, São Beda, o Venerável, relata como a fé cristã chegou até o norte da Inglaterra. Quando os missionários vindos de Roma chegaram à Nortúmbria (Northumberland), o rei do lugar convocou um conselho de notáveis ​​para decidir se permitia ou não que eles divulgassem a nova mensagem. Alguns dos presentes foram a favor, outros contra. Era um inverno rigoroso, açoitado pela nevasca lá fora, mas a sala estava iluminada e aquecida. Em dado momento, um pássaro entrou por um buraco na parede, pairou assustado na sala e desapareceu por outro buraco, na parede oposta. Então um dos presentes levantou-se e disse: “Senhor, a nossa vida neste mundo é como aquele pássaro. Viemos não sabemos de onde, desfrutamos por um breve instante da luz e do calor deste mundo e depois desaparecemos de novo na escuridão, sem saber para onde estamos indo. Se estes homens podem nos revelar alguma coisa do mistério da nossa vida, devemos ouvi-los”.

A fé cristã poderia voltar ao nosso continente e ao mundo secularizado pela mesma razão pela qual já entrou nele antes: como a única doutrina que tem uma resposta segura para dar às grandes questões da vida e da morte.

3. A cruz separa os crentes dos não crentes, porque, para alguns, ela é escândalo e loucura, e, para outros, é poder e sabedoria de Deus (1Cor 1,23-24). Em sentido mais profundo, ela une todos homens, crentes e não crentes. “Jesus tinha que morrer... não por uma nação, mas para reunir todos os filhos de Deus que andavam dispersos” (Jo 11,51-52). Os novos céus e a nova terra são de todos e para todos, porque Cristo morreu por todos.

A urgência decorrente de tudo isto é evangelizar: “O amor de Cristo nos impele, ao pensarmos que um só morreu por todos” (2Cor 5,14). Impele-nos a evangelizar! Vamos anunciar ao mundo a boa notícia de que “não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus, porque a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus nos libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,1-2).

Há um conto escrito pelo judeu Franz Kafka que é um poderoso símbolo religioso e que assume um novo significado, quase profético, na Sexta-Feira Santa: “Uma mensagem imperial”. Fala de um rei que, em seu leito de morte, chama um súdito e lhe sussurra ao ouvido uma mensagem. É tão importante aquela mensagem que ele faz o súdito repeti-la em seu próprio ouvido, para ter certeza de que a escutou bem. O mensageiro parte, logo em seguida. Mas ouçamos o resto da história diretamente do autor, com o tom onírico, quase de pesadelo, que é típico deste escritor:

“Projetando um braço aqui, outro acolá, o mensageiro abre alas por entre a multidão e avança ligeiro como ninguém. Mas a multidão é imensa, e as suas moradas, exterminadas. Como voaria se tivesse via livre! Mas ele se esforça em vão; ainda continua a se afanar pelas salas interiores do palácio, do qual nunca sairá. E mesmo que conseguisse, isto nada quereria dizer: ele teria que lutar para descer as escadas. E mesmo que conseguisse, ainda nada teria feito: haveria que cruzar os pátios; e, depois dos pátios, o segundo círculo dos edifícios. Se conseguisse precipitar-se, finalmente, para fora da última porta - mas isso nunca, nunca poderá acontecer -, eis que, diante dele, se alçaria a cidade imperial, o centro do mundo, na qual montanhas de seus detritos se amontoam. Lá no meio ninguém é capaz de avançar, nem mesmo com a mensagem de um morto. Tu, no entanto, te sentas à tua janela e sonhas com aquela mensagem quando a noite vem”.

Do seu “leito de morte”, também Cristo confiou à sua Igreja uma mensagem: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). Ainda existem muitos homens que se sentam à janela e sonham, sem saber, com uma mensagem como a d’Ele. João, como acabamos de ouvir, afirma que o soldado perfurou o lado de Cristo na cruz “para que se cumprisse a Escritura, que diz: (...) ‘Olharão para Aquele que transpassaram’” (Jo 19,37). No Apocalipse, ele acrescenta: “Ele vem com as nuvens, e todos os olhos o verão, também aqueles que o transpassaram. Todas as tribos da terra baterão no peito por causa d’Ele” (Ap 1,7).

Esta profecia não anuncia a última vinda de Cristo, quando já não for o tempo da conversão, mas do julgamento. Ela descreve, em vez disso, a realidade da evangelização dos povos. Nela ocorre uma vinda misteriosa, mas real, do Senhor que traz a salvação. O seu pranto não será de desespero, mas de arrependimento e de consolação. Este é o significado da profecia da Escritura, que João vê realizada no lado transpassado de Cristo, ou seja, o texto de Zacarias 12,10: “Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de graça e de oração; eles olharão para mim, para Aquele a quem transpassaram”.

A evangelização tem uma origem mística; é um dom que vem da cruz de Cristo, daquele lado aberto, daquele sangue e água. O amor de Cristo, como o da Trindade, do qual é a manifestação histórica, é “diffusivum sui”, tende a se expandir e chegar a todas as criaturas, especialmente às “mais necessitadas da sua misericórdia”. A evangelização cristã não é conquista, não é propaganda; é o dom de Deus para o mundo em seu Filho Jesus. É dar à “Cabeça” a alegria de sentir a vida fluir do seu coração para o seu corpo, até vivificar os seus membros mais distantes.

Temos de fazer todo o possível para que a Igreja se pareça cada vez menos ao castelo complicado e assombroso descrito por Kafka, e para que a mensagem possa sair dela tão livre e alegre como quando começou a sua corrida. Sabemos quais são os impedimentos que podem reter o mensageiro: as muralhas divisórias, começando por aquelas que separam as várias igrejas cristãs umas das outras; a burocracia excessiva; os resíduos de cerimoniais, leis e disputas do passado, que se tornaram, enfim, apenas detritos.

Jesus diz no Apocalipse que está à porta e bate (Ap 3,20). Às vezes, como foi observado por nosso Papa Francisco, não bate para entrar, mas de dentro, porque quer sair. Sair para as periferias existenciais do pecado, do sofrimento, da injustiça, da ignorância, da indiferença religiosa, de todas as formas de miséria.

Acontece como em certas construções antigas. Ao longo dos séculos, para adaptar-se às exigências do momento, houve profusão de divisórias, escadarias, salas e câmaras. Chega um momento em que se percebe que todas essas adaptações já não respondem às necessidades atuais; servem, antes, de obstáculo, e temos então de ter a coragem de derrubá-las e trazer o prédio de volta à simplicidade e à linearidade das suas origens. Foi a missão que recebeu, um dia, um homem que orava diante do crucifixo de São Damião: “Vai, Francisco, e reforma a minha Igreja”.

“Quem está à altura dessa tarefa?”, perguntava-se o Apóstolo Paulo, aterrorizado, diante da tarefa de ser no mundo “o aroma de Cristo”; e eis a sua resposta, que é verdade também agora: “Não é que sejamos capazes, por nós mesmos, de ter algum pensamento, mas essa nossa capacidade vem de Deus. Ele é que nos tornou capazes de exercer o ministério de uma aliança nova. Esta não é uma aliança da letra, mas do Espírito. Pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida” (2Cor 2,16; 3,5-6).

Que o Espírito Santo, neste momento em que se abre para a Igreja um novo tempo, cheio de esperança, desperte novamente nos homens que estão à janela a esperança da mensagem e, nos mensageiros, a vontade de levá-la até eles, mesmo que ao custo da própria vida.


Fonte: Zenit / Santa Sé.

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