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sexta-feira, 29 de março de 2024

Homilia do Papa Bento XVI: Vigília Pascal (2011)

Retomando a retrospectiva das homilias do Papa Bento XVI (†2022) na Semana Santa de 2011, confira a seguir suas palavras na Vigília Pascal:

Vigília Pascal na Noite Santa
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica Vaticana
Sábado Santo, 23 de abril de 2011

Amados irmãos e irmãs,
Dois grandes sinais caracterizam a celebração litúrgica da Vigília Pascal. Temos antes de tudo o fogo que se torna luz. A luz do círio pascal que, na procissão através da igreja encoberta pela escuridão da noite, se torna uma onda de luzes, fala-nos de Cristo como verdadeira estrela da manhã eternamente sem ocaso, fala-nos do Ressuscitado em quem a luz venceu as trevas. O segundo sinal é a água. Esta recorda, por um lado, as águas do Mar Vermelho, o afundamento e a morte, o mistério da Cruz; mas, por outro, aparece-nos como água nascente, como elemento que dá vida na aridez. Torna-se assim imagem do sacramento do Batismo, que nos faz participantes da Morte e Ressurreição de Jesus Cristo.


Mas não são apenas estes grandes sinais da criação, a luz e a água, que fazem parte da Liturgia da Vigília Pascal; outra característica verdadeiramente essencial da Vigília é o fato de nos proporcionar um vasto encontro com a palavra da Sagrada Escritura. Antes da reforma litúrgica, havia doze leituras do Antigo Testamento e duas do Novo. As do Novo Testamento permaneceram; entretanto o número das leituras do Antigo Testamento acabou fixado em sete, que, atendendo às situações locais, se podem reduzir a três leituras. A Igreja quer, através de uma ampla visão panorâmica, conduzir-nos ao longo do caminho da história da salvação, desde a criação, passando pela eleição e a libertação de Israel, até aos testemunhos proféticos, pelos quais toda esta história se orienta cada vez mais claramente para Jesus Cristo. Na tradição litúrgica, todas estas leituras se chamavam profecias: mesmo quando não são diretamente vaticínios de acontecimentos futuros, elas têm um caráter profético, mostram-nos o fundamento íntimo e a direção da história; fazem com que a criação e a história se tornem transparentes no essencial. Deste modo tomam-nos pela mão e conduzem-nos para Cristo, mostram-nos a verdadeira luz.

Na Vigília Pascal, o percurso ao longo dos caminhos da Sagrada Escritura começa pelo relato da criação. Desta forma, a Liturgia quer-nos dizer que também o relato da criação é uma profecia. Não se trata de uma informação sobre a realização exterior da transformação do universo e do homem. Bem cientes disto estavam os Padres da Igreja, que entenderam este relato não como narração real das origens das coisas, mas como apelo ao essencial, ao verdadeiro princípio e ao fim do nosso ser. Ora, podemos nos interrogar: mas, na Vigília Pascal, é verdadeiramente importante falar também da criação? Não se poderia começar pelos acontecimentos em que Deus chama o homem, forma para si um povo e cria a sua história com os homens na terra? A resposta deve ser: não! Omitir a criação significaria equivocar-se sobre a história de Deus com os homens, diminuí-la, deixar de ver a sua verdadeira ordem de grandeza. O arco da história que Deus fundou chega até às origens, até à criação. A nossa profissão de fé inicia com as palavras: «Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra». Se omitimos este início do Credo, a história global da salvação torna-se demasiado restrita, demasiado pequena. A Igreja não é uma associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas dos homens e cujo objetivo se limitaria precisamente ao de tal associação. Não, a Igreja leva o homem ao contato com Deus e, consequentemente, com o princípio de tudo. Por isso, Deus tem a ver conosco como Criador, e por isso possuímos uma responsabilidade pela criação. A nossa responsabilidade inclui a criação, porque esta provém do Criador. Deus pode dar-nos vida e guiar a nossa vida só porque Ele criou o todo. A vida na fé da Igreja não abrange somente o âmbito de sensações e sentimentos e porventura de obrigações morais; mas abrange o homem na sua integridade, desde as suas origens e na perspectiva da eternidade. Só porque a criação pertence a Deus podemos depositar n’Ele completamente a nossa confiança. E só porque Ele é Criador é que nos pode dar a vida por toda a eternidade. A alegria e gratidão pela criação e a responsabilidade por ela andam juntas uma com a outra.

Podemos determinar ainda mais concretamente a mensagem central do relato da criação. Nas primeiras palavras do seu Evangelho, João resumiu o significado essencial do referido relato com uma única frase: «No princípio era o Verbo» (Jo 1,1). Com efeito, o relato da criação, que ouvimos anteriormente, caracteriza-se pela frase que aparece com regularidade: «Deus disse...». O mundo é uma produção da Palavra, do Logos, como se exprime João com um termo central da língua grega. «Logos» significa «razão», «sentido», «palavra». Não é apenas razão, mas Razão criadora que fala e comunica a si mesma. Trata-se de Razão que é sentido, e que cria, ela mesma, sentido. Por isso, o relato da criação diz-nos que o mundo é uma produção da Razão criadora. E deste modo diz-nos que, na origem de todas as coisas, não está o que é sem razão, sem liberdade; pelo contrário, o princípio de todas as coisas é a Razão criadora, é o amor, é a liberdade. Encontramo-nos aqui perante a alternativa última que está em jogo na disputa entre fé e incredulidade: o princípio de tudo é a irracionalidade, a ausência de liberdade e o acaso, ou o princípio do ser é razão, liberdade, amor? O primado pertence à irracionalidade ou à razão? Tal é a questão de que, em última análise, se trata. Como crentes, respondemos com o relato da criação e com o evangelista João: na origem, está a razão. Na origem, está a liberdade. Por isso, é bom ser uma pessoa humana. Assim, o que sucedera no universo em expansão não foi que por fim, em um ângulo qualquer do cosmos, teria se formado por acaso também uma espécie como qualquer outra de ser vivente, capaz de raciocinar e de tentar encontrar na criação uma razão ou de conferi-la. Se o homem fosse apenas tal produto casual da evolução em um lugar marginal qualquer do universo, então a sua vida seria sem sentido ou mesmo um azar da natureza. Mas não! No início, está a Razão, a Razão criadora, divina. E, dado que é Razão, ela criou também a liberdade; e, uma vez que se pode fazer uso indevido da liberdade, existe também o que é contrário à criação. Por isso se estende, por assim dizer, uma densa linha escura através da estrutura do universo e através da natureza do homem. Mas, apesar desta contradição, a criação como tal permanece boa, a vida permanece boa, porque na sua origem está a Razão boa, o amor criador de Deus. Por isso, o mundo pode ser salvo. Por isso podemos e devemos colocar-nos da parte da razão, da liberdade e do amor, da parte de Deus que nos ama de tal maneira que Ele sofreu por nós, para que, da sua morte, pudesse surgir uma vida nova, definitiva, restaurada.

O relato veterotestamentário da criação, que escutamos, indica claramente esta ordem das coisas. Mas faz-nos dar um passo mais em frente. O processo da criação aparece estruturado no quadro de uma semana que se orienta para o Sábado, encontrando neste a sua perfeição. Para Israel, o Sábado era o dia em que todos podiam participar no repouso de Deus, em que homem e animal, senhor e escravo, grandes e pequenos, estavam unidos na liberdade de Deus. Assim o Sábado era expressão da aliança entre Deus, o homem e a criação. Deste modo, a comunhão entre Deus e o homem não aparece como um acréscimo, algo instaurado posteriormente em um mundo cuja criação estava já concluída. A aliança, a comunhão entre Deus e o homem, está prevista no mais íntimo da criação. Sim, a aliança é a razão intrínseca da criação, tal como esta é o pressuposto exterior da aliança. Deus fez o mundo para haver um lugar no qual Ele pudesse comunicar o seu amor e a partir do qual a resposta de amor retornasse a Ele. Diante de Deus, o coração do homem que lhe responde é maior e mais importante do que todo o imenso universo material que, certamente, já nos deixa vislumbrar algo da grandeza de Deus.

Entretanto, na Páscoa e a partir da experiência pascal dos cristãos, devemos ainda dar mais um passo. O Sábado é o sétimo dia da semana. Depois de seis dias em que o homem, de certa forma, participa no trabalho criador de Deus, o Sábado é o dia do repouso. Mas, na Igreja nascente, sucedeu algo de inaudito: no lugar do Sábado, do sétimo dia, entra o primeiro dia. Este, enquanto dia da assembleia litúrgica, é o dia do encontro com Deus por meio de Jesus Cristo, que no primeiro dia, o Domingo, encontrou como Ressuscitado os seus, depois que estes encontraram vazio o sepulcro. Agora inverte-se a estrutura da semana: já não está orientada para o sétimo dia, em que se participa no repouso de Deus; a semana inicia com o primeiro dia como dia do encontro com o Ressuscitado. Este encontro não cessa jamais de verificar-se na celebração da Eucaristia, durante a qual o Senhor entra de novo no meio dos seus e dá-se a eles, deixa-se por assim dizer tocar por eles, põe-se à mesa com eles. Esta mudança é um fato extraordinário, quando se considera que o Sábado s o sétimo dia s está profundamente radicado no Antigo Testamento como o dia do encontro com Deus. Quando se pensa como a passagem do trabalho ao dia do repouso corresponde também a uma lógica natural, torna-se ainda mais evidente o alcance impressionante de tal alteração. Este processo inovador, que se deu logo no início do desenvolvimento da Igreja, só se pode explicar pelo fato de ter sucedido algo de inaudito em tal dia. O primeiro dia da semana era o terceiro depois da morte de Jesus; era o dia em que Ele se manifestou aos seus como o Ressuscitado. De fato, este encontro continha em si algo de impressionante. O mundo tinha mudado. Aquele que estivera morto agora goza de uma vida que já não está ameaçada por morte alguma. Fora inaugurada uma nova forma de vida, uma nova dimensão da criação. O primeiro dia, segundo o relato do Gênesis, é aquele em que teve início a criação. Agora tornara-se, de uma forma nova, o dia da criação, tornara-se o dia da nova criação. Nós celebramos o primeiro dia. Deste modo celebramos Deus, o Criador, e a sua criação. Sim, creio em Deus, Criador do céu e da terra. E celebramos o Deus que se fez homem, padeceu, morreu, foi sepultado e ressuscitou. Celebramos a vitória definitiva do Criador e da sua criação. Celebramos este dia como origem e ao mesmo tempo como meta da nossa vida. Celebramo-lo porque agora, graças ao Ressuscitado, vale de modo definitivo que a razão é mais forte do que a irracionalidade, a verdade mais forte do que a mentira, o amor mais forte do que a morte. Celebramos o primeiro dia porque sabemos que a linha escura que atravessa a criação não permanece para sempre. Celebramo-lo, porque sabemos que agora vale definitivamente o que se diz no fim do relato da criação: «E Deus viu tudo quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom» (Gn 1,31). Amém.


Fonte: Santa Sé.

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