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quarta-feira, 3 de maio de 2023

Rito da Coroação do Rei Charles III

“Dai ao Rei vossos poderes, Senhor Deus, vossa justiça ao descendente da realeza!” (Sl 71,1).

No dia 06 de maio de 2023 tem lugar na Abadia de Westminster em Londres a cerimônia de coroação do Rei Charles III, monarca do Reino Unido, nação formada por quatro países constituintes - Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte - e outros 14 reinos ao redor do mundo.

Insígnias reais

Esta é certamente de uma ocasião histórica: a última coroação teve lugar a 70 anos, no dia 02 de junho de 1953, quando foi coroada a Rainha Elizabeth II (†2022). Além disso, o Reino Unido é a única monarquia cristã que conserva um rito de coroação, inserido dentro de um “serviço” (service) da Igreja Anglicana (Church of England) [1].

Embora se trate de um culto protestante - a Igreja Anglicana rompeu a comunhão com a Igreja Católica em 1534 -, o rito conserva os elementos essenciais presentes no Liber Regalis (The King’s Book), do século XIV.

Antigas edições do Pontificale Romanum, com efeito, traziam um Ordo de Benedictione et Coronatione Regis (Ritual da Bênção e Coroação do Rei), o qual é um sacramental de caráter consecratório (como, por exemplo, a bênção de abade ou a profissão religiosa).

Abadia de Westminster, sede tradicional das coroações

A seguir apresentamos brevemente a Liturgia do Rito de Coroação do Rei Charles III (Liturgy for the Coronation Rite of His Majesty King Charles III), publicada pelo Arcebispo de Canterbury, Justin Welby, o qual, como Primaz da Comunhão Anglicana, presidirá a cerimônia [2].

O rito possui várias reminiscências bíblicas, professando a fé na realeza divina e recordando a unção dos reis, sacerdotes e profetas no Antigo Testamento, como Davi e Salomão. Além disso, praticamente todos os cantos estão inspirados nos Salmos, como veremos a seguir.

1. Ritos iniciais e Liturgia da Palavra

Antes do início da cerimônia têm lugar a entrada dos representantes de outras religiões, dos representantes das Igrejas cristãs - alguns dos quais, como veremos, terão um papel ativo em partes do rito - e das bandeiras dos reinos da Comunidade de Nações (Commonwealth) [3].

A procissão de entrada propriamente dita - da qual tomarão parte o Rei e a Rainha consorte, Camilla - será precedida pela “Cruz de Gales” (Cross of Wales), uma cruz processional confeccionada recentemente no respectivo país, a qual contém dois fragmentos da Santa Cruz doados pelo Papa Francisco.

“Cruz de Gales” com as relíquias da Santa Cruz

Nesta procissão - acompanhada pelo canto do hino “I was glad”, uma adaptação do Salmo 121 feita por Hubert Parry (†1918), com a aclamação em latim “Vivat Rex!” - serão conduzidos também alguns estandartes e insígnias reais.


Diante do altar, o Rei será acolhido por uma das crianças do coro. Trata-se de uma novidade inserida no ritual da coroação, acompanhada por um pequeno diálogo de inspiração bíblica:
Criança: “Majestade, como filhos do Reino de Deus, lhe damos as boas-vindas em nome do Rei dos Reis”.
Charles III: “Em seu nome, e seguindo seu exemplo, venho não para ser servido, mas para servir”.

Após um momento de oração silenciosa, o Arcebispo” de Canterbury dá início à cerimônia com a saudação inicial (“A graça de nosso Senhor Jesus Cristo...”) e uma monição que exprime o significado da celebração. O coro entoa então o Kyrie eleison em gaélico (welsh), composto para a ocasião por Paul Mealor.

Após o Kyrie tem lugar a primeira parte do rito da coroação propriamente dito: o reconhecimento (Recognition) e o juramento (Oath). O Arcebispo de Canterbury, seguido por três representantes da nação, voltados para cada um dos pontos cardeais, apresentam o Rei ao povo, que o aclama.

Arcebispo de Canterbury, Justin Welby, que presidirá a cerimônia

Na sequência tem lugar a apresentação da Bíblia ao Rei, feita pelo Moderador da Igreja da Escócia (igreja presbiteriana fundada em 1560), Iain Greenshields. A fórmula da apresentação conclui: “Aqui está a Sabedoria. Esta é a Lei real. Estes são os Oráculos vivos de Deus”.

Com a mão na Bíblia, o Rei profere então seu juramento como soberano e protetor da Igreja Anglicana, respondendo às perguntas que lhe são feitas pelo Arcebispo. Enquanto o Rei assina o juramento, o coro entoa o hino “Prevent us, o Lord”, de William Byrd (†1623).

Após o hino, segue-se outra novidade: o Rei recitará uma oração composta por ele mesmo para a ocasião:
“Deus de compaixão e misericórdia, cujo Filho não foi enviado para ser servido, mas para servir, dá-me graça para que eu possa encontrar em teu serviço a perfeita liberdade e nessa liberdade o conhecimento da tua verdade. Concede que eu seja uma bênção para todos os teus filhos, de toda fé e convicção, para que juntos possamos descobrir os caminhos da gentileza e ser conduzidos pelos caminhos da paz. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém”.

A cerimônia prossegue então com o Glória - da “Missa a quatro vozes” (Mass for Four Voices) de William Byrd, entoado em latim - e a coleta (oração do dia) recitada pelo Arcebispo.


Têm lugar então a Liturgia da Palavra: a leitura (Cl 1,9-17); o Aleluia (unido aos vv. 1-2 do Sl 46) e o Evangelho (Lc 4,16-21). Segue-se novamente o Aleluia (com os vv. 7-8 do Sl 46) e a homilia ou sermão (sermon) do Arcebispo.

Justin Welby profere o sermão em uma cerimônia

2. Rito da Coroação

Após a homilia tem início a segunda parte dos ritos da coroação com o hino “Veni Creator Spiritus” (Come, Holy Ghost, our souls inspire), que será entoado nas línguas tradicionais dos quatro países constituintes do Reino Unido: inglês, galês (welsh), gaélico escocês (scots gaelic) e gaélico irlandês (irish gaelic).


Segue-se o momento mais sagrado do rito: a unção (anointing). O recipiente com óleo é apresentado pelo Arcebispo anglicano de Jerusalém, Hosam Naoum. O óleo, com efeito, foi elaborado com azeitonas do Monte das Oliveiras e abençoado pelo Patriarca Greco-Ortodoxo de Jerusalém, Theophilos III.

Primeiramente o Arcebispo de Canterbury recita uma oração de ação de graças sobre o óleo. Em seguida o Rei se dirige à Cadeira de Coroação (Coronation Chair), cujo uso remonta ao Rei Eduardo I (†1307). Sob a Cadeira é colocada a Pedra de Scone (Stone of Scone), associada à coroação dos Reis da Escócia.

Neste momento é colocado um dossel (screen) diante da Cadeira. A unção propriamente dita, com efeito, não é visível à assembleia: considera-se um momento de intimidade entre o Rei e Deus. O dossel elaborado para a ocasião representa uma árvore com 56 folhas em destaque, símbolo dos 56 países membros da Commonwealth.

Dossel preparado para a coroação

Auxiliado pelo Decano (Dean) da Abadia de Westminster, David Hoyle, o Arcebispo de Canterbury unge o Rei nas mãos, na testa e sobre o coração, enquanto o coro entoa a célebre antífona “Zadok the Priest” de Georg Friedrich Händel (†1759), inspirada em 1Rs 1,34.45:
Zadok the priest and Nathan the prophet anointed Solomon king.
And all the people rejoiced and said:
God save the King! Long live the King! God save the King!
May the King live for ever. Amen. Hallelujah!”.


Após a unção, o rito prossegue com a investidura (Investiture), isto é, a entrega das insígnias reais (Regalia), e a coroação (Crowning) propriamente dita.

Primeiramente o Rei endossa três vestes cerimoniais: o colobium sindonis, uma túnica de linho branco, símbolo de pureza e simplicidade; a supertunica, associada a um manto sacerdotal, indicando a eleição do Rei por parte de Deus; e o cinto (girdle), símbolo da prontidão para o serviço.

Durante a entrega das insígnias é entoada a primeira parte do Salmo 71 (vv. 1-8) em grego, homenageando as origens gregas do Príncipe Philip, Duque de Edimburgo (†2021), pai do Rei Charles.

As demais insígnias são conduzidas ao Rei por alguns Pares do Reino (Pears or Realm) e Bispos da Igreja Anglicana, auxiliados pelo Decano da Abadia:
- Esporas (Spurs): símbolo de honra e coragem.
- Espada (Sword): abençoada pelo Arcebispo e entregue ao Rei como exortação à justiça e à proteção dos indefesos.
- Braceletes de metal (Armills): símbolos da sinceridade e da sabedoria.
- Estola (Stole) e Manto (Robe): assim como a supertunica, estão associados a vestes sacerdotais. O manto, além disso, é ornado com as flores nacionais dos países constituintes do Reino Unido: a rosa da Inglaterra, o cardo da Escócia, o narciso de Gales e o trevo da Irlanda do Norte.
- Orbe (Orb): encimado pela cruz, simboliza o primado do Reino de Deus sobre o mundo.
- Anel (Ring): símbolo da aliança nupcial entre Deus e o Rei e entre este e seu povo.
- Luva (Glove): uma exortação ao Rei a exercer a autoridade com gentileza.
- Cetro e Bastão (Sceptre and Rod): o cetro encimado por uma cruz simboliza o poder temporal do soberano, e o bastão, encimado por uma pomba, seu poder espiritual.


Por fim, tem lugar a coroação (Crowning). O Arcebispo abençoa a Coroa de Santo Eduardo (St Edward’s Crown) - réplica realizada em 1661 da coroa que teria sido usada pelo Rei Eduardo, o Confessor (†1066) - e a deposita sobre a cabeça do monarca, quando então todos aclamam: “God save the King!” (“Deus salve o rei”).

Neste momento a orquestra entoa uma fanfarra, os sinos da Abadia começam a soar e, na parte externa, tem lugar uma salva de tiros.


Em seguida o Arcebispo de Canterbury tradicionalmente invoca a bênção de Deus sobre o Rei (Blessing). Nesta ocasião, por sua vez, a bênção terá um alcance ecumênico, com trechos recitados pelo Arcebispo de Westminster, Cardeal Vincent Gerard Nichols, pelo Arcebispo Greco-Ortodoxo da Grã-Bretanha, Nikitas Loulias, e por representantes das comunidades protestantes.

Segue-se o hino “O Lord, grant the king”, de Thomas Weelkes (†1623), uma adaptação dos vv. 7-9 do Salmo 60.


O rito prossegue com a entronização do Rei (Enthroning): este deixa a Cadeira de Coroação e é convidado pelo Arcebispo a sentar-se no trono, exortando o soberano à fortaleza: “Stand firm...” (“Permaneça firme...”).


Cadeira de Coroação (Cadeira do Rei Eduardo)

Neste momento tem lugar a homenagem e o juramento de fidelidade dos súditos. Para não prolongar excessivamente a cerimônia, prestam homenagem individualmente apenas o Arcebispo de Canterbury e o Príncipe William, Príncipe de Gales, filho mais velho e herdeiro do Rei Charles.

O Arcebispo convida então “todas as pessoas de boa vontade” do Reino Unido e dos outros reinos a prestar sua homenagem ao Rei. Esta homenagem do povo (Homage of the People) é outras das novidades introduzidas nesta coroação.

Esta parte do rito conclui com o canto da antífonaConfortare” (“Be strong...”), de Henry Walford Davies (†1941), cujo texto é inspirado nos últimos conselhos do rei Davi ao seu filho Salomão (cf. 1Rs 2,2-3).


Por fim, tem lugar a coroação da Rainha consorte, Camilla, que é ungida com óleo na testa e recebe o anel, a coroa e o cetro. Em seguida esta toma assento junto ao Rei, enquanto se entoa o hino “Make a joyful noise”, uma adaptação do Salmo 97 composta para a ocasião por Andrew Lloyd Webber.

Rainha Elizabeth II durante sua coroação em 1953

3. Rito da Comunhão e ritos finais

A partir deste momento prossegue o “serviço” (service) com o rito do ofertório, acompanhado pelo hino “Christ is made the sure foundation”, com letra de John Mason Neale (†1866) e música de Henry Purcell (†1695).


Os dons do pão e do vinho são apresentados ao Rei antes de serem conduzidos ao altar, indicando sua participação na oferta dos “frutos da terra e do trabalho humano” ao Senhor. O Arcebispo de Canterbury conclui o rito com a oração sobre as oferendas.

Segue-se a “Oração Eucarística” (Eucharistic Prayer), segundo o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana (Book of Common Prayer). Cabe frisar que, como católicos, não reconhecemos o sacerdócio da Igreja da Inglaterra como válido, uma vez que durante o cisma do século XVI foi rompida a também a Sucessão Apostólica. Por conseguinte, a Eucaristia também não é válida.

O rito prossegue com o “Pai nosso” (Our Father) e o canto do Agnus Dei (Cordeiro de Deus) em inglês, durante o qual o Rei e a Rainha recebem a Comunhão. Esta parte do rito se conclui com a oração após a Comunhão e a bênção, recitadas pelo Arcebispo.

Altar da Abadia de Westminster com o mosaico da Última Ceia

Após a bênção, o coro entoa dois hinos: “Praise, my soul, the King of heaven”, de Henry Francis Lyte (†1847), baseado no Salmo 102; e “The King shall rejoice”, de William Boyce (†1779), a partir do Salmo 20.




Segue-se o canto do hino Te Deum em inglês (We praise thee, O God), com música de William Walton (†1983) composta para a coroação da Rainha Elizabeth II.


Neste momento, o Rei se dirige à Capela de Santo Eduardo, atrás do altar-mor da Abadia, onde depõe as vestes cerimoniais e endossa o Robe de Estado (Robe of Estate) e a Coroa Imperial do Estado (Imperial State Crown).

Quando o Rei retorna à Abadia entoa-se o hino nacional do Reino Unido, o célebre “God save the King”. Segue-se a procissão de saída, após a qual o Rei saúda os representantes das outras religiões e as autoridades civis dos reinos da Commonwealth.


“Dai ao Rei vossos poderes, Senhor Deus, vossa justiça ao descendente da realeza!
Com justiça ele governe o vosso povo, com equidade ele julgue os vossos pobres”
(Sl 71,1-2).

Cristo Rei com os Doze Apóstolos
(Tímpano da porta norte da Abadia de Westminster)

Notas:

[1] O termo “serviço” remete aqui à origem da palavra “Liturgia”, “serviço em favor do povo” (leiton ergon).

[2] Durante o cisma ocorrido no século XVI, a Igreja da Inglaterra rompeu também a Sucessão Apostólica, de modo que, como católicos, não reconhecemos seu sacerdócio como válido.

[3] Além do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Charles III é Rei de outros 14 países: Antígua e Barbuda, Austrália, Bahamas, Belize, Canadá, Granada, Ilhas Salomão, Jamaica, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné, Santa Lúcia, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Tuvalu.

Fonte:

The Authorised Liturgy for the Coronation Rite of His Majesty King Charles IIIDisponível em: Church of England

Brasão do Reino Unido

Emblema da coroação, com as flores dos quatro países do Reino Unido

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