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quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Homilias do Patriarca de Lisboa: Natal 2022

Como de costume, publicamos aqui as homilias do Patriarca de Lisboa (Portugal), Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, para a Solenidade do Natal do Senhor: “Guardando de noite os rebanhos…” (Missa da Noite) e “Viveremos dias ultimados” (Missa do Dia).

Missa da Noite do Natal do Senhor 2022
Guardando de noite os rebanhos…

1. Nesta celebração em que felizmente estamos, permiti que insista em dois pontos essenciais, para que o Natal nos continue a surpreender: primeiro, eram pastores, os chamados ao presépio; segundo, era de noite que tal acontecia e é de “noite” que continua a acontecer. Fixemo-nos na frase evangélica: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos» (Lc 2,8).
É certo que a temos na memória e não a esquecemos nos nossos presépios, onde não faltam pastores e ovelhas junto do Menino recém-nascido. Mas também aqui se verifica a perenidade do que nos foi transmitido.
Lembremos que se tratava de pastores, gente pobre e pouco conceituada na altura, vivendo no campo e tratando de animais. Mas lembremos igualmente que o próprio Deus se revelara na tradição bíblica como “pastor” do seu povo; e mesmo Jesus se apresentou depois como o “bom pastor”. Bom pastor, com todas as referências que faz ao conhecimento das suas ovelhas, uma a uma, à procura das que se desgarram do rebanho e à defesa de todas, face a qualquer agressão que surja.
Ainda que pobres de muitas pobrezas, ou exatamente por isso, eram pastores os que ouviram o anúncio angélico. E não foi certamente por acaso, antes requerendo alguma coincidência na atitude que devemos ter. Aqueles pastores dos arredores de Belém faziam-se parábola do que ali sucedia - de Deus para o mundo e do mundo para Deus.
Também aqui as personagens evangélicas se tornam exemplares e motivadoras para nós. O anúncio é dirigido aos que guardavam rebanhos no campo. Não dirá isto alguma coisa sobre a qualidade dos destinatários, precisamente os que hoje guardam e cuidam dos outros?
Fica a pergunta, mas adianto alguma resposta. Estou convicto de que agora mesmo, neste ano da graça de 2022, o Natal está sendo vivido muito especialmente por quem se preocupa com os outros e os acompanha e protege. Seja em situações de guerra aberta, como acontece na devastada Ucrânia e em outras partes do mundo, seja em situações de guerra surda, que endurece os corações, onde tudo afinal começa, ou se resolve. Seja como for, o Natal acontecerá de verdade onde houver quem se disponha a cuidar de quem precisa.


É assim que a nossa cidade tem esta noite tantos presépios quantos os lugares e situações em que haja bons pastores dos outros: em casas, hospitais ou mesmo ruas, onde o Menino nos espera em quem carece de algo, física ou espiritualmente que seja.
É bom assinalar o Natal com figurações a propósito, que lembrem o que aconteceu e festejem o que nos foi dado com o nascimento de Jesus. É indispensável que o celebremos, como estamos fazendo aqui, para agradecer a Deus a salvação que assim começou, tão esperada que fora - e continua a ser aonde o seu anúncio ainda não chegou, ou já foi esquecido. Mas tudo isto se há de tornar em missão, concreta, caso a caso, alargando o cuidado daqueles pastores de antanho pelos rebanhos que ali guardavam, noite adentro.

2. Também esta é uma referência a reter e muito a sério. Coincide bem com o modo de ser divino, que das trevas fez brilhar a luz e mais se manifesta no recôndito dos corações do que nos clarões que estonteiam.
Assim no relato da criação, quando “a luz foi feita”. Assim com Abraão, quando Deus lhe levantou os olhos para as miríades de estrelas que pontuavam de luz o céu noturno. Assim com Moisés, quando saiu do Egito na primeira Páscoa. Assim, Bíblia afora, até àquela noite em que Jesus revelou a Nicodemos o porquê do seu Natal e de tudo o mais: « Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16). Tudo prenúncio da noite em que do sepulcro transbordou a vida do Ressuscitado!
Não foi algo de meramente circunstancial, aquela noite em Belém. Trata-se, isso sim, de uma condição para vivermos o Natal de Cristo e quanto ele nos traz. Trata-se de acolher o Emanuel, que quer dizer “Deus-conosco”, estando nós também com Ele, no seu modo de ser e acontecer, geralmente discreto, muito discreto mesmo.
Requer um anoitecer de tudo quando nos distraia. Requer disponibilidade e concentração totais, desfazendo no nosso espírito quanto não seja Deus e a sua manifestação em Cristo: palavra, gesto e rosto, pouco a pouco desvendados.
Aliás, Jesus também rezava de noite, como neste passo evangélico: «Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus» (Lc 6,12). Realizava na terra o diálogo que eternamente mantém com o Pai. Diálogo oculto aos nossos olhos, ainda que nos chegue pelo Espírito que derramam.
É um ponto importante e uma advertência séria. Importante, porque as coisas, e sobretudo as pessoas, são muito mais do que parecem e só com muita concentração lhes captamos a verdade. Assim em relação aos outros e sobretudo em relação a Deus.
E uma advertência séria, pois corremos o risco de viver exteriormente estes dias, distraídos do essencial que nos oferecem. Do que oferecem, sim, mas apenas a quem anoitece os olhos para vislumbrar o presépio.

3. Creio que, pastoralmente falando, é uma das maiores urgências que temos, esta de nos educarmos para uma atitude contemplativa, que feche por um tempo os olhos do corpo e abra os olhos da alma para a luz que desponta.
Não é sem preparação e trabalho que nos tornaremos capazes de adorar a presença sacramental de Jesus eucarístico, qual Natal continuado, como cantou São João da Cruz: «Bem eu sei a fonte que mana e corre, embora seja noite. (...) E esta eterna fonte está escondida em este vivo pão a dar-nos vida, embora seja noite».
Convenhamos que, se “orar é falar com Deus”, temos muito mais para ouvir do que para dizer... E mais para ver com os olhos da alma do que apenas com os do corpo, tão distraídos geralmente. Se aprendermos isto em relação a Deus, também o faremos em relação aos outros, realmente ouvidos e verdadeiramente vistos. Os outros, em quem o Natal de Cristo continua, à espera de quem o divise na noite.
Talvez por isso, entre as várias Missas de Natal, seja esta particularmente tocante. Toda a tradição mística insiste no motivo da “noite” que é necessário fazer em nós, para que Deus amanheça ao nosso olhar profundo. Como São Paulo, que nos alertou para a necessidade de passarmos do visível ao invisível e finalmente entrevermos o que importa: «Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas» (2Cor 4,18).
E o próprio Cardeal Newman, hoje nos altares, foi nesses termos que cantou a sua conversão, caminhando como os pastores ao encontro do Menino Deus: «Luz terna, suave, no meio da noite, leva-me mais longe...» Assim foi e lá nos espera, em Natal alcançado.
Prossigamos então, neste caminho aberto, mesmo quando obscuro. Quando desejamos um “santo” Natal, confessamos que é de Deus e necessariamente ao seu modo. Como foi então e há de ser agora. Como acontecerá com a Jornada Mundial da Juventude, pela qual sempre rezamos, e será “Natal” para muita gente, mesmo em agosto, compartilhando Cristo vivo pelas mãos da Virgem Mãe!

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2022.


Missa do Dia do Natal do Senhor 2022
Viveremos dias ultimados

1. Permiti, caríssimos, que me fixe numa frase essencial, há bem pouco ouvida. Dela tirarei dois pontos realmente finais: que se conclui em Cristo tudo o que Deus tem para nos dizer de si próprio; e que assim mesmo se ultima o tempo todo, como criação realizada. A frase é esta: «Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, Ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também Ele criou o universo» (Hb 1,1).
Fixemo-nos neste começo da Carta aos Hebreus. E admiremo-nos com o fato de nas primeiras gerações já se conseguir enunciar em tão poucas palavras o essencial da doutrina cristã, que aprofundamos desde então. Especialmente o sentido global que contém, tão importante agora para ultrapassarmos desvios ou exclusivismos que o Evangelho de Cristo não permite.
A Carta é escrita especialmente para aqueles judeus que acreditaram em Jesus como o Messias anunciado pela tradição profética. Não mudavam propriamente de religião, antes a reconheciam completada por tudo quanto Jesus fizera e dissera. Não esqueçamos que Ele próprio não dispensava a Lei e os Profetas, mas lhes dava pleno cumprimento: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição» (Mt 5,17).
Foi também assim que os cristãos herdaram e honraram tudo o que os antigos crentes tinham transmitido e passado por escrito no que chamamos Antigo Testamento. Também a partir daí entenderam a vida de Jesus, o porquê do seu nascimento e o sentido redentor da sua morte, como Emanuel primeiro e como Servo de Yahweh depois.

2. Também continuamos a rezar os salmos, como Jesus fazia e nós com Ele prosseguimos. Dores e alegrias, medos e expectativas, pessoal ou coletivamente expressos na centena e meia de salmos que rezamos, tudo vemos à luz de Cristo, para nos revermos em Deus, que os inspirou. Tudo é humanidade no drama da salmodia e tudo pode ser salvo assim rezado.
Em todo o percurso bíblico houve progresso, de episódios situados em cada tempo e espaço para os significados mais amplos que ganharam depois. Como quem sobe os degraus da mesma escada até chegar ao seu topo, sem saltar nenhum.
Reconhecemos ainda que tendo Deus falado muitas vezes e de muitos modos ao antigo povo bíblico, a sua voz chegou também a outros pelos profetas, como foi com a viúva de Sarepta e Elias, ou com o sírio Naamã e Eliseu.
Trechos como estes não são únicos na tradição veterotestamentária e continuaram com Jesus, que chegou a elogiar no centurião romano uma fé maior do que entre os seus: «Em verdade, vos digo: nunca encontrei em Israel alguém que tivesse tanta fé. Eu vos digo: muitos virão do Oriente e do Ocidente, se sentarão à mesa no Reino dos Céus, junto com Abraão, Isaac e Jacó...» (Mt 8,10-11). A fé, sendo virtude teologal, é já comunicação divina. E o Natal de Jesus não tem fronteiras.
Detive-me aqui porque, como o Papa Francisco tem insistido, é justo e necessário reconhecer que Deus não está ausente de tudo quanto existe de mais autêntico nas várias tradições humanas. A tradição bíblica que herdamos e prosseguimos, exatamente pela grande humanidade que transporta, mesmo nas contradições que não esconde, é uma história padrão onde todas as outras podem encontrar acolhimento e campo aberto de diálogo e caminho em comum. Até certo ponto, é verdade; mas no ponto certo onde nos reencontramos como criação divina, presente em cada um, venha donde vier.
Lembremos como várias dessas outras tradições foram incorporadas no texto bíblico e, mesmo quando reinterpretadas, não foram dispensadas. Ou como São Paulo se aproximou da moral estoica para falar sobre a retidão das condutas, ou citou poetas gregos no seu discurso aos atenienses para melhor falar do Deus de todos.
Na cidade e no tempo em que vivemos, creio terem lugar considerações deste gênero, rumo a uma convivência em que se respeite e admire a contribuição de tanta gente, com o que nos traz de melhor, em humanidade alargada. Creio que o Natal de Cristo também passa por aí.
Reparemos, a propósito, que o trecho da Carta aos Hebreus diz que Deus «nos falou por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo». Nada lhe é estranho, portanto, no que à criação diz respeito. Esta é a base comum em que Jesus a situa e inteiramente perfaz. Podemos dizer que é o lugar do seu Natal, assim completo.

3. Dizia-nos também o texto da Carta aos Hebreus que estes dias “são os últimos”. Não tenhamos medo da frase, pois não se trata de tempo interrompido, mas sim realizado, nas mais profundas expectativas do coração humano.
Bem vistas as coisas, cada tempo é do tamanho da palavra que o preenche. Palavras ocas dão tempos vazios e mesmo perda de tempo, sabemos bem.
Palavras criativas, em qualquer som que tenham, essas sim, perduram. Vivemos delas no melhor da cultura que subsiste. Por vezes, damos a um tempo o nome de quem nele se expressou, fosse poeta ou músico, fosse filósofo, governante ou cidadão comum. Fosse sobretudo um santo. Tempos definidos por palavras que os demarcam.
Assim de hoje se dirá ser tempo do Papa Francisco, com as suas palavras sempre próximas e dirigidas a quem mais precisa de ser acolhido ou apoiado, como as dedicadas à situação na Ucrânia e em outras regiões devastadas pela guerra, ou referidas à dignidade dos migrantes ou aos problemas climáticos que impedem a sobrevivência das pessoas. Palavras que diz em Roma e nos locais mais problemáticos, sempre que é possível.
Estes dias são os últimos da parte de Deus, porque em Jesus nos diz tudo quanto tem para comunicar de essencial e de Si próprio. Por isso, este Menino é Verbo de Deus e Emanuel, que quer dizer Deus-conosco. Tempo de Deus a preencher o tempo humano, como nos diz Santo Agostinho nesta sua passagem tão expressiva: «Celebremos o dia feliz, em que o grande e eterno Dia, procedente do grande e eterno Dia, veio inserir-se neste nosso dia temporal e tão breve» (Sermão 185).
Diz também o trecho bíblico que n’Ele todas as coisas foram feitas. Olhemo-Lo então como padrão do que somos e havemos de ser, pois em Jesus tudo foi feito e é refeito, no sentido redentor da sua vinda ao mundo. Jesus é o enunciado final, onde se junta a expressão divina e a grande multiplicidade dos sons em que ressoa.
Em Jesus, como nasceu e viveu, recebemos tudo o que as idades nos trouxeram e continuarão a trazer, no essencial das civilizações e das culturas. A única advertência que lhes fez e fará é a de nunca ultrapassarem a humanidade concreta de cada um para chegarem ao absoluto de Deus. De Deus, que em Si mesmo é comunhão e só na comunhão com os outros se apreende. É esta a verdade do seu Natal. Tudo conflui para Jesus, como as ofertas trazidas de tão longe por aqueles magos que chegaram do Oriente.
Sejamos nós também, hoje e aqui, uma palavra ultimada e oferecida, com verdadeira qualidade cristã, a todos quantos nos procuram nesta cidade cosmopolita de Lisboa ou onde chegar a nossa vida, perto ou longe. A linguagem de Deus é solidária, dita e feita em cada gesto de Cristo e em todos aqueles em quem o seu Espírito trabalha para o bem de muitos.
Precisamos de ouvidos para ouvir deveras o que Deus nos diz no Natal de Cristo. Viveremos dias ultimados, porque nada há a acrescentar onde o amor verdadeiramente aconteça. Rezemos para que assim suceda também com a multidão de jovens de todo o mundo que virão a Lisboa na próxima Jornada Mundial da Juventude. Para que vivam dias tão preenchidos com a experiência de Cristo Vivo, que depois lhes defina a existência inteira e aonde forem.

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2022.


+ Manuel, Cardeal-Patriarca


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