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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Hinos da Festa da Sagrada Família: Ofício das Leituras

“Para as famílias cristãs, nada pode ser imaginado de mais salutar nem eficaz que o exemplo da Sagrada Família” (Papa Leão XIII, Breve Neminem Fugit) [1].

O Papa Leão XIII (†1903), como vimos em nossas postagens anteriores, foi um grande promotor da devoção à Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

Sagrada Família em Nazaré
Note-se como as madeiras seguradas pelo Menino formam a Cruz
(Christian Wilhelm Ernst Dietrich - séc. XVIII)

Com efeito, dos três hinos para a Liturgia das Horas da Festa da Sagrada Família, celebrada no domingo após o Natal, dois são de sua autoria (enquanto o terceiro foi elaborado no contexto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II):
- I e II Vésperas: O lux beáta caelitum (Ó luz bendita dos céus);
- Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida oculta de Jesus);
- Laudes: Christe, splendor Patris (Ó Cristo, luz do Pai).

Para acessar o “índice” com todos os hinos do Próprio do Tempo, clique aqui.

Em nossa postagem anterior já apresentamos o hino das Vésperas, O lux beáta caelitum, com seu texto em latim e sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos de alguns comentários sobre a sua mensagem.

Cabe-nos agora fazer o mesmo com o segundo hino do Papa Leão XIII para a Festa da Sagrada Família, entoado no Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida oculta de Jesus edificante é relembrar):

Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum

Dulce fit nobis memoráre parvum
Názarae tectum tenuémque cultum;
éxpedit Iesu tácitam reférre
cármine vitam.

Arte qua Ioseph húmili excoléndus,
ábdito Iesus iuvenéscit aevo,
seque fabrílis sócium labóris
ádicit ultro.

Assidet nato pia mater almo,
ássidet sponso bona nupta, felix
si potest curas releváre lassis
múnere amíco.

O neque expértes óperae et labóris,
nec mali ignári, míseros iuváte;
quotquot implórant cólumen, benígno
cérnite vultu.

Sit tibi, Iesu, decus atque virtus,
sancta qui vitae documénta praebes,
quique cum summo Genitóre et almo
Flámine regnas. Amen [2].

Os três membros da Sagrada Família exercem a mesma e simples atividade doméstica: estender roupas
(Lucio Massari - séc. XVI-XVII)

Ofício das Leituras: A vida oculta de Jesus

A vida oculta de Jesus
edificante é relembrar;
dizer em verso a vida pobre
de Nazaré, humilde lar.

Na arte humilde de José,
jovem Jesus já se inicia
e ao trabalho do operário
de boa mente se associa.

Junto do filho está a mãe,
junto ao esposo a santa esposa.
Lá se compensam os cansaços
por amizade afetuosa.

Vós, ó Senhor, que conheceis
bem o trabalho e o suor
dai vossa ajuda aos que trabalham,
ouvi dos fracos o clamor.

A vós, Jesus, que pelo exemplo
a vida santa nos mostrais,
glória com o Pai e o Espírito
com Quem nos séculos reinais [3].

Comentário:

Assim como o hino das Vésperas, o hino do Ofício das Leituras (antigamente chamado de “Matinas”), composto por Leão XIII em 1893, está no Breviarium Romanum desde 1920, quando o Papa Bento XV (†1922) estendeu a Festa da Sagrada Família para toda a Igreja de Rito Romano.

Originalmente, porém, este hino possuía nada menos que dez estrofes, sendo intitulado Sacra jam splendent [4]. Dessas, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II conservou cinco: a 3ª, a 5ª, a 7ª, a 8ª e a 10ª.

Papa Leão XIII, autor do hino

a) 1ª estrofe:

O hino da versão atual da Liturgia das Horas começa não com uma epiclese, isto é, com uma “invocação” do Senhor, mas sim com uma anamnese: uma “recordação” ou “memorial” da história da salvação.

Dulce fit nobis memoráre parvum Názarae tectum tenuémque cultum; éxpedit Iesu tácitam reférre cármine vitam” - “Seja doce para nós recordar a pequena casa de Nazaré e seu simples modo de viver, e cantar um hino à vida oculta de Jesus”.

A tradução brasileira, por sua vez, altera ligeiramente a ordem das frases, a fim de adequá-las à nossa língua (inclusive com rimas alternadas entre os versos pares), conservando o sentido da estrofe: “A vida oculta de Jesus edificante é relembrar, dizer em verso a vida pobre de Nazaré, humilde lar”.

O hino, com efeito, está inteiramente dedicado à “vida oculta de Jesus”, envolta na simplicidade da vida familiar e do trabalho, como sintetiza São Paulo VI em seu célebre discurso em Nazaré, lido justamente no Ofício das Leituras da Festa da Sagrada Família.

“Toda a vida de Cristo é mistério”, como indica o Catecismo da Igreja Católica (nn. 514-521). Assim, também a sua “vida oculta” é mistério de salvação (ibid., nn. 531-534) e deve ser devidamente celebrada, como indicam os dois últimos versos da estrofe.

b) 2ª estrofe:

A 2ª estrofe prossegue louvando a dimensão do trabalho, que Jesus aprende com José:

Arte qua Ioseph húmili excoléndus, ábdito Iesus iuvenéscit aevo, seque fabrílis sócium labóris ádicit ultro” - “Na arte que José humildemente exercia, o jovem Jesus vai crescendo, aderindo voluntariamente ao trabalho do operário”.

A Vulgata, tradução da Bíblia para o latim feita por São Jerônimo, utiliza o termo “faber” para referir-se a José, o qual traduz o original grego τέκτων (tékton), relacionado à palavra τέχνη (tékhne, arte ou ofício manual, donde vem “técnica”). A tradição refere-se a José como carpinteiro, embora os termos usados na Escritura indiquem qualquer pessoa que trabalha com as mãos.

Jesus e José trabalhando como carpinteiros e Maria costurando
(Mosaico no Santuário de Torreciudad, Espanha)

O hino de Leão XIII destaca uma dupla dimensão do trabalho: “arte” (no sentido de habilidade, de técnica) e “labor” (no sentido de empenho físico, de cansaço), destacando que Jesus acolheu livremente o trabalho, como bem sintetiza a monição introdutória da Bênção de locais de trabalho:

“Cristo Jesus revelou a grande dignidade do trabalho quando Ele, a Palavra do Pai encarnada, se dignou ser chamado filho do operário, e quis humildemente exercer com as próprias mãos as tarefas do operário, fazendo assim desaparecer a maldição do pecado e transformando o trabalho numa fonte de bênçãos” [6].

Com efeito, enquanto o primeiro Adão via o trabalho como castigo (cf. Gn 3,17-19), o novo Adão, Cristo, o santifica e transforma em fonte de bênçãos.

c) 3ª estrofe:

Após celebrar o trabalho, nosso hino exalta na estrofe seguinte outra das “lições de Nazaré”: a vida familiar.

Assidet nato pia mater almo” - “A Mãe amorosa se senta com o Filho santo”. O adjetivo “pia” indica aqui o afeto maternal de Maria em relação a Jesus, ao qual o hino aplica o adjetivo “almus”. Esse é um termo recorrente nos hinos, como vimos em postagens anteriores, significando “benigno”, “santo”, “aquele que dá a vida”.

A Virgem-Mãe com seu Filho ao colo, com efeito, imagem amplamente utilizada na arte cristã, é intuída já no Evangelho, particularmente no relato da visita dos magos ao Menino (Mt 2,11).

Assidet sponso bona nupta” - “Sentada junto ao esposo está a boa esposa (ou a fiel esposa)”. Este segundo verso da estrofe refere-se à Virgem Maria como esposa de José; mas também pode nos remeter, em sentido simbólico, a Maria como modelo da Igreja, fiel Esposa de Cristo.

 A Virgem Maria com o Menino ao colo, tendo junto a si o esposo, São José
O livro simboliza a obediência de ambos à Palavra de Deus
(Francesco Albani - séc. XVI-XVII)

Por fim, os dois últimos versos da estrofe retomam o tema do cansaço do trabalho, indicando que a Esposa “é feliz por poder aliviar o cansaço [do esposo e do Filho] com o serviço do seu amor” (felix si potest curas releváre lassis múnere amíco).

O amor familiar é expresso aqui, com efeito, com um “múnus”, um serviço ou ministério, um dom: múnere amíco. Amizade, por sua vez, remete ao termo grego φιλία (philia), empregado tanto para o amor familiar quanto para o amor entre os amigos.

Como indica o Papa Bento XVI em sua Encíclica Deus Caritas Est (n. 3), o amor philia “é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos”: “Já não vos chamo servos, mas amigos” (Jo 15,5). Esta amizade será levada por Cristo ao extremo (Jo 13,1), transformando-se em amor αγάπη (ágape), quando Ele oferece a própria vida pela salvação dos amigos (Jo 15,12-14).

d) 4ª estrofe:

Após a “anamnese” ou recordação nas primeiras três estrofes, a 4ª estrofe traz uma “epiclese”, isto é, uma invocação ou súplica.

O primeiro verso do original é “O neque expértes óperae et labóris”, isto é, “Ó [vós] que não fostes privados do trabalho e da fadiga”. A expressão poderia ser dirigida aos três membros da Sagrada Família, uma vez que Jesus e José se dedicaram ao trabalho braçal, como vimos na 2ª estrofe, e Maria ao trabalho doméstico.

Porém, na tradução brasileira se especifica o destinatário da súplica: “Vós, ó Senhor, que conheceis bem o trabalho e o suor”.

Segue-se, a partir do segundo verso da estrofe, a súplica propriamente dita, com dois pedidos:
- “Nec mali ignári, míseros iuváte” - “[Vós] que não ignorais o mal, socorrei os míseros”;
- “Quotquot implórant cólumen, benigno cérnite vultu” - “Olhai com rosto benigno a quantos imploram sustento”.

Escultura da Sagrada Família em Turckheim, França
(Note-se o Menino com os braços abertos, em um gesto de bênção)

A tradução brasileira, por sua vez, inclui explicitamente na súplica os trabalhadores: “dai vossa ajuda aos que trabalham, ouvi dos fracos o clamor”.

Com efeito, Félix Arocena em sua obra Los himnos de la Liturgia de las Horas destaca como esta estrofe se aproxima da preocupação do Papa Leão XIII pela condição dos operários, delineada sobretudo em sua Encíclica Rerum Novarum (1891), um marco da Doutrina Social da Igreja [6].

e) 5ª estrofe:

Assim como no hino das Vésperas, a última estrofe compõe uma doxologia (breve fórmula de louvor), dirigida primeiramente a Cristo e em seguida estendida às outras duas Pessoas da Santíssima Trindade

Como vimos em nossa postagem anterior, com efeito, Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o ponto de intersecção entre a família humana e a Trindade, perfeito Mediador entre nós e o Pai (1Tm 2,5).

Sit tibi, Iesu, decus atque virtus, sancta qui vitae documénta praebes” - “Jesus, a ti seja a honra e a virtude (poder), a ti que nos dás um santo testemunho de vida”.

Como afirmamos anteriormente, toda a vida de Cristo é mistério de salvação: Ele nos ensina não apenas por suas palavras, mas também pelo seu exemplo de vida, como fica claro na tradução brasileira do nosso hino: “A vós, Jesus, que pelo exemplo a vida santa nos mostrais”.

O hino conclui envolvendo toda a Trindade no louvor: “quique cum summo Genitóre et almo Flámine regnas. Amen”; “Tu que reinas com o Pai Altíssimo e o Espírito que dá vida. Amém”.

Como vimos acima, o adjetivo “almus”, aplicado a Cristo na 3ª estrofe, é agora usado para qualificar o Espírito como “benigno”, “santo”, “aquele que dá a vida”.

A Sagrada Família iluminada pelo Espírito Santo

Notas:

[1] “Nihil magis salutare aut efficax familiis christianis cogitari potest exemplo Sacrae Familiae”: Acta Sanctae Sedis, vol. XXV, 1892-1893, p. 14.


[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 380.


[5] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 220.

[6] AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, p. 122.

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