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segunda-feira, 5 de abril de 2021

Homilia do Cardeal Cantalamessa: Celebração da Paixão 2021

Cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
02 de abril de 2021

“Primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29)

Em 03 de outubro passado, junto à tumba de São Francisco, em Assis, o Santo Padre assinava a sua Encíclica sobre a fraternidade, Fratres omnes (Fratelli tutti). Em pouco tempo, ela fez renascer em tantos corações a aspiração quanto a este valor universal, trouxe à luz tantas feridas contra ela no mundo de hoje, indicou algumas vias para se chegar a uma verdadeira e justa fraternidade humana e exortou todos - pessoas e instituições - a trabalhar por ela.
A Encíclica é endereçada idealmente a um público vastíssimo, dentro e fora da Igreja: na prática, a toda a humanidade. Toca muitas esferas da vida: da privada à pública, da religiosa à social e política. Devido a este seu horizonte universal, ela evita - justamente - restringir o discurso ao que é próprio e exclusivo dos cristãos. Contudo, pelo final da Encíclica, há um parágrafo em que o fundamento evangélico da fraternidade é resumido em poucas, mas vibrantes palavras. Afirma:
“Outros bebem de outras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, ‘para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos’” (Fratelli tutti, n. 277).
O mistério da cruz que estamos celebrando nos obriga a nos concentrarmos justamente neste fundamento cristológico da fraternidade, que foi inaugurado na morte de Cristo.
No Novo Testamento, “irmão” significa, em sentido primordial, a pessoa nascida do mesmo pai e da mesma mãe. “Irmãos”, em segundo lugar, são chamados os membros do mesmo povo e nação. Assim Paulo afirma estar disposto a se tornar anátema, separado de Cristo, em vantagem de seus irmãos segundo a carne, os israelitas (cf. Rm 9,3). Claro que, nestes contextos, como em outros casos, “irmãos” abrange homens e mulheres, irmãos e irmãs.
Neste alargamento de horizonte, chega-se a chamar de irmão cada pessoa humana, pelo fato de ser tal. Irmão é aquele que a Bíblia chama de “próximo”. “Quem não ama o próprio irmão...” (1Jo 2,9) significa: quem não ama o seu próximo. Quando Jesus diz: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40), compreende toda pessoa humana necessitada de ajuda.
Mas, ao lado destes significados antigos e conhecidos, no Novo Testamento a palavra “irmão” tende sempre mais a indicar uma categoria particular de pessoas. Irmãos entre si são os discípulos de Jesus, aqueles que acolhem seus ensinamentos. “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos? (...) Todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,48-50).
Nesta linha, a Páscoa marca uma etapa nova e decisiva. Graças a ela, Cristo se torna “o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29). Os discípulos se tornam irmãos em sentido novo e profundíssimo: compartilham não apenas o ensinamento de Jesus, mas também seu Espírito, sua nova vida de ressuscitado. É significativo que, somente após sua Ressurreição, pela primeira vez, Jesus chama os seus discípulos de “irmãos”: “Vai dizer aos meus irmãos - diz a Maria Madalena - que eu subo para junto do meu Pai e vosso Pai, meu deus e vosso Deus” (Jo 20,17). “Pois tanto o Santificador, quanto os santificados - lê-se na Carta aos Hebreus - todos procedem de um só. Por esta razão, Ele (Cristo) não se envergonha de chamá-los irmãos” (Hb 2,11).
Depois da Páscoa, este é o uso mais comum do termo “irmão”; indica o irmão de fé, membro da comunidade cristã. Irmãos “de sangue”, também neste caso, mas do sangue de Cristo! Isso faz da fraternidade de Cristo algo de único e transcendente, em relação a qualquer outro gênero de fraternidade, e deve-se ao fato de que Cristo é também Deus. Ela não substitui os demais tipos de fraternidade, baseados na família, nação ou raça, mas coroa-os. Todos os seres humanos são irmãos enquanto criaturas do mesmo Deus e Pai. A isso, a fé cristã acrescenta uma segunda e decisiva razão. Somos irmãos não apenas a título de criação, mas também de redenção; não só porque todos temos o mesmo Pai, mas porque todos temos o mesmo irmão, Cristo, “primogênito entre muitos irmãos”.

À luz de tudo isso, devemos fazer agora algumas reflexões atuais. A fraternidade se constrói exatamente como se constrói a paz, isto é começando de perto, a partir de nós, não com grandes esquemas, com metas ambiciosas e abstratas. Isto significa que a fraternidade universal começa para nós com a fraternidade na Igreja Católica. Deixo de lado, por uma vez, também a segunda esfera, que é a fraternidade entre todos os fiéis em Cristo, ou seja, o ecumenismo.
A fraternidade católica está dilacerada! A túnica de Cristo foi cortada em pedaços pelas divisões entre as Igrejas; mas - o que não é menos grave - cada pedaço da túnica, por sua vez, é frequentemente dividido em outros pedaços. Naturalmente, falo do elemento humano dela, porque a verdadeira túnica de Cristo, seu corpo místico animado pelo Espírito Santo, ninguém jamais poderá dilacerar. Aos olhos de Deus, a Igreja é “una, santa, católica e apostólica”, e assim permanecerá até o fim do mundo. Isto, contudo, não desculpa as nossas divisões, mas as torna ainda mais culpáveis e deve nos impulsionar, com mais força, a restaurá-las.
Qual é a causa mais comum das divisões entre os católicos? Não é o dogma, não são os sacramentos e os ministérios: coisas estas que, por singular graça de Deus, mantemos íntegras e unânimes. É a opção política, quando ela se sobrepõe àquela religiosa e eclesial e desposa uma ideologia, esquecendo completamente o sentido e o dever da obediência na Igreja.
É isto, em certas partes do mundo, o verdadeiro fator de divisão, ainda que tácito ou indignadamente. Isto é um pecado, no sentido mais estrito do termo. Significa que o “o reino deste mundo” se tornou mais importante, no próprio coração, do que o Reino de Deus. Creio que sejamos todos chamados a fazer um sério exame de consciência sobre isso e a nos convertermos. Esta é, por excelência, a obra daquele cujo nome é “diabolos”, isto é, o divisor, o inimigo que semeia o joio, como o define Jesus em sua parábola (cf. Mt 13,25).

Devemos aprender do Evangelho e do exemplo de Jesus. Ao redor dele, havia uma forte polarização política. Existiam quatro partidos: fariseus, saduceus, herodianos e zelotes. Jesus não ficou do lado de nenhum deles e resistiu energicamente à tentativa de ser arrastado para uma parte ou outra. A comunidade cristã primitiva o seguiu fielmente nesta opção. Este é um exemplo sobretudo para os pastores que devem ser pastores de todo o rebanho, não apenas de uma parte dele. São eles, por isso, os primeiros a ter que fazer um sério exame de consciência e se perguntar para onde estão conduzindo o próprio rebanho: se à própria parte (ou ao próprio “partido”), ou à parte de Jesus. O Concílio Vaticano II confia aos leigos, antes de tudo, a tarefa de traduzir as indicações sociais, econômicas e políticas do Evangelho em diferentes opções, desde que sejam sempre respeitosas e pacíficas.

Se há um dom ou carisma próprio que a Igreja Católica deve cultivar em benefício de todas as Igrejas, este é a unidade. A recente viagem do Santo Padre ao Iraque nos fez ver concretamente o que significa, para quem está oprimido ou afligido por guerras e perseguição, sentir-se parte de um corpo universal, com alguém que pode fazer o resto do mundo escutar o próprio grito e fazer renascer a esperança. Ainda uma vez, cumpriu-se o mandato de Cristo a Pedro: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22,32).
Àquele que morreu na cruz “para reconduzir à unidade os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52) elevemos, neste dia, “com coração contrito e espírito humilde”, a oração que a Igreja dirige em cada Missa antes da Comunhão:
Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos Apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima vossa Igreja; dai-lhe, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo. Amém.



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