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sábado, 20 de fevereiro de 2021

Quarta-feira de Cinzas em Lisboa: Homilia

Homilia da Missa de Quarta-Feira de Cinzas 2021
Uma Quaresma que nos leve à Páscoa

«Diz agora o Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração”. Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso». Lembrando tudo o mais - o que cantamos no Salmo, o que ouvimos de Paulo e o Evangelho que ressoa - fixemo-nos hoje no trecho de Joel, escolhido para inaugurar este tempo de graça. Da graça da conversão, ou seja, a que mais importa. Especialmente quando a pandemia nos confina fisicamente, mas não nos fecha o coração.
“Convertei-vos ao Senhor vosso Deus!” Enuncia-se num instante e requer uma vida inteira para se realizar plenamente, de Quaresma em Quaresma, mais e sempre mais, em totalidade e consequência. Um programa que não se esgota em quarenta dias, mas com eles há de avançar. Assim mesmo acompanharemos quantos sofreram e sofrem com a presente pandemia, bem como os que abnegadamente trabalham para debelá-la, no setor da saúde e na sociedade em geral.
Conversão que nada tem de abstrato, bem pelo contrário. Para quem aceita a revelação divina, como em Cristo se conclui, ganha uma dimensão uni-trinitária e caritativa bem definida e precisa.

De que Deus falamos, para a Ele nos convertermos, em Quaresma autêntica? Como professamos no Credo, começa por ser “Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Aceitá-Lo assim, significa aceitar-nos a nós como suas criaturas, correspondendo a este fato basilar, com toda a consequência espiritual e prática.
Estamos aqui, porque neste preciso momento Deus nos mantém vivos e nos quer consigo. Vivos para vivermos e convivermos com os outros e a criação inteira, tomando-a como obra divina e dom do Criador. É esse o primeiro mandamento bíblico, convém lembrar: «O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também para o guardar» (Gn 2,15). Mandamento muito mal cumprido, infelizmente, mas nem por isso olvidável - e muito menos agora, com a urgência ecológica que sobre nós impende.
A conversão a Deus criador passa antes de mais por respeitar a sua obra e viver em ação de graças. É exatamente o contrário da concupiscência destrutiva, que tudo quer capturar e esgotar em si mesma. Lembremos a magnífica afirmação de Santo Ireneu, sobre o arco completo de uma criação realizada, de Deus para nós e de nós para Deus: «A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus». Sim, a nossa vida manifesta o poder criador de Deus, a sua glória. Mas não se conclui nem basta em cada um, antes no retorno à Fonte comum de tudo e todos, só em Deus contemplável.
Os motivos quaresmais do jejum, da esmola e da oração, não são meros exercícios ascéticos, aliás presentes na religiosidade em geral e até além desta. Quando o próprio Jesus nos recomenda discrição em tudo isso, quer alertar-nos para a exterioridade que nada resolve e geralmente despista. Sobriedade e partilha, autenticamente vividas, desprendem-nos de gulas e cobiças que não nos educam no gosto de Deus, nem nos libertam de egoísmos fatais. Um e outro, jejum e esmola, levam-nos à oração cristã, como o “Pai-nosso” a ensina.
Escreve-nos o Papa Francisco, na Mensagem em que nos apresenta esta Quaresma como “tempo para renovar a fé, a esperança e a caridade”: «O jejum, a oração e a esmola - tal como são apresentados por Jesus na sua pregação (cfMt 6,1-18) - são as condições para a nossa conversão e sua expressão. O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa».

Crer em Deus criador significa, neste tempo que nos cabe e justamente preocupa, estar sempre do lado da vida de todos e de cada um, reconhecendo-lhe o valor absoluto que detém do próprio Deus. E protegendo-a em todo o seu percurso, do ventre materno à morte natural. 
A inviolabilidade da vida humana é a única garantia da sua defesa, face a qualquer exceção que, mesmo legalmente autorizada, rapidamente deslizaria para a respectiva negação. Nesta mesma Quaresma e na sociedade que integramos, a conversão a Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, exige-nos atitudes firmes neste ponto, face a eventuais disposições legais e quanto à consciência que as examina e supera. 
Assim começamos há dois mil anos, aliás com outros, e assim estamos prontos a recomeçar agora, com muitos outros também, confessionais ou não. É uma frente comum de humanidade cuidadora e paliativa. Também neste ponto vale a exortação de São Pedro às primeiras gerações cristãs: «[Estai] sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantendo limpa a consciência…» (1Pd 3,15-16).

Conversão a Deus, nesta Quaresma agora, traduz-se igualmente, retomando o Credo, em acreditar em “Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor». Deus diz-Se e comunica-Se inteiramente em Cristo, sua Palavra encarnada, na humanidade que o sim de Maria lhe deu. Assim mesmo compartilhou a condição humana, sobretudo nos dramas e tragédias que tanto contrariam a criação divina. 
“Até à morte e morte de cruz” (cfFl 2,8): Morte e cruz que, sendo nossas, foram por Ele assumidas, para preenchê-las com a sua vida. Foi assim que a Palavra criadora se tornou redentora, redizendo-nos perfeitamente segundo Deus. Por isso ressuscitou e nos ressuscita agora, no cumprimento batismal de cada um.
Presença que a nossa conversão reconhece e acolhe na humanidade em que se alarga. Esclarece o mesmo Evangelho como há de acontecer pela positiva: «Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25,35-36). Se cada um traduzir esta atitude, no que concretamente lhe couber, aí mesmo realizará a mais perfeita Quaresma.

Conversão é também, continua o Credo, a Deus Espírito Santo, que nos inclui na relação de Cristo com o Pai, em perfeita comunhão. Espírito que nos fará compreender o que Cristo é e como prometeu: «Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há de guiar-vos para a Verdade completa. (...) Ele há de manifestar a minha glória, porque receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso é que eu disse: “Receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer”» (Jo 16,12-15). 
Sim, converter-se a Deus é aceitá-Lo como Ele próprio se revela: Pai criador, que nos recria no Filho, em quem inteiramente se diz na humanidade que somos e havemos de ser; Espírito que nos dá, para que a vida divina seja nossa também.
Que importante será, se nesta Quaresma deixarmos o Espírito “conduzir-nos ao deserto”, como o fez a Jesus (cfMt 4,1), para mais nos convertermos à palavra do Pai e à sua exclusiva adoração! Mesmo quando o dia-a-dia nos atém aos espaços habituais - ainda mais confinados pela presente pandemia -, o “deserto” bíblico assinala o íntimo lugar das escolhas radicais, onde a liberdade e a caridade simultaneamente despontam. 
Jejum, esmola e oração, ganham aqui o sentido perfeito. No alimento essencial que Deus é e oferece, relativizando tudo o mais; na partilha com que cada um garante o necessário a todos; na oração que nos mantém na verdade absoluta de sermos de Deus e para Deus.
É assim, só assim, que esta Quaresma nos levará à Páscoa!

Sé de Lisboa, Quarta-feira de Cinzas, 17 de fevereiro de 2021.

+ Manuel, Cardeal-Patriarca



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