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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Homilias do Patriarca de Lisboa: Natal 2020

Publicamos aqui as homilias de Natal (Missa da Noite e Missa do Dia) do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente neste ano de 2020:

Homilia na Missa da Noite de Natal
O modo de Deus acontecer no mundo

Celebremos verdadeiramente o Natal. Celebremo-lo sem passar depressa demais pelas palavras e pelo difícil contexto em que o fazemos este ano, tão marcado pela pandemia e as suas consequências no campo da saúde, do trabalho e da vida em geral.
É neste contexto que celebramos o Natal de Cristo. Sabemos como se tornou motivo direto e indireto de outras coisas, legítimas certamente, como a reunião familiar, as iluminações e as prendas, as saudações e os bons votos a presentes e ausentes. Ainda bem que assim foi e continua a ser, embora condicionados pelas atuais restrições. Não se reduza a boa vontade, que encontra sempre modo de chegar aos outros, pois o coração vence as distâncias.
Importa, porém, não deixar que outros motivos diluam ou encubram o que realmente originou o Natal. Muito menos que o contradigam, como se fizéssemos deste dia algo diferente do que ele foi.
Natal significa nascimento - e nascimento de Jesus Cristo. Os Evangelhos da Infância de Jesus dizem-nos o que aconteceu, no mais profundo desse acontecer. Estão envoltos em motivos bíblicos, que preenchem o significado do presépio de Belém. Se bem repararmos, o essencial é ter sido assim, de modo tão original e interpelante, hoje como então.
A originalidade do nascimento de Cristo, como admirou na altura e nos admira agora, interroga-nos a todos e esclarece os crentes sobre aquilo a que podemos chamar a surpresa de Deus neste mundo.
Reparemos que há muitos séculos se vinha desenvolvendo na tradição profética de Israel a expetativa de um Messias (= Cristo), cheio do Espírito de Deus para anunciar a Boa Nova aos pobres. Assim se apresentou Jesus, anos mais tarde, na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4,18). Aliás, entre os próprios romanos, havia quem anunciasse a chegada duma nova idade do mundo, coincidente com o Império de Octávio César Augusto...
Grandes expectativas, mas dificilmente aproximáveis do modo, tão desprovido e simples, como Jesus nasceu, viveu e morreu. Ou como os crentes O sentem agora, bem presente nas suas vidas, tão forte como discreto “Emanuel”, que que dizer “Deus conosco” - proposta permanente e imposição nenhuma.
Deus conosco, como Deus acontece no mundo e nas vidas. Não O imaginemos doutra forma, pois só nos veríamos a nós, mais ou menos sonhados e fantasiados. Fixemo-nos no Presépio e no concreto daquela situação e respetivos circunstantes.

Creio que esta fixação no presépio de Belém nos ajudará especialmente no momento atual, com as dificuldades sobrevindas e que a muitos atingem gravemente, por esse mundo além ou aquém. Contemplado com persistência e devoção, aquele Menino reflete-se em tantos outros, nascidos ou por nascer, cujas famílias também não encontram lugar apropriado e capaz. Entrevemo-Lo já, no seu percurso depois, próximo dos pobres de todas as pobrezas, inteiramente solidário em palavras e obras.
Mas tudo começou daquele modo, num lugar recôndito e tão diverso de Roma com o seu imperador, ou mesmo de Jerusalém com o seu rei. Isto mesmo nos importa, para sabermos como fazer agora, diante da vida própria e alheia, como nos toca a todos e a tanta gente pesa.
Se quisermos realmente celebrar e viver este Natal de 2020, façamo-lo à única luz daquela noite em Belém de Judá. Aceitemos cada um como sinal de Deus a aparecer neste mundo, sobretudo nos mais carentes e frágeis. O presépio onde nasceu pode ser agora a cama dum hospital, ou o leito doméstico dum doente. A solidão que envolvia aquele reduzido grupo, pode ser hoje a que entristece tantas pessoas sós e à espera da visita que tarda ou da mensagem que não chega. Sejamos para os outros os presentes que o Menino não teve. Neles nos espera, no grande presépio do mundo.

A eterna lição do Natal de Cristo é o modo de Deus nos acontecer. Convertamo-nos de vez ao modo divino de ser e de fazer. Veio ao nosso encontro numa pequenez inaudita. Viveu poucos anos num espaço limitado. Aí mesmo lançou à terra a menor das sementes, que foi sempre crescendo pelo mundo além. Dois milênios depois, estamos nós aqui, celebrando e confirmando a força invencível da fragilidade divina.
Nós aqui, neste templo vetusto. Outros mais longe, onde nem os templos se podem levantar, ou permanecer seguros. Mas o Natal sempre cresce, com a força que só Deus lhe garante. 
Aprendemos assim o certíssimo modo de ir resolvendo as coisas, mesmo as mais difíceis. Chegando ao muito pelo pouco, ao grande pelo pequeno e à humanidade de todos pela atenção a cada um. Mais do que com grandiosos projetos e meios formidáveis, as grandes obras começam com grandes corações. Corações que se fortalecem na medida em que acolhem o Coração divino. Esse mesmo que pulsou naquela noite abençoada.
Dois mil anos de Evangelho, nas mais diversas latitudes e circunstâncias, por vezes bem difíceis como foram e como são, garantem-nos absolutamente que é assim. Alarga-se continuamente o portal do Presépio de Belém.

Há um ano, o Papa Francisco dirigiu-nos uma belíssima mensagem, para nos fixar o olhar no Presépio, sem nos distrairmos com motivos que nos alheiem dele e do seu verdadeiro significado. Este ano, noutro magnífico texto, apresenta-nos a figura tutelar de São José, que, adotando Jesus, nos adota também a nós. Assim escreve: «O objetivo desta Carta Apostólica é aumentar o amor por este grande Santo, para nos sentirmos impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos as suas virtudes e o seu desvelo» (Carta Apostólica Patris corde, conclusão).
São José acompanha-nos sempre, sobretudo com o seu exemplo, cumprindo uma missão que o ultrapassava mas não dispensava. Acompanhemos os outros, como São José cuidou do Menino que Deus lhe confiou.
Com Jesus, Maria e José, houve e continuará a haver Natal neste mundo!

Sé de Lisboa, 24 de dezembro de 2020.

Homilia da Missa do Dia do Natal
A eterna lição do Natal

De novo em Natal, para um Natal sempre novo. Assim podemos dizer e assim deve ser, hoje também. Hoje, quando as condições sanitárias nos obrigam a grandes cuidados e nos restringem as habituais convivências. Hoje, quando tantas famílias se preocupam com algum membro atingido pela pandemia e tantos profissionais da saúde se desdobram no tratamento de doentes. Hoje, quando os responsáveis dos vários setores se mantém vigilantes e ativos para que a vida de todos se mantenha segura e sustentável. Hoje, quando ainda há tanto a fazer para que a ninguém falte abrigo, alimentação e trabalho. Hoje, quando os nossos idosos não podem receber as visitas dos seus e tantos cuidadores se desvelam para não lhes faltar o conforto. Hoje, quando por esse mundo além e aquém se multiplicam refugiados e emigrantes forçados, que têm inegável direito a ser acolhidos e respeitados em qualquer lugar onde cheguem. Não consta que São José tenha encontrado dificuldades de maior, quando se refugiou no Egito, com o Menino e Sua Mãe.
Hoje, da parte de Deus, é seguramente Natal. Da nossa parte há de sê-lo também, no que a cada um lhe caiba e no que a todos compete. Da parte de Deus, como em Belém de Judá há dois milénios, aconteceu com tal força própria que acabou por se repercutir na cultura e na sensibilidade humanas, com inegável persuasão e até para além da confessionalidade estrita.
Mesmo quando não o celebram liturgicamente, mesmo quando as circunstâncias parecem contradizê-lo, mesmo quando não o nomeiam expressamente, homens e mulheres do mundo inteiro, crianças, adultos ou idosos, esperam o “Natal”, buscam-lhe os sinais e adivinham-lhe a necessidade, ainda como esperança. Desejam que “seja Natal todos os dias”, aspiram à paz que anuncia, descontentam-se por não ser assim, finalmente e já.
O Natal de Cristo tornou-se lição universal e este dia é o seu exame para todos. - Como nos classificaremos este ano, depois das dificuldades enfrentadas, pessoal, social e até eclesialmente falando? Positiva é certamente a nota relativa à vontade de responder às incidências da pandemia, por entidades públicas e particulares. Vontade de responder que foi geral e muitas vezes abnegada, aumentando o esforço e superando lacunas, também por parte de paróquias e instituições religiosas. Mas é essa boa vontade, solidária, competente e criativa, que permitirá aumentar ainda mais a classificação geral das provas natalícias de ano para ano.

Se a lição do Natal se tornou tão forte e duradoura, tal se deve essencialmente ao fato de ser divina, surpreendentemente divina. As lições que a humanidade pretende dar-se só por si, valem o que valem, por vezes muito, mas sempre de menos. Nunca conseguem ir além do humano, demasiadamente humano, mesmo que se destinem a todos, ou a todos se queiram impor. 
Nas sucessivas formas culturais e civilizacionais, marcam-se inícios, apogeus e declínios. Nunca se volta exatamente ao ponto de partida, porque algo se acumulou entretanto, como experiência convivida e alguma inovação alcançada. Mas nunca basta e somam-se interrupções e atrasos. Por vezes apresentam-se como “progressos civilizacionais” autênticos retrocessos humanitários, como no que diz respeito à integralidade da vida humana, quando deixa de ser legalmente protegida em todo o seu devir e não se usam os recursos que o progresso científico nos oferece para fazê-lo, de forma positiva e generalizada, até ao termo natural de cada um.
A lição do Natal é divina, porque ninguém o imaginava do modo como realmente foi. Desde que a humanidade ganhou consciência de si, manifestou vontade em ter alguma ciência da divindade, plural ou singular. Mas dificilmente saiu de si própria, transpondo-se para o além, agigantando a sua pequenez, procurando segurança algures. Dos primeiros traços que deixou, nas paredes de grutas ou construções pré-históricas, aos grandes edifícios dos primeiros e últimos impérios, ressalta sempre e sobretudo a projeção humana além de si - hesitante, situada e finalmente impossível. 

Mas «o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória...». Neste magnífico hino das origens cristãs, está a lição do Natal plenamente enunciada, colocando-nos a atenção, a contemplação e a devoção no exclusivo ponto onde devem estar, isto é, na irredutível iniciativa divina.
Não seremos nós a dizer Deus, é Deus que unicamente se diz. Podemos concluir que razoavelmente é assim e sem alternativa capaz. Mas a iniciativa foi sua e em pleno contraste com qualquer construção humana, por mais intelectual e bem propositada que fosse.
Deus verbaliza-se, diz-se naquele Menino único onde cabem todas as idades, ligando a fragilidade da carne à realidade absoluta d’Aquele que a assume e ressuscita. Não deixará de ser “carne”, sentindo e sofrendo, do presépio à cruz, mas sanando-a pela constante ligação a Deus Pai, no Espírito que compartilham e nos inclui também.
Esta autorrevelação de Deus, dito em Jesus, seu Verbo incarnado, aconteceu ali, naquele tempo e lugar. Mas, exatamente por ser divina, irrompe por todo o espaço e tempo, preenchendo toda a “carne” da humanidade que sente e que sofre, que ri e que chora, que oferece ou implora. 
Deixemo-nos surpreender pela constante e inesgotável lição do Natal. Este é o presépio a que devemos acorrer como os pastores, gente pobre e disponível; ou depois os magos, gente desinstalada e à procura. Com todas as figurações que o seu dia-a-dia nos trouxer, aí mesmo e só aí “veremos a sua glória”.
Santo Irineu, no segundo século cristão, escreveu que «a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus». Felicíssima síntese e arco perfeito, de Deus para o homem e do homem para Deus, como no Natal se admira e contempla. Na humanidade renascida do Verbo incarnado está a glória de Deus, a plena manifestação do seu poder, que é o seu amor criador.
Não o perdendo nunca, da vista e do coração, viveremos também e plenamente. Com o salmista cantaremos: «Em Vós Senhor está a fonte da vida. Na vossa luz veremos a luz» (Sl 36,10)!      

Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2020


+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Fonte: Patriarcado de Lisboa

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