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sexta-feira, 17 de abril de 2020

Homilias do Patriarca de Lisboa: Semana Santa 2020

Publicamos aqui as homilias do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, proferidas durante as celebrações da Semana Santa deste ano na Sé Patriarcal de Lisboa:

Homilia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor
Da decepção à conversão

Acompanhamos Jesus, da entrada em Jerusalém à sua morte e sepultura. Ouvimos outros trechos bíblicos, condicentes com o significado deste dia. Guardemos tudo em memória viva. 
Podemos verificar que, à exceção de Jesus, o sentimento geral foi de decepção. Aqueles ramos levantados, aqueles hosanas entusiásticos, não prometiam tal desfecho, tão poucos dias depois. Era o Messias régio que finalmente entrava na sua cidade. Sua e não dos ocupantes romanos; sua e não dos régulos herodianos; sua e não dos poderosos mesquinhos…
Lembravam a antiga profecia, prevendo a sua entrada, sentado num simples jumento, como de facto foi. Mas não compreendiam que a humildade da montada assinalava a muito maior humildade de quem chegava. Só viam o “Filho de Davi”, que não poderia ser menos poderoso do que o seu antepassado, jamais esquecido.
Mas nada correspondeu a quanto esperavam. Pelo contrário, tudo pareceu confirmar o que diziam os seus opositores. Que o Messias não podia ser assim, nem vir donde vinha, nem falar como falara, pondo em causa velhas práticas e interdições. Que era mesmo um perigo, podendo provocar os romanos e trazer mais opressão…
Daí a dias, quantos terão sido os que, no pretório de Pilatos, mudaram os hosanas em condenações? Terão sido muitos e uníssonos. Sugestionados, é certo, pelos habituais inimigos de Jesus. Mas a sugestão deve ter coincidido com uma grande decepção. 
Aliás, não foi só dessa vez que se decepcionaram com possíveis messias, também aclamados e também derrotados. A memória dum passado glorioso, guardada em tempos desconformes, proporciona sempre alvoroços e desilusões. É uma verificação tão trágica como repetida.

Deparamos com um caso mais personalizado. Foi também de decepção que se tratou, com Judas Iscariotes. Fora um dos escolhidos por Jesus, do seu círculo mais próximo, testemunha de palavras e gestos que certamente o maravilharam e atraíram. Porém não os interpretou segundo Jesus, mas segundo Judas. Como garantias de mais um reino “deste mundo” e não como sinais de outro a começar, diferente e já aqui. 
Daí a deceção. Daí a coincidência com os inimigos de Jesus, que entendiam ser melhor que morresse, para não provocar os romanos com alguma agitação indevida. Daí que aceitasse trinta moedas para lhes entregar Jesus. Também doutras moedas fala um Evangelho, a propósito de Judas. Diz que, por cobiça, as tirava da bolsa comum do grupo. A decepção juntava-se à falta de escrúpulos (cf. Jo 12,4-6).
No caso dos outros discípulos, também haveria decepção naquela altura. A entrada na cidade correra tão bem… Mas o que se sobrepôs foi o medo. Mesmo que pouco antes prometessem que não abandonariam Jesus. Talvez esperassem que não fosse tão assim, tão decididamente indefeso.
Fugiram todos. Pedro ainda o seguiu até à casa de Anás, mas para negar conhecê-lo, logo que identificado como seu discípulo. Ao contrário de Judas, que morreu de remorso, Pedro arrependeu-se e testemunhou Jesus até ao fim dos seus dias.
Da decepção geral, mesmo dos mais próximos, darão conta os discípulos de Emaús: «Nós esperávamos que fosse ele o que viria redimir Israel…» (Lc 24,21). Mas afinal não fora como esperavam, da maneira que pensavam.


Começamos uma Semana Santa muito especial e diferente, enfrentando a presente pandemia. Com alguma decepção também, não podendo já contar com o que contávamos, no que diz respeito a tempos e lugares previstos. Com receios e cautelas, por nós e pelos nossos. Com atenção solidária a enfermos e cuidadores, que tanto a merecem, uns e outros.
Mas pode existir também, aqui e ali, alguma decepção ”religiosa”. – Onde está Deus, como atua Deus? Para a prevenir ou ultrapassar, fixemo-nos em Jesus, no que disse e calou, no que fez ou não fez, nesta semana que só é santa por ser absolutamente sua. Aliás, com a vantagem de sabermos já o que os discípulos da altura souberam depois, naquele dia a seguir ao sábado: Jesus venceu a morte, não porque lhe fugiu, mas porque a encheu de vida, da sua própria vida.
Não nos decepcionaremos nós, se não esperarmos nada a não ser a sua Páscoa e o modo como passou deste mundo para o Pai. Bem por dentro do drama comum duma humanidade frágil e não por qualquer alienação do que ela é de facto. Alienar-se é fugir da realidade e dos seus dramas, exatamente o contrário da encarnação de Deus, que em Cristo nos assume. Até à morte e morte de cruz (cf. Fl 2,8), para que a vida triunfe, aí mesmo onde é preciso. É esta a novidade de Cristo na humanidade que reconstrói. Nada se subtrai ao seu reino, porque a sua presença tudo invade. Como oferta de si e sem conquista dos outros – a não ser como rendição ao seu amor comprovado.
Ninguém esperava que fosse assim - e daí a decepção. Mas nós sabemos que assim é - e daqui a conversão. E no modo de o verificar nestes dias, com tanto que de bom e solidário acontece, no Espírito que Cristo nos doou, para multiplicar a sua ação neste mundo: Na oração mais intensa, que garante que tudo se faz a partir de Deus, para o resultado ser absoluto. No trabalho pastoral, que encontrou outras formas de se exercer - sem a habitual proximidade física, é certo, mas orante, mediática e igualmente concreta, com muita criatividade também. Nas famílias, nas autarquias e no Estado; nos vários setores públicos, particulares e sociais, que nos sustentam o presente e o futuro; na aplicação redobrada dos cientistas e dos profissionais de saúde. Em quem, mesmo sem deslocações, sabe colmatar a solidão alheia. Na preocupação ativa por doentes e isolados, por pobres e sem abrigo, por imigrantes e reclusos. Em quem cuida e protege, em quem vigia e responde. E reconhecendo todo o bem que se faça, seja por quem for, como Jesus reconhecia e louvava (cf. Mc 9,40).
Assim sabemos que Deus está conosco, onde Cristo revive em mil gestos solidários. O sofrimento do mundo é a sua cruz, última etapa para a ressurreição garantida. Todos os que praticam o bem o vão sabendo também e nunca lhes sobrevirá a decepção. Vivamos esta semana como Jesus a preencheu. Com os outros e para todos, mesmo quando ficou só. Experimentaremos assim a verdade pascal.
           
Sé de Lisboa, 5 de abril de 2020


Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor
Compreendeis o que vos fiz?

Caríssimos, celebramos a Missa da Ceia do Senhor. Celebramo-la nas atuais circunstâncias, difíceis decerto, mas por isso mesmo mais necessitadas de Cristo, Sacerdote e Oferta, por nós e para nós. Sempre à luz da fé pascal, que ilumina a nossa existência, garantindo-lhe a vitória da vida – sendo a de Cristo em nós, para a vida do mundo. 
Se nos perguntarem o que evocamos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, responderemos, logo e bem, que se trata da Eucaristia e do Sacerdócio ministerial que a perpetua. Assim nos referimos ao trecho da Carta aos Coríntios, há pouco escutado, primeiro relato escrito da respetiva instituição, que importa muito reter, no que significa e exige. 
Hoje retemos especialmente o “Lava-Pés”, que o Evangelho segundo São João acabou de narrar. Ressalta-nos a pergunta do próprio Cristo, a propósito do que realizara: «Compreendeis o que vos fiz?» Quase dois milénios depois, não reduzimos a premência da pergunta, nem lhe esgotamos a resposta. É a comprovação, também esta, da impossibilidade de ultrapassar as palavras de Cristo, que, humanamente proferidas, mantêm a densidade divina que as prolonga (cf. Mc 13, 31). É por isso que, à pergunta de Cristo, temos de responder sinceramente que sim. Que queremos entender e cumprir mais e melhor o que ali fez - e através de nós quer continuar a fazer, para bem de todos.

Sobre o gesto, fixemos bem aquele tirar e retomar do manto, sinal de dignidade, que, parecendo interrompida, ainda mais se identificou com um serviço que não cessa: Jesus repôs o manto, mas não tirou a toalha que cingira. 
Já aqui a lição é grande e o contraste imenso com qualquer domínio que não se traduza em serviço dos outros. Não faltam, felizmente, bons exemplos de reinar servindo, como os que verificamos no combate à atual pandemia. São os que mais admiramos, reconhecendo o bem que fizeram e fazem. Reinam assim na nossa gratidão, que é o terreno mais sólido para um reino perdurar, como acontece ao de Cristo.
Compreender o gesto de Cristo é alcançar-lhe o significado inteiro, naquele tempo e circunstância. Não admira a estranheza de Pedro, pois era próprio de escravos cingir-se e lavar os pés de quem quer que fosse.
Era na verdade um grande contraste com as atitudes habituais de uns e de outros, senhores ou servos. Noutro Evangelho, o de São Lucas, este “paradoxo evangélico” é especialmente acentuado. Por exemplo, quando Jesus interroga os discípulos sobre o que era espetável num senhor, quando o seu servo chegasse do trabalho: «Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo: “Vem cá depressa e senta-te à mesa”? Não lhe dirá antes: “Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e beberás tu”?» (Lc 17,7-9). A pergunta fica em suspenso, para nos interrogar a nós.
Porém, noutro passo, já é o senhor a cingir-se para servir quem o espera: «Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Em verdade vos digo: Vai cingir-se, mandará que se ponham à mesa e há de servi-los.» (Lc 12,37).
Esta inversão total de posições pede a nossa conversão, total também, ao modo divino de ser e atuar, como em Jesus se apresenta. Não esperou a nossa entrega, para se entregar por nós. Suscita-nos e pede a adequação perfeita à sua maneira de ser e fazer. Como quando inverte toda a ordem de grandeza: «- Quem é o maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, eu estou no meio de vós como aquele que serve.» (Lc 22,27).
Estas passagens, onde os Evangelhos são concordes, reforçam-nos o que aprendemos hoje com o Lava-pés segundo São João. Mas é da coincidência das nossas vidas com a do próprio Cristo que mais havemos de tratar, para podermos responder afirmativamente à pergunta que ressoa, insistente: «- Compreendeis o que vos fiz?»     
        
Assim foi, naquela Ceia onde estamos. Para nos encontrar na pequenez que somos, fez-se mais pequeno ainda. Para o vermos rente ao chão da vida, donde devemos começar a crescer. Sempre com Ele e no seu meio vital, que é a “humildade” de Deus. Em Deus, assim revelado no Lava-pés de Cristo, a humildade não é condescendência ocasional, é sentimento essencial. 
Humildade com que mantém a sua criação agora, como no primeiro momento que ninguém viu nem ouviu. Humildade com que nos recriou em Cristo, do recôndito presépio de Belém à modesta Nazaré da Galileia, ou ao rochedo do Gólgota, apenas um crucificado entre outros – mas já no meio deles, como agora no meio de nós… É o modo divino de ser, humanamente traduzido e oferecido. – Compreendemos já, inteiramente já?
  Assim também na humildade dos seus sacramentos, como pão repartido e cálice elevado. E na humildade sacerdotal, quer do ministro que O representa, quer da comunidade que com Ele se oferece, em comunhão verdadeira. 
- Compreendemos já como o Lava-Pés de Cristo resume uma atitude total, de Deus para nós e de nós para Deus? Respondamos hoje que assim mesmo será, para que todos descubram que o serviço aos outros é o sacrifício que Deus pede. Bem o souberam as primeiras gerações cristãs, face aos mais desamparados do seu tempo. Como na Epístola de São Tiago, sempre tão concreta: «A religião pura e sem mácula diante daquele que é Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo» (Tg 1,27).
Traduzamo-lo nas necessidades de agora, tão inesperadas e acrescidas, para a humanidade próxima e global. Reconheçamos agradecidos a solidariedade de tantas pessoas, dos profissionais de saúde e outros setores fundamentais às autoridades e famílias. O Espírito divino prolonga neles o Lava-Pés de Cristo, reavivando-lhe a imagem e recuperando-lhe a semelhança. Assim acontece igualmente nas comunidades cristãs e nos seus ministros, que, mesmo sem a possibilidade de celebrar presencialmente, o fazem sempre por todos. Agradeçamos a Cristo Sacerdote a sua manifestação em tantos sacerdotes que nestes dias lhe reproduzem o cuidado pastoral, com grande generosidade criativa.
Assim continua o Lava-Pés de Cristo, no sentido absoluto do termo, para compreendermos como Deus é e como atua. Assim a Santa Missa se faz Santa Missão.
   
Sé de Lisboa, 9 de abril de 2020

Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Tudo está consumado!

Caríssimos: Sempre acontece, depois de ouvir a Paixão do Senhor em Sexta-Feira Santa, ser difícil acrescentar alguma coisa, além do silêncio meditativo. Acaba por impor-se algum trecho, como o que vos destaco agora. Tenho sobretudo presente quem mais sofre e quem mais cuida, neste difícil tempo que decorre. Neles continua a Paixão de Cristo e com eles querermos estar em comunhão perfeita.
Ressoa-me sobremaneira este passo: «...sabendo que tudo estava consumado e para que se cumprisse a Escritura, Jesus disse: “Tenho sede”. Estava ali um vaso cheio de vinagre. Prenderam a uma vara uma esponja embebida em vinagre e levaram-lha à boca. Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: “Tudo está consumado.” E inclinando a cabeça, expirou.»
Tudo estava consumado, naquele momento final e finalizado. Mas ouvimo-lo agora para connosco acontecer também. Aquilo a que chamamos geralmente “vida cristã” deve ser, mais propriamente, “vida de Cristo em nós”. Lembrá-lo junto à Cruz do Senhor é o que mais importa nesta celebração. - Como não aceitar o realismo de São Paulo, em frases como esta, que decerto sabemos de cor: «Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 3,19-20)?! 
Toda a vida terrena de Cristo é orientada para este fim, que é entregar-se por nós, para nos levar aonde nunca chegaríamos sozinhos, tal a distância que entrepusemos com Deus. Falo de nós, como humanidade ferida e insarável por si só, como a história geral e particular tragicamente demonstra. As boas aspirações permanecem, mas as deceções também. É preciso mais do que boas intenções para encher o Céu…
Jesus foi realmente um de nós, para nos ensinar a ser inteiramente de Deus, como ele próprio é inteiramente do Pai. Não foi preciso muito tempo e muito estudo para que as primeiras gerações cristãs o soubessem. Como ouvimos há pouco na Epístola aos Hebreus: «Ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado […]. Apesar de ser Filho [de Deus], aprendeu a obediência no sofrimento. E, tendo atingido a sua plenitude, tornou-se, para os que lhe obedecem, causa de salvação eterna.» 
Em tudo igual a nós, menos no que nos separa de Deus. O que isto doí, a separação, contou-o numa parábola em que se fala da prodigalidade dum filho e da misericórdia do pai (cf. Lc 15,11-32). Parábola que devemos guardar na memória convertida. 
Doeu-se aquele filho, quando esbanjou tudo o que o pai lhe dera e ficou em miséria extrema. E condoeu-se sobretudo aquele pai, que sempre esperou o regresso do filho e o recebeu com espantosa alegria. Bem ao contrário do irmão mais velho da parábola, Jesus irmanou-se conosco e tornou-se ele próprio o caminho do regresso. Bem sabia ser essa a maior alegria do Céu, por um só pecador que se converta (cf. Lc 15,7).

Jesus fez-se caminho e o caminho consumou-se na Cruz. Não por gosto próprio ou do Pai, mas porque nela nos colocamos nós e aí mesmo teve de nos recuperar a todos. Nas mil e uma cruzes deste mundo, encontramo-lo nas mãos de Deus Pai, que nele nos recebem. 
Tem sede da nossa sede, para nos saciar com a água viva do seu Espírito, como disse à Samaritana: «Quem beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede». E é essa a obra que consuma, levando-nos ao Pai pelo estreito caminho da Cruz, como a seguir disse aos discípulos: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 14.34).
Compreendamos, irmãos, que a Cruz era inevitável, porque inevitáveis somos nós, tão contraditórios e frágeis. Eleva-se do rochedo do Gólgota, maneira de indicar o chão deste mundo que é o nosso agora. Jesus não nos encontra nem aliena em qualquer zona etérea de imaginação ou desejo. Busca-nos no chão concreto onde vivemos realmente – e por vezes duramente, como tantos experimentam. 
É neste chão, nesta rocha, que se levanta a Cruz. Era um instrumento de tortura horrível, de que o olhar fugia. O condenado tinha os pulsos amarrados – e no caso de Jesus pregados – numa trave dura. Mas os seus braços alargaram-se até onde a vida humana se distende. Em todo o espaço e tempo, como o nosso agora, onde a sua Cruz se eleva. Tudo nela cabe: dores e esperanças, caminhos e descaminhos. Também o sofrimento que a pandemia trouxe e a grande coragem de quem a combate. 
A Cruz eleva-se sempre, na transcendência divina. Contemplamo-la hoje, seguindo o olhar de Jesus, que visa sempre o Pai, passando por nós todos. Acontece agora, quando entre tantos trabalhos e canseiras, entre tantos planos e percalços, a lembrança da Cruz nos reanima e alenta. Acontece agora, acontece sempre. 
Só isto “explica” porque é que um sinal de morte – e morte tremenda – acabou por se impor. Impôs-se por si só e contra toda a expetativa humana, percorrendo os séculos e esperando-nos no futuro. A Cruz tornou-se o coração do mundo e por ela entramos na Casa do Pai, no Coração de Deus. Só Cristo o podia fazer, porque «de Deus saíra e para Deus voltava» (Jo 13,3). Na Cruz leva-nos consigo e de onde estivermos.
«E inclinando a cabeça expirou.» Exalou-nos o Espírito, para que o último instante da sua vida terrena fosse o primeiro da nossa vida divina. 
A verdade do que ouvimos e contemplamos requer sempre, requer hoje, a nossa presença junto da Cruz que se ergue neste mundo, assolado por tão grave pandemia. Presença orante e solidária. Orante, pois com Cristo olhamos o Pai; solidária, pois com Cristo olhamos a todos. Fixemo-nos no Crucificado, que em cada um nos alcança.


Sé Lisboa, 10 de abril de 2020

Homilia na Vigília Pascal na Noite Santa
Sinais de vida ressuscitada

Caríssimos irmãos: De tudo quanto ouvimos e tanto nos iluminou nesta noite santa, ressoam-nos fortes as palavras do Anjo, ditas a Maria Madalena e à outra Maria: «Ide depressa dizer aos discípulos: “Ele ressuscitou dos mortos e vai adiante de vós para a Galileia. Lá O vereis!”».

Na Galileia tinha começado a aventura evangélica e de lá recomeçaria, para chegar a qualquer parte e qualquer tempo. A este lugar agora, onde a celebramos também, como em tantos por esse mundo fora. Com tão pouca presença física, mas tão luminosos ainda assim. E a este tempo preciso, em que a pandemia se sofre, mas o Ressuscitado atua, como sempre o faz por muitos que O refletem.
Não duvidemos, porque dois milénios o testemunham. Em tempos de fome, peste e guerra, como tantas vezes aconteceram e tragicamente se repetem, mais longe ou mais perto, a ressurreição de Cristo redobra os sinais da sua presença salvadora. Apenas espera que a acolhamos consequentes.
Consequentes foram aquelas santas mulheres, que transmitiram fielmente o seu anúncio. E concluamos que, sem a notícia pascal, ecoada por tantas presenças generosas, por tantos motivos e figuras, a sociedade e a cultura não contariam com a esperança que ela trouxe e a tantos acalenta nesta hora. 
A ressurreição de Cristo trouxe-lhe a vitória sobre qualquer morte que seja. Não por a eliminar como passagem, mas por nos garantir um futuro absoluto, só em Deus atingível. Salvação definitiva, que já se assinala nas curas deste mundo, do corpo ou do espírito. Assim as reanimações evangélicas, do filho da viúva de Naim, da filha de Jairo ou de Lázaro de Betânia, que já eram sinais da ressurreição de Cristo, que agora celebramos.      
Na lembrança daquele sepulcro vazio, quanta esperança se acendeu, quanta vida se ofereceu, quanta certeza se firmou de que, contra grandes males, só vale todo o bem; quanto ânimo acresceu para recomeçar sempre e apesar de tudo… De há dois milénios para cá a humanidade revive de muita herança pascal.
Sim, o Ressuscitado espera-nos na Galileia do mundo, para a nós e conosco manifestar a sua Páscoa. Onde for mais urgente, para reabrir o futuro.
  
- Como pode e deve ser? A resposta é absolutamente pessoal, no sentido pleno que a palavra “pessoa” contém, qual relação mútua e perfeita. Aprendemos que a lição que Deus nos dá de si mesmo se aprende na vida de Jesus, sendo um só com o Pai, na união do Espírito. Esta mesma comunhão é que nos leva à eternidade feliz, como humanidade à maneira da Trindade, quando a vida circular inteiramente entre todos. Esta vida vence a morte, que é o isolamento absoluto, ou o egoísmo sem fim.
É fundamental este ponto. Tira-nos qualquer ilusão de chegarmos a Deus por mera especulação, pois ainda seríamos nós, apenas nós, o que alcançássemos. Concluiríamos pela razoabilidade da sua existência, mas não abrangeríamos o seu modo de ser, em si mesmo e para conosco. Lembremos o prólogo do Quarto Evangelho, com a sua frase ineludível: «A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigênito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem O deu a conhecer» (Jo 1,18). 
Pois bem, em toda a vida de Jesus é uma relação total que se revela. A que mantém com Deus Pai, em mútua convivência num só Espírito; e na relação que mantém com cada um, na plena comunhão que nos oferece. É um permanente “Segue-me!”, como ele próprio ao Pai. Deus mostra-se na vida de Jesus, como vida inteiramente partilhada. E assim mesmo vencendo a morte, porque «o amor jamais passará» (1Cor 13,8). 
Tão intensamente relacional é tudo isto que só de modo interpessoal o podemos abarcar e transmitir. Consolida divinamente a experiência humana, como Jesus resumiu num versículo de oiro, felizmente recolhido nos Atos dos Apóstolos: «A felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20,35).
Anunciar a Páscoa na Galileia do mundo é conviver assim, como a ressurreição de Cristo nos impele, da família de cada um à sociedade de todos. Nenhum sepulcro encerrará tal convivência perfeita.
Em muitas ações e lugares, em tempo de luta pela saúde e pelo futuro de tanta gente, são muitos os testemunhos de felicidade já pascal, nas entreajudas que se dão, nas curas que se fazem ou procuram, nas vizinhanças que se concretizam. 
Assim mesmo – e só assim – podemos nós alcançar alguma “experiência de Deus”, garantida e eterna. Como exortam estes versículos da Primeira Epístola de São João: «Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1Jo 4,7-8).
Foi esta certeza, ganha em Cristo, cuja morte foi vencida em plena entrega, que transformou aquelas santas mulheres e os discípulos num anúncio pessoal tão convincente. Anúncio capaz de vencer as oposições que não faltaram. Ontem como depois e ainda agora. Mas vence e convence pelo amor que o preencheu.
Movidos pelo Espírito de Cristo, foram sinais vivos e ativos da ressurreição de Cristo onde chegaram. Não menos havemos de ser nós agora, iluminados pela Luz batismal que recebemos.
Lembrou-o São Paulo, no trecho que ouvimos: «Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova.» Vida nova, que é plena comunhão com Deus e com todos a partir de Deus. Ressurreição, em suma, como foi em Cristo.
A Páscoa é uma iluminação total e pede-nos um exercício permanente. Não ofusquemos a luz recebida, não demoremos o anúncio vivo e convivente. - Espera-nos bem perto a Galileia deste mundo, tão ansiosa de ressurreição também!

Sé de Lisboa, 11 de abril de 2020


Homilia do Domingo de Páscoa
Vemos e acreditamos

Chamados por Maria Madalena, dois discípulos correram ao sepulcro e encontraram-no vazio. De um deles, o discípulo predileto, disse o Evangelho que «viu e acreditou». 
Não viu o cadáver que era de esperar, mas entreviu o que inesperadamente acontecera. Restos mortais transformados numa infinita vida. Nenhum espaço, nenhum tempo a podia já conter e limitar. 
Por isso aqui estamos hoje, nesta catedral tão vazia de presenças físicas e tão repleta de Cristo, vencedor da morte. Nenhuma passagem bíblica escutada, nenhum trecho do Evangelho deste dia, se ficam por um eco do passado. Daquele sepulcro vazio jorrou uma vida inextinguível.
Os inúmeros vazios deste mundo – estes mesmos do tempo que vivemos – são preenchidos pelo Ressuscitado, aqui e em qualquer lugar que seja. E nós, como o discípulo predileto, aí mesmo lhe entrevemos a presença. 
O círio que acendemos na Vigília brilhou na noite escura que o cercava. Modo de dizer que a fé, um dom divino, nos abriu os olhos para Cristo, em múltiplos sinais da sua luz. Sinais em que o anúncio pascal resplende agora, espelhado nos olhos de quem crê. Uma grande poetisa já o disse, neste belo verso tão certeiro: «Só o olhar daqueles que escolheste nos dá o teu sinal entre os fantasmas» (Sophia). 
Refulgiu certamente nos olhos madrugadores da Madalena. Refulgiu nos do discípulo que «viu e acreditou». Depois nos olhos dos que O viram entre eles, sem precisar que lhe abrissem a porta donde estavam. E nos olhos de incontáveis testemunhas, refletindo a Páscoa que já vivem. 

A ressurreição de Cristo tudo garante e impele e a própria humanidade o reconhece, porque a notícia pascal lhe alargou o horizonte. Sim, atinge muito mais e bem mais longe, do que o ciclo anual da natureza, em que a Primavera sucede à invernia, em mera repetição do quase igual. Beleza tem alguma, mas não chega, porque o coração humano pede mais. Pede aquilo que a ressurreição de Cristo já lhe deu, como definitivo acesso a outro além. Precisamente àquele sol que não declina, ao perfeito Domingo sem ocaso.
Preenchendo a humanidade que salvou, o Ressuscitado refulge nestes dias no olhar e nos gestos de muitíssimos que em todos os domínios da vida eclesial ou pública, da saúde ao trabalho e a tantos serviços indispensáveis, protegem vidas no seu arco natural e face à pandemia que sofremos.
Quando os ministros do culto hoje celebram, quase tão sós como naquele sepulcro esvaziado, é sempre a Ressurreição que se assinala, porque isso mesmo são os sacramentos, para a vida do mundo. Quando a oração redobra nas famílias, é também de Ressurreição que assim se trata, pois tudo é vida garantida, quando sobe com Cristo para o Pai. 
Quando a solidariedade de facto se demonstra, é Cristo que aí mesmo se depara. Assim prometeu e assim cumpre. Referindo-se aos que não desamparam os peregrinos (também os emigrantes de hoje em dia), os que não tenham agasalho, saúde ou liberdade, declarou: «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes». A Páscoa de Cristo é uma realidade total e englobante e experimenta-se na caridade praticada.

Os sinos que nesta manhã ressoam cantam todo o bem que hoje é feito, sinal de ressurreição em Jesus Cristo. Desejar Santa Páscoa é impelir ao anúncio e à missão, porque a Páscoa acontece no que faz, e os primeiros que o souberam não pararam. 
O sepulcro esvaziou-se, porque a vida que encerrava lhe irrompeu. Não como vírus nocivo, mas como amor que vence todo o mal. Assim foi então e continua, no vazio agora preenchido por tudo o que se faça em bom apoio. Vencendo solidões, prevenindo e curando a pandemia, mantendo a instrução e o trabalho e em tudo o mais que urgente for.
- É um enorme compromisso celebrar a Páscoa, no tempo a recriar por todos nós! 
A verdade é esta e está patente, como aquela grande pedra destapada, porque a vida não coube no sepulcro. Saibamos entrevê-la e anunciá-la, como o discípulo que «viu e acreditou». Ainda ficaremos mais convictos, mais seguros e solidários de certeza, em Páscoa realmente partilhada.


Sé de Lisboa, 12 de abril de 2020


+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Fonte: Patriarcado de Lisboa

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