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terça-feira, 14 de abril de 2020

Homilia do Padre Raniero Cantalamessa: Celebração da Paixão

Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
10 de abril de 2020

“Eu tenho um desígnio de paz, não de sofrimento”

São Gregório Magno dizia que a Escritura cum legentibus crescit, cresce com aqueles que a leem [1]. Exprime significados sempre novos segundo as perguntas que o homem traz no coração ao lê-la. E nós, neste ano, lemos a narrativa da Paixão com uma pergunta - melhor, com um grito - no coração que se levanta de toda a terra. Devemos procurar colher a resposta que a palavra de Deus lhe dá.
O que acabamos de escutar é a narrativa do mal objetivamente maior jamais cometido na terra. Nós podemos olhar para ele de dois ângulos diversos: ou pela frente, ou por trás, isto é, ou pelas suas causas, ou pelos seus efeitos. Se nos detemos nas causas históricas da morte de Cristo, nós nos confundimos e cada um será tentado em dizer como Pilatos: “Eu não sou responsável pelo sangue deste homem” (Mt 27,24). A cruz é melhor compreendida pelos seus efeitos do que pelas suas causas. E quais foram os efeitos da morte de Cristo? Justificados pela fé nele, reconciliados e em paz com Deus, replenos de esperança de uma vida eterna! (cf. Rm 5,1-5)
Mas há um efeito que a situação em ato nos ajuda a colher em particular. A cruz de Cristo mudou o sentido da dor e do sofrimento humano. De todo sofrimento, físico e moral. Ela não é mais um castigo, uma maldição. Foi redimida pela raiz, quando o Filho de Deus a tomou sobre si. Qual é a prova mais segura de que a bebida que alguém lhe oferece não está envenenada? É se ele bebe em sua frente do mesmo copo. Assim Deus fez: na cruz bebeu, ao lado do mundo, do cálice da dor até a borra. Mostrou assim que ele não está envenenado, mas que há uma pérola em seu fundo.
E não só a dor de quem tem a fé, mas toda dor humana. Ele morreu por todos. “Quando for elevado da terra – dissera –, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Todos, não somente alguns! “Sofrer – escrevia São João Paulo II do seu leito no hospital após o atentado – significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade” [2]. Graças à cruz de Cristo, o sofrimento se tornou também ele, à sua maneira, uma espécie de “sacramento universal de salvação” para o gênero humano.

Qual é a luz que tudo isso lança sobre a situação dramática que a humanidade está vivendo? Também aqui, mais do que para as causas, devemos olhar para os efeitos. Não apenas os negativos, dos quais ouvimos todo dia as tristes manchetes, mas também os positivos, que somente uma observação mais atenta nos ajudar a colher.
A pandemia de corona vírus nos despertou bruscamente do perigo maior que sempre correram os indivíduos e a humanidade, o do delírio de onipotência. Temos a ocasião – escreveu um conhecido Rabino judeu – de celebrar este ano um especial êxodo pascal, o “do exílio da consciência” [3]. Bastou o menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para nos recordar que somos mortais, que o poderio militar e a tecnologia não bastam para nos salvar. “Não dura muito o homem rico e poderoso: – diz um salmo da Bíblia – é semelhante ao gado gordo que se abate” (Sl 49,21). E é verdade!
Enquanto pintava os afrescos da catedral de São Paulo em Londres, o pintor James Thornhill, a um certo ponto, foi tomado por tanto entusiasmo por um afresco seu que, afastando-se para vê-lo melhor, não percebia que quase despencava no vão do andaime. Um assistente, horrorizado, entendeu que um grito de chamada teria apenas acelerado o desastre. Sem pensar duas vezes, molhou um pincel na tinta e o arremessou contra o afresco. O mestre, pasmo, deu um passo adiante. A sua obra estava comprometida, mas ele estava salvo.
Assim Deus às vezes faz conosco: confunde os nossos projetos e a nossa tranquilidade, para nos salvar do abismo que não vemos. Mas cuidado para não nos enganarmos. Não foi Deus que arremessou o pincel contra o afresco de nossa orgulhosa civilização tecnológica. Deus é nosso aliado, não do vírus! “Eu tenho um desígnio de paz, não de sofrimento”, ele mesmo nos diz na Bíblia (Jr 29,11). Se esses flagelos fossem castigos de Deus, não seria explicado por que eles caem igualmente nos bons e nos maus, e por que geralmente são os pobres que têm as maiores consequências. Eles seriam mais pecadores que outros?
Aquele que chorou um dia pela morte de Lázaro chora hoje pelo flagelo que caiu sobre a humanidade. Sim, Deus “sofre”, como todo pai e toda mãe. Quando descobrirmos um dia isso, teremos vergonha de todas as acusações que fizemos contra ele na vida. Deus participa da nossa dor para superá-la. “Deus – escreve Santo Agostinho –, por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar do mal o bem” [4] .
Será que Deus Pai quis a morte do seu Filho, a fim de daí tirar o bem? Não, simplesmente permitiu que a liberdade humana fizesse o seu percurso, contudo, fazendo-a servir ao seu plano, não ao dos homens. Isto vale também para os males naturais, como terremotos e pestilências. Não os provoca. Ele deu também à natureza uma espécie de liberdade, claro, qualitativamente diversa daquela moral do homem, mas ainda assim, sempre uma forma de liberdade. Liberdade de evoluir-se segundo suas leis de desenvolvimento. Não criou o mundo como um relógio pré-programado em cada mínimo movimento. É o que alguns chamam de acaso, e que a Bíblia chama, ao contrário, de “sabedoria de Deus”.

O outro fruto positivo da presente crise de saúde é o sentimento de solidariedade. Quando foi, desde que há memória, que os homens de todas as nações se sentiram tão unidos, tão iguais, tão pouco contenciosos, como neste momento de dor? Jamais como agora temos sentido a verdade de um nosso grande poeta: “Homens, paz! Sobre a terra firme grande é mistério”.[5] Esquecemo-nos dos muros por construir. O vírus não conhece fronteiras. Em um segundo, abateu todas as barreiras e as distinções: de raça, de religião, de censo, de poder. Não devemos voltar atrás quando este momento tiver passado. Como tem nos exortado o Santo Padre, não devemos desperdiçar esta ocasião. Não deixemos que tanta dor, tantas mortes, tanto esforço heroico por parte dos profissionais de saúde tenha sido em vão. É esta a “recessão” que mais devemos temer.
Transformarão suas espadas em arados
e suas lanças em foices:
não pegarão em armas uns contra os outros
e não mais travarão combate (Is 2,4).
É o momento de tornar real algo desta profecia de Isaías, da qual a humanidade desde sempre aguarda o cumprimento. Demos um basta à trágica corrida às armas. Vocês gritam com todas as suas forças, jovens, porque é acima de tudo o seu destino que está em jogo. Destinemos os intermináveis recursos empregados às armas a finalidades de que, nestas situações, vemos a necessidade e a urgência: a saúde, o saneamento, a alimentação, o cuidado da criação. Deixemos à geração que virá, se necessário, um mundo mais pobre de coisas e dinheiro, porém mais rico de humanidade.

A Palavra de Deus nos diz qual é a primeira coisa que devemos fazer em momentos como estes: gritar a Deus. É ele mesmo quem põe nos lábios dos homens as palavras para se gritar a ele, às vezes, até palavras duras, de lamento, e quase de acusação. “Levantai-vos, vinde logo em nosso auxílio, libertai-nos pela vossa compaixão! [...] Despertai! Não nos deixeis eternamente!” (Sl 44,24.27). “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?” (Mc 4,38).
Será que Deus ama ser implorado para conceder os seus benefícios? Será que a nossa oração pode fazer Deus mudar seus planos? Não, mas há coisas que Deus decidiu conceder-nos como fruto, junto com sua graça e a nossa oração, quase como para compartilhar com as suas criaturas o mérito do benefício recebido [6]. É ele quem nos impulsiona a fazê-lo: “Pedi e vos será dado, disse Jesus, batei e a porta vos será aberta” (Mt 7,7).
Quando, no deserto, os hebreus eram mordidos por serpentes venenosas, Deus ordenou a Moisés para levantar sobre uma haste uma serpente de bronze, e quem a olhava não morria. Jesus se apropriou deste símbolo. “Como Moisés levantou a serpente no deserto – disse a Nicodemos –, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,14-15). Também nós, neste momento, somos mordidos por uma invisível “serpente” venenosa. Olhemos para aquele que foi “levantado” por nós sobre a cruz. Adoremo-lo por nós e por todo o gênero humano. Quem olhar para ele com fé e amor não morrerá. E se morrer, será para entrar na vida eterna.
“Depois de três dias eu ressuscitarei”, Jesus predisse (cf. Mt 9,31). Nós também, depois desses dias que esperamos que sejam curtos, ressuscitemos e saímos dos túmulos de nossas casas. Não para voltar à vida anterior como Lázaro, mas para uma nova vida, como Jesus. Uma vida mais fraterna, mais humana. Mais cristã!


[1] Moralia in Iob, XX,1.
[2] Salvifici doloris, n. 23.
[3] https://blogs.timesofisrael.com/coronavirus-a-spiritual-message-from-brooklyn (Yaakov Yitzhak Biderman).
[4] Enchiridion, 11,3 (PL 40, 236).
[5] G. Pascoli, “I due fanciulli” (Os dois filhos).
[6] Cf. S. Tomás de Aquino, S.Th. II-IIae, q. 83, a.2.

Fonte: Vatican News

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