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terça-feira, 6 de agosto de 2019

Paulo VI e a Liturgia: Alguns aspectos peculiares

Neste dia 06 de agosto recordamos pela primeira vez a morte do Papa Paulo VI (06 de agosto de 1978) desde sua canonização, ocorrida em 14 de outubro passado. Sua memória litúrgica, porém, celebra-se no dia 29 de maio, data de sua ordenação presbiteral.

Para marcar esta data, publicamos aqui nossa tradução de um artigo do Padre Corrado Maggioni, Sub-Secretário da Congregação para o Culto Divino, intitulado "Paolo VI e la Liturgia: Alcuni aspetti peculiari". Este artigo foi publicado no jornal L’Osservatore Romano do último dia 23 de julho e compartilhado pelo Padre Matias Augé em seu blog "Munus: Liturgia e dintorni" no dia seguinte.

O texto evidencia quatro aspectos da teologia litúrgica de São Paulo VI: o uso da língua vernácula, a participação do Povo de Deus, as celebrações papais e o culto mariano.

Paulo VI e a Liturgia: Alguns aspectos peculiares·
Pe. Corrado Maggioni

O ensinamento de Paulo VI em matéria litúrgica se pode resumir dizendo que ele desejou, guiou, explicou, defendeu e promoveu a reforma litúrgica, a fim de reformar a Igreja, já que é através da ação litúrgica que a Igreja experimenta o encontro transfigurante com Cristo, por Cristo e em Cristo. Sem a pretensão de abarcar todos os aspectos, recordamos alguns mais significativos.

A língua corrente como “voz da Igreja” em oração
Nos anos preparatórios ao Concílio foram interrogados todos os Bispos do mundo acerca do uso da língua vulgar na Liturgia. Existiam já algumas limitadas concessões da Sé Apostólica acerca do uso da língua vulgar no Ritual Romano. As claras decisões dos Padres do Vaticano II a este respeito foram progressivamente implementadas e ampliadas. Paulo VI era bem consciente da gravidade da mudança da língua, mas ao mesmo tempo via com lucidez que era necessária em virtude da participação do povo na Liturgia. Eis algumas passagens do seu ensinamento a este respeito.
Assim Paulo VI se exprimia no histórico Ângelus de 07 de março de 1965, I Domingo da Quaresma: «Este domingo assinala uma data memorável na história espiritual da Igreja, porque a língua falada entre oficialmente no culto litúrgico, como haveis visto já esta manhã».
«A Igreja considerou esta disposição necessária – o Concílio a sugeriu e deliberou – e isto para tornar inteligível e fazer compreender a sua oração. O bem do povo exige este cuidado, de modo a tornar possível a participação ativa dos fiéis no culto público da Igreja. É um sacrifício que a Igreja fez da sua própria língua, o latim; língua sacra, grave, bela, extremamente expressiva e elegante. Sacrificou tradições de séculos e sobretudo sacrifica a unidade da linguagem nos vários povos em honra a esta maior universalidade, para chegar a todos. E isto por vós, fiéis, para saibais melhor unir-vos à oração da Igreja, para que saibais passar de um estado de simples espectadores àquele de fiéis participantes e ativos e se souberdes verdadeiramente corresponder a este cuidado da Igreja, tereis a grande alegria, o mérito e a fortuna de uma verdadeira renovação espiritual» (Insegnamenti di Paolo VI, III [1965], 1131).
O valor da oração em língua corrente, chamada a exprimir a «voz da Igreja» orante, foi recordado por Paulo VI no discurso ao Congresso de tradutores dos livros litúrgicos, em 10 de novembro de 1965, nestes termos: «Versiones, quae ante promulgatam Constitutionem de Sacra Liturgia hic atque illic editae erant, eo pertinebant, ut fideles ritus lingua Latina celebratos intellegerent; erant videlicet subsidia populi, veteris huius linguae ignari. Nunc autem versiones factae sunt partes ipsorum rituum, factae sunt vox Ecclesiae» (ibid., 599).
A instância da participação na Liturgia pela compreensão da língua como «magnum principium» a ser levado em conta, foi ressoada no discurso de Paulo VI na oitava sessão do Consilium, em 19 de abril de 1967, onde assim respondia a propósito de uma publicação polêmica em defesa do latim: «Essa não edifica ninguém, e não traz portanto nenhuma vantagem à causa que deseja defender, isto é, a conservação da língua latina na Liturgia; questão esta digna certamente de toda atenção, mas não resolvível em sentido contrário ao grande princípio, reafirmado pelo Concílio, da inteligibilidade, a nível do povo, da oração litúrgica, nem daquele outro princípio, hoje reivindicado pela cultura da coletividade, de poder exprimir os próprios sentimentos, mais profundos e mais sinceros, em linguagem viva» (Insegnamenti di Paolo VI, V [1967], 167).
O mesmo pensamento reafirmou Paulo VI na Audiência Geral de 26 de novembro de 1969, há apenas alguns dias do início, a 30 de novembro, I Domingo do Advento, da adoção obrigatória na Liturgia do novo rito da Missa nas dioceses italianas: «Não mais o latim será a linguagem principal da Missa, mas a língua falada. Para quem conhece a beleza, a força, a sacralidade expressiva do latim, certamente sua substituição pela língua vulgar é um grande sacrifício: perdemos o modo de falar dos séculos cristãos, tornamo-nos quase intrusos e profanos no recinto literário da expressão sagrada, e assim perderemos grande parte daquele estupendo e incomparável patrimônio artístico e espiritual que é o canto gregoriano. Temos, sim, razão para lamentarmos, e quase para perdermo-nos: que coisa substituirá esta língua angélica? É um sacrifício de inestimável preço. E por qual razão? Que coisa vale mais que este altíssimo valor da nossa Igreja? A resposta parece banal e prosaica, mas é válida, porque é humana, porque é apostólica. Vale mais a compreensão da oração do que as vestes sedosas e antigas de que ela se vestiu regiamente; vale mais a participação do povo, deste povo moderno cheio de palavras claras, inteligíveis, traduzíveis na sua conversação profana. Se o divino latim nos mantivesse segregados da infância, da juventude, do mundo do trabalho e dos negócios, se fosse um diafragma opaco, em vez de um cristal transparente, nós, pescadores de almas, faríamos bom cálculo em conservá-lo no domínio exclusivo da conversação orante e religiosa? O que dizia São Paulo? Leia-se o capítulo 14 da Primeira Carta aos Coríntios: “Na assembleia prefiro dizer cinco palavras segundo a minha inteligência para instruir também os outros, do que dez mil em virtude do dom das línguas” (1Cor 14,19) » (Insegnamenti di Paolo VI, VII [1969], 1128-1129).


A participação do Povo de Deus
Desde o discurso de promulgação da Sacrosanctum Concilium (SC) em 04 de dezembro de 1963, Paulo VI quis enfatizar o nexo entre Liturgia e Igreja, com implicações também sobre a missão que essa é chamada a desempenhar no mundo hodierno, eco em certo sentido da célebre afirmação de SC 10 que a Liturgia é «fonte e ápice da vida da Igreja»: «A Liturgia (...) primeiro dom que nós podemos oferecer ao povo cristão, que conosco crê e ora, e primeiro convite ao mundo, para que solte em oração feliz e autêntica a sua língua muda e sinta a inefável força regeneradora de cantar conosco os louvores divinos e as esperanças humanas, por Cristo no Espírito Santo. Será bom que recolhamos como tesouro este fruto do nosso Concílio, como aquilo que deve animar e caracterizar a vida da Igreja». 
Em outros termos, é posto em destaque o princípio que recita: «A Liturgia faz a Igreja e a Igreja faz a Liturgia». O primado da Liturgia é por isso vital para a Igreja; não é, de fato, clerical a Liturgia, uma vez que diz respeito e envolve todo o povo de Deus, como recordava Paulo VI na Audiência Geral de 20 de julho de 1966: «É conhecido por todos vós como a primeira afirmação, a primeira reforma, a primeira renovação que o Concílio Ecumênico deu à Igreja teve como objeto a Liturgia, isto é, a oração oficial da Igreja mesma. Lembremo-nos bem! » (Insegnamenti di Paolo VI, IV [1966], 817).
Sob esta ótica, Paulo VI tinha bem presente e pedia para se ter presente «o propósito fundamental da Constituição Conciliar sobre a Liturgia, que é aquele de restituir ao Povo de Deus a participação ativa na celebração cultual» (Audiência Geral de 04 de janeiro de 1967: Insegnamenti di Paolo VI, V [1967], 6.) E assim explicava na Audiência Geral de 06 de abril de 1966: «Participação: eis uma das mais repetidas e das mais competentes afirmações do Concílio Ecumênico a respeito do culto divino, da Liturgia; tanto que esta afirmação pode ser considerada um dos princípios característicos da doutrina e da reforma conciliar. (...) O pensamento da Igreja é claro: o povo cristão não deve simplesmente e passivamente assistir às cerimônias do culto divino; deve compreender o seu sentido e deve ser associado de modo que a celebração seja plena, ativa e comunitária (cf. SC n. 21)» (Insegnamenti di Paolo VI, IV [1966], 739-740).
Advertindo contra uma ideia imprópria de participação vista como ativismo, sem envolvimento interior que se manifesta depois de modo exterior, Paulo VI explicava o significado da reforma, apenas iniciada, na Audiência Geral de 14 de setembro de 1966: «Gostaríamos que cada um de vós acolhesse o convite feito pela Igreja aos seus filhos com a reforma da Liturgia; reforma que sobretudo consiste em fazer “participar” os fiéis na celebração do culto divino e da oração eclesial. Em que ponto se encontra a vossa participação? É preciso, sobre este ponto, alcançar a unanimidade, o quanto possível! Ai dos ausentes, ai dos indiferentes, ai dos tépidos, dos indiferentes, dos retardatários! A vitalidade da Igreja depende, sob este aspecto, da prontidão, da inteligência, do fervor de cada cristão, seja ministro ou simples fiel» (Insegnamenti di Paolo VI, IV [1966], 849).
Sendo inclusiva de todo o povo de Deus, a Liturgia cuida também daqueles que, por distração ou ignorância, não têm plena consciência do seu mistério. No discurso aos membros do Consilium em 19 de abril de 1967, Paulo VI convidava «a delinear aquele rosto da sagrada Liturgia que nos mostre a verdade, a beleza, a espiritualidade, e que deixe sempre melhor transparecer o Mistério Pascal nela vivente, para a glória de Deus e para a regeneração espiritual das multidões distraídas, mas sedentas, do mundo contemporâneo» (Insegnamenti di Paolo VI, V [1967], 168-169). 
Na vigília das primeiras mudanças no modo de celebrar a Missa, na Audiência de 19 de novembro de 1969, chamava a atenção sobre o fato de que os fiéis «na Missa são e se sentem plenamente “Igreja”; (…) sabei apreciar como a Igreja, mediante esta nova e difundida linguagem, deseja dar maior eficácia à sua mensagem litúrgica, e deseja de maneira mais direta e pastoral aproximar-se a cada um dos seus filhos e a todo o Povo de Deus» (Insegnamenti di Paolo VI, VII [1969], 1123-1124). 

As celebrações papais
Habituados por mais de cinquenta anos a ver o Papa presidir a Liturgia, tanto em São Pedro como nos mais diversos lugares do mundo, não sabemos hoje colher o impacto inovador desta práxis, tornada habitual com Paulo VI. No costume precedente eram muito raras as liturgias em São Pedro; na noite de Natal o Papa celebrava na Capela Sistina apenas para o corpo diplomático. Pio XII nunca presidiu os ritos da Semana Santa. Começou a fazê-lo João XXIII, que retomando as visitas às paróquias romanas na Quaresma ali celebrava a Missa. Foi, portanto, Paulo VI a dar relevância às liturgias papais: a noite de Natal em São Pedro, as celebrações pascais, do Domingo de Ramos ao Tríduo Sacro, com a Vigília em hora noturna. Desejou também presidir pessoalmente a celebração de alguns sacramentos, especialmente no Ano Santo de 1975.
Nos anos imediatamente sucessivos ao Vaticano II (1965-1969), à luz do princípio conciliar segundo o qual os ritos devem resplandecer de «nobre simplicidade» (SC, n. 34) e a arte a serviço da Liturgia (vestes e ornamentos) «antes por uma nobre beleza que por mera suntuosidade» (SC, n. 124), as celebrações pontifícias, em particular da Capela Papal, foram transformadas de cerimônias derivadas da corte renascentista em celebrações da assembleia litúrgica do Povo de Deus, presididas pelo Bispo de Roma. O Papa vestia e celebrava como os livros litúrgicos prescreviam para o Bispo. Se era normal que até então ninguém comungasse na Missa celebrada pelo Papa, começou Paulo VI a distribuir pessoalmente a Comunhão aos fiéis desde a primeira Missa celebrada em italiano, em 07 de março de 1965.
O Papa dirigia-se ao altar processionalmente, precedido pelos acólitos, pelos diáconos e pelos concelebrantes; endossava as vestes litúrgicas prescritas pela Introdução Geral do Missal Romano, não revestindo mais a “falda”, mas uma túnica sem bordados, a casula elegante pela amplitude e preciosidade do tecido, portando sobre os ombros o pálio e não mais o “fânon”.
Assim observa Annibale Bugnini entre as suas recordações: «A paixão com a qual Paulo VI atuou em primeira pessoa a reforma litúrgica, a fé com a qual a celebrou, foram certamente o mais válido estímulo aos Bispos para serem eles mesmos os primeiros responsáveis da vida litúrgica das suas dioceses, os primeiros celebrantes» (La riforma liturgica [1948-1975], Centro Liturgico Vincenziano, Roma, 1972, p. 789).

O culto mariano
Se houve quem criticou como “antimariana” a reforma “paulina”, se deve reconhecer que a reorganização da memória litúrgica de Maria foi consequente aos princípios conciliares. Era necessária uma leitura lúcida e objetiva da dimensão mariana da Liturgia renovada - Calendário, Missal, Lecionário e Liturgia das Horas - e Paulo VI a proporcionou na Exortação Apostólica Marialis cultus (02 de fevereiro de 1974).
Em um momento histórico difícil, entre tendências opostas, foi como o acendimento de uma lâmpada que ajudou todos a ver melhor o lugar de Maria na piedade litúrgica: os céticos encontraram convincentes indicações para uma fundamentada piedade mariana; os partidários encontraram a síntese de quanto queriam dizer sobre a comunhão orante com a Mãe de Cristo e da Igreja; os tímidos encontraram motivos válidos para uma redescoberta da presença viva de Maria no mistério do culto cristão; os nostálgicos encontraram a explicação de que com a renovação litúrgica não se pretendia tirar nada da Mãe de Deus, mas apenas purificar a fim de que resplandecesse melhor aquilo que devia brilhar; os fanáticos encontraram indicados os limites de uma correta e frutuosa devoção à Virgem Maria; os hostis, por fim, encontraram o necessário convite a estimar, na oração comum e pessoal, a companhia e o exemplo de Maria. Entre os ensinamentos contidos na Exortação Apostólica ressaltam-se três aspectos.
Antes de tudo a consciência da dimensão “mariana” da Liturgia. Herdeiro de uma época na qual a devoção mariana encontrava fôlego sobretudo em “devoções” fora da Liturgia e paralelas a ela, a intenção de Paulo VI foi de valorizar a devoção a Maria expressa antes de tudo nas ações litúrgicas, sem esquecer os piedosos exercícios.
Em segundo lugar o nexo entre lex orandi - lex credendi, em ordem à lex vivendi. A Marialis cultus contribuiu aos desenvolvimentos litúrgico-marianos sucessivos, como a enriquecida segunda edição do Missal Romano italiano (1983) e especialmente a Collectio Missarum de Beata Maria Virgine (1987), como também a Editio tertia del Missale Romanum (2002). Para tomar-se conta basta considerar os acentos temáticos de alguns formulários da Collectio que remetem à Marialis cultus, como por exemplo Maria “discípula do Senhor” (n. 10), “mulher nova” (n. 20), “mestra espiritual” (n. 32). Especialmente eloquente é o prefácio do formulário n. 26 (Virgem Maria, imagem e Mãe da Igreja), intitulado «Maria, modelo do autêntico culto a Deus», cuja fonte direta são os números 17-20 da Marialis cultus. Não escapou a Paulo VI – várias vezes o retoma – que venerar Maria significa viver como ela: «É impossível honrar a “cheia de graça” sem honrar em si mesmo o estado de graça, isto é, a amizade com Deus, a comunhão com Ele, a habitação do Espírito» (Marialis cultus, n. 57).
Por fim, a solicitude pela piedade popular, que sabe encorajar e orientar, acompanhando o crescimento harmônico da vida espiritual. No relevante âmbito da piedade popular, a Marialis cultus teve o grande mérito de ter observado luzes e sombras, indicando a estrada a percorrer para a renovação e a purificação da piedade popular em geral, cujas linhas guias foram depois amadurecidas com o Diretório sobre piedade popular e Liturgia (2002).


Fonte: Munus: Liturgia e dintorni (Blog de Matias Augé) / Tradução nossa.

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