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quarta-feira, 26 de junho de 2019

Homilia do Patriarca de Lisboa: Corpus Christi 2019

Corpo de Deus, do sacramento para a vida

Celebramos o Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo – o “Corpo de Deus”, como dizemos entre nós. E muito bem o dizemos, porque em Cristo o próprio Deus tomou o nosso corpo e lhe deu o significado total do que o corpo é e há de ser.
Neste modo de falar há teologia cristã inteira, como o Espírito esclarece. Importa recolhê-la e detalhá-la um pouco, precisamente neste dia.No Evangelho escutamos que «naquele tempo estava Jesus a falar à multidão sobre o reino de Deus e a curar aqueles que necessitavam». Não é fortuita a sequência, muito pelo contrário, porque anunciar o Reino é cuidar dos outros. E nisto mesmo o Verbo se faz carne e a Palavra divina humanamente se corporiza.
“Corpo” é palavra tão habitual como gasta, desgastada mesmo. Fala-se muito dele como objeto e não como sujeito, mais como figura moldável a gosto do que substância a respeitar só por si. Ouve-se dizer: “Gostava de ter um corpo assim ou doutra forma”, “faço o que quiser do meu corpo” e expressões congêneres.   
Isto de modo corrente. Mas também não faltam referências eruditas, restos de antigas gnoses que depreciavam o corpo como cativeiro da alma, coisa de humilhar ou de fruir sem cuidado de maior.
Disto tudo estamos rodeados, devendo estar prevenidos. A solenidade de hoje fala-nos, isso sim, da unidade espiritual e somática de cada um de nós. E do corpo como expressão e exercício do que somos, essencialmente somos e relacionalmente acontecemos. O corpo é a pessoa em relação, substancial e concreta. Como o próprio Deus se quis relacionar conosco em cada palavra e gesto de Jesus Cristo.

Palavras e gestos que, como ouvimos, são de cuidado e partilha. Cuidado de todos e partilha de si mesmo. Tudo é corporal no Cristo de há pouco: Falava à multidão, curava quem sofria, escutava os discípulos. Boca para falar, mão para curar, ouvido para ouvir. E depois, olhos erguidos ao céu, palavras de bênção e mais gestos de repartir.
E assim no Evangelho todo. Desde que, ainda no ventre materno, já fazia João Batista saltar de júbilo no ventre de Isabel. Desde que no templo, aos doze anos, já se dizia e mantinha em casa de Deus seu Pai. Desde que a seguir, em Nazaré, crescia em sabedoria, estatura e graça (cf. Lc 2,52), da carpintaria de José à sinagoga onde não faltava ao sábado. Desde que aí mesmo se apresentou como Messias, para depois inaugurar o Reino, em tantos gestos e palavras, com quem o procurava ou procurava ele mesmo. Até Jerusalém, até aqui e agora, quando, ressuscitado, nos continua a falar e a tocar, no realismo sacramental de todos os dias. Tudo sonoro e concreto, tudo sensível e corpóreo. Como Corpo de Deus no mundo.
A corporeidade de Cristo revela-nos o que a nossa própria há de ser. Significa relação, traduz e opera tudo quanto somos. Quanto somos a partir de quem nos faz viver e de nós espera o mesmo. Responsáveis pela vida e subsistência dos outros, com gestos realmente pessoais, de convivência, doação e partilha. Gestos concretos e urgentes, como foram os de Cristo, Bom Samaritano de todos quantos estavam na berma da vida, olhando com olhos de ver, cuidando com gestos precisos e interessando-se realmente pelo seu bem total.   
Ouvimos São Paulo, a contar aos coríntios como Jesus tomara o pão e o repartira, assim mesmo se entregando a si próprio, por nós e para nós: «Isto é o meu Corpo, entregue por vós». Como, tomando o cálice, no seu sangue firmara uma nova aliança, de todos com Deus e de Deus com todos, definitiva porque pessoal e inteira.
Só assim podia ser, porque a Deus só chegamos com Deus. Mas como em Cristo, através da humanidade realmente assumida e oferecida. Como lembra o prefácio desta Missa: «O seu Corpo, por nós imolado, é o alimento que nos fortalece; e o seu Sangue, por nós derramado, é bebida que nos purifica». Tudo quanto de nós fez seu é tudo o que de nós e por nós oferece ao Pai, assim mesmo recuperando, garantindo e salvando. 

É este o Corpo de Cristo, nas três acepções que tem. Significa o corpo humano que cresceu no ventre de Maria e por nós se entregou na cruz; significa também o corpo eucarístico em que sacramentalmente o comungamos e adoramos; significa ainda o corpo eclesial que se alarga em quem o comunga, para lhe ecoar as palavras e prolongar os gestos.
Em Cristo estamos para Cristo sermos, de algum modo “corpo de Deus” também, se pudermos dizer como São Paulo; «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Se confirmarmos em nós o que Cristo disse aos primeiros discípulos: «Quem vos ouve, é a mim que ouve» (Lc 10,16).              
Isto mesmo que em Cristo acontece como revelação total do corpo, corresponde afinal ao que a humanidade inteira pressente no impulso em que se oferece. Como aquele Melquisedec foi ao encontro de Abraão para lhe oferecer pão e vinho. Não era daquele povo, mas já ia ao encontro da promessa. Saía e oferecia, manifestava-se realmente como corpo.
Esta tarde sairemos nós e a oferta continuará. Numa cidade onde não faltam “Melquisedeques”, mesmo em quem só ofereça a curiosidade. É um começo. Outros oferecerão mais do que isso, na permuta dos corações. Tudo será “corpo” no olhar, na oração, no canto, no movimento. E “Corpo de Deus”, do sacramento para a vida.

Sé de Lisboa, 20 de junho de 2019

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


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