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quarta-feira, 24 de abril de 2019

Homilia do Padre Raniero Cantalamessa: Celebração da Paixão

Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
19 de abril de 2018

“Desprezado e rejeitado pelos homens”

“Era desprezado, era o refugo da humanidade, homem das dores e habituado à enfermidade; era como pessoa de quem se desvia o rosto, tão desprezível que não fizemos caso dele”.
Estas são as palavras proféticas de Isaías, com as quais começa a Liturgia da Palavra de hoje. A história da Paixão que se seguiu deu um nome e um rosto a este misterioso homem das dores, desprezado e rejeitado pelos homens: o nome e o rosto de Jesus de Nazaré. Hoje queremos contemplar o Crucificado sob este mesmo aspecto: como protótipo e representante de todos os rejeitados, deserdados e os “descartados” da terra, aqueles diante dos quais se vira o rosto para outro lugar para não os ver.
Jesus não começou a sê-lo só agora, na paixão. Durante toda a sua vida ele tem sido um deles. Nasceu em um estábulo porque “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7). Ao apresentá-lo ao templo, os pais ofereceram "duas rolas ou dois pombinhos", a oferta prescrita pela lei para os pobres que não podiam dar-se ao luxo de oferecer um cordeiro (cf. Lv 12,8). Um verdadeiro certificado de pobreza no Israel da época. Durante a sua vida pública, não tinha lugar para descansar a cabeça (Mt 8,20): é um sem-teto.
E chegamos à paixão. No relato, há um momento em que não nos detemos com frequência, mas que é cheio de significado: Jesus no pretório de Pilatos (cf. Mc 15,16-20). Os soldados notaram um arbusto de silvas na praça adjacente; pegaram um feixe e o colocaram em sua cabeça; sobre seus ombros, ainda sangrando da flagelação, colocaram um manto de escárnio sobre ele; suas mãos estão atadas com uma corda áspera; em uma mão colocaram uma cana, símbolo irrisório de sua realeza. É o protótipo das pessoas algemadas, sozinhas, à mercê de soldados e bandidos que descarregam sobre os pobres infelizes a raiva e a crueldade que acumularam na vida. Torturado!
Ecce homo!”, “Eis o homem!”, exclama Pilatos, ao apresentá-lo pouco depois ao povo (Jo 19,5). Palavra que, depois de Cristo, se pode dizer das intermináveis fileiras de homens e mulheres humilhados, reduzidos a objetos, privados de toda dignidade humana. “Se isto é um homem”: o escritor Primo Levi intitulou assim o relato da sua vida no campo de extermínio de Auschwitz. Na cruz, Jesus de Nazaré torna-se o emblema de toda esta humanidade “humilhada e ofendida”. Deveria se exclamar: “Rejeitados, desprezados, párias de toda a terra: o maior homem de toda a história foi um de vocês! Independente do povo, raça ou religião a que pertençais, tendes o direito de reivindica-lo como seu”.

Um escritor e teólogo afro-americano que Martin Luther King considerava seu mestre e inspirador da luta não-violenta pelos direitos civis escreveu um livro intitulado “Jesus and the Disinherited” [1], Jesus e os Deserdados. Neste, ele mostra o que a figura de Jesus havia representado para os escravos do Sul, dos quais ele próprio era um descendente direto. Na privação de todo direito e na mais total abjeção, as palavras do Evangelho que o ministro do culto negro repetia, na única reunião que lhes era permitida, devolvia aos escravos o sentido da sua dignidade de filhos de Deus.
Neste clima, nasceu a maioria dos cantos negro-espirituais que ainda hoje comovem o mundo [2]. No momento do leilão público, estes tinham experimentado o tormento de ver as suas esposas muitas vezes separadas dos seus maridos e os pais dos filhos, vendidos a diferentes proprietários. É fácil ver com que espírito eles cantavam sob o sol ou em suas cabanas: “Nobody knows the trouble I have seen. Nobody knows, but Jesus”: “Ninguém sabe a dor que experimentei; ninguém, senão Jesus”.


Este não é o único significado da paixão e morte de Cristo, nem é o mais importante. O significado mais profundo não é o social, mas o espiritual. Aquela morte redimiu o mundo do pecado, levou o amor de Deus ao ponto mais distante e mais obscuro para o qual a humanidade se havia colocado na sua fuga d'Ele, isto é, na morte. Não é, como eu disse, o significado mais importante da cruz, mas é o que todos, crentes e não crentes, podem reconhecer e aceitar.
Todos, repito, não apenas os crentes. Se, pelo fato da sua encarnação, o Filho de Deus se fez homem e se uniu a toda a humanidade, pelo modo como se realizou a sua encarnação, ele tornou-se um dos pobres e rejeitados, casou-se com a causa deles. Tomou a seu cargo assegurar-nos, quando afirmou solenemente: “O que fizeste aos famintos, aos nus, aos prisioneiros, aos exilados, a mim o fizeste; o que não fizeste a eles, a mim não me fizeste” (cf. Mt 25,31-46).
Mas não podemos parar por aí. Se Jesus tivesse apenas isso a dizer aos desprivilegiados do mundo, seria apenas mais um entre eles, um exemplo de dignidade na desgraça e nada mais. De fato, seria mais uma prova a favor de que Deus permite tudo isso. É conhecida a reação indignada de Ivan, o irmão rebelde dos Irmãos Karamazov de Dostoievski, quando o piedoso irmão mais novo Aliocha nomeia Jesus: “Ah, trata-se do ‘Único sem Pecado’ e do Seu sangue, não é? Não, não me tinha esquecido d'Ele: e fiquei admirado, de fato, enquanto se discutia isso, por que demoraste tanto em sair com Ele, dado que comumente, nas discussões, todos os que estão do teu lado o colocam antes de qualquer outra coisa” [3].
O Evangelho não para por aí; diz também outra coisa, diz que o crucificado ressuscitou! Nele houve uma inversão total das partes: o conquistado tornou-se o vencedor, o julgado tornou-se o juiz, “a pedra descartada pelos construtores tornou-se a pedra angular” (cf. At 4,11). A última palavra não foi, e nunca será, da injustiça e da opressão. Jesus não só restituiu uma dignidade aos desfavorecidos do mundo; deu-lhes uma esperança!
Nos primeiros três séculos da Igreja, a celebração da Páscoa não era distribuída como agora em vários dias: Sexta-feira Santa, Sábado Santo e Domingo de Páscoa. Tudo estava concentrado num só dia. Na Vigília Pascal se comemorava tanto a morte quanto a ressurreição. Mais precisamente: não se comemorava nem a morte nem a ressurreição como fatos distintos e separados; se comemorava, pelo contrário, a passagem de Cristo de uma para a outra, da morte para a vida. A palavra “páscoa” (pessach) significa passagem: passagem do povo judeu da escravidão à liberdade, passagem de Cristo deste mundo para o Pai (cf. Jo 13,1) e passagem dos que creem n'Ele do pecado para a graça.
É a festa da reviravolta feita por Deus e realizada em Cristo; é o início e a promessa da única reviravolta totalmente justa e irreversível no destino da humanidade. Pobres, excluídos, pertencentes às diversas formas de escravidão que ainda se verificam na nossa sociedade: a Páscoa é a vossa festa!

A cruz também contém uma mensagem para aqueles que estão do outro lado: para os poderosos, os fortes, aqueles que se sentem tranquilos no seu papel de “vencedores”. E é uma mensagem, como sempre, de amor e de salvação, não de ódio ou de vingança.  Lembra-lhes que, no final, eles estão ligados ao mesmo destino que todos; que fracos e poderosos, indefesos e tiranos, todos estão sujeitos à mesma lei e aos mesmos limites humanos. A morte, como a espada de Dâmocles, paira sobre a cabeça de todos, pendurada por uma crina de cavalo. Adverte contra o pior mal para o homem, que é a ilusão da onipotência. Não é necessário recuar muito no tempo, basta repensar a história recente para perceber o quanto este perigo é frequente e leva pessoas e povos à catástrofe.
A Escritura tem palavras de sabedoria eterna dirigidas aos dominadores da cena deste mundo:
“Aprendei, vós, que governais o universo... os poderosos serão examinados sem piedade” (Sb 6,1.6);
“O homem que vive na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate” (Sl 48,21);
“Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se ele se perder ou arruinar a si mesmo?” (Lc 9,25).
A Igreja recebeu o mandato do seu fundador para estar ao lado dos pobres e dos fracos, para ser a voz dos que não têm voz e, graças a Deus, é isso que ela faz, especialmente no seu pastor supremo.
A segunda tarefa histórica que as religiões devem, em conjunto, assumir hoje, para além da de promover a paz, é a de não ficar em silêncio perante o espetáculo que está diante dos olhos de todos. Poucos privilegiados possuem bens que não poderiam consumir, ainda que vivessem por séculos, e massas intermináveis de pobres que não têm um pedaço de pão e um gole de água para dar a seus filhos. Nenhuma religião pode ficar indiferente, porque o Deus de todas as religiões não é indiferente a tudo isso.

Voltemos à profecia de Isaías, da qual começamos. Começa com a descrição da humilhação do Servo de Deus, mas termina com a descrição da sua exaltação final. É Deus quem fala:
“Depois dos profundos sofrimentos, ele verá a luz [...] Por isso lhe darei uma parte entre os grandes, e com os poderosos ele partilhará os despojos; é que entregou sua vida à morte e se deixou contar entre os rebeldes, quando na realidade carregava o pecado de muitos e intercedia em favor dos rebeldes”.
Dentro de dois dias, com o anúncio da Ressurreição de Cristo, a Liturgia dará também um nome e um rosto a este homem triunfante. Vigiemos e meditemos esperando.

[1] Howard Thurman. Jesus and the  Disinherited. Beacon Press, 1949, rist. 2012.
[2] Howard Thurman. Deep River and The Negro Spiritual Speaks of Life and Death. Richmond, Indiana, 1975.
[3] F. Dostoievski. Os Irmãos Karamazov. Livro V, cap. 4.


Fonte: Vatican News

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