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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Homilia: Ordenação Episcopal de Dom José Tolentino Mendonça

O ministério do olhar

Caros irmãos e amigos:
Reúne-nos hoje a ordenação episcopal de D. José Tolentino. Palavra bela, esta de “reunião”, pois, mais ou menos conhecidos entre nós, já ele nos conhece de algum modo a todos e por seu motivo nos encontramos aqui. O olhar reúne e um olhar amigo não exclui ninguém, nem nada de ninguém.
Do muito que acabamos de ouvir nos textos proclamados [1], deixai-me fixar num passo só: «Erguendo os olhos e vendo uma grande multidão que vinha ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: “Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?”» Ergue os olhos, vê a multidão e questiona o discípulo: De nada mais precisamos para estarmos lá e nos revermos agora, a nós e ao ordinando de bispo. Erguer os olhos é tão próprio de Jesus que identifica o seu modo de ser com o seu modo de ver. Não se trata tanto de altitude, como de profundidade. Não perde os olhos na distância, fixa-os em quem se aproxima e assim mesmo os eleva.
Jesus ergue os olhos e leva-nos na mesma direção. Aprecia tudo inteiramente, pois de tudo fala como o Pai lhe ensinou (cf. Jo 8,28); vê tudo em relação ao fim, pois apenas vale o que nos faz viver, a nós e aos outros (cf. Mt 11,26). E não descuida momento algum, porque nele se joga o tempo todo e num copo de água que se ofereça já vai a recompensa garantida. Também por isso, o seguimento de Cristo se chamou “iluminação”. Assim se diz a propósito do batismo e assim deve notar-se no olhar dos batizados. Agora aqui, numa ordenação episcopal, cabe lembrar que o étimo de “bispo” indica olhar cuidadoso e vígil.      
Quando Jesus ergueu os olhos naquele dia, não os alongou num céu indistinto. Fixou-os, isso sim, naqueles muitos que vinham ao seu encontro. E a pergunta que logo fez também não podia ser mais concreta: «Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?»
Nesse e noutros passos, os quatro Evangelhos são especialmente concordes no olhar de Cristo sobre as multidões, tão claro tinha ficado. É esse olhar que determina o que faz a seguir, em várias circunstâncias mas sempre no mesmo sentido de cuidado e resposta. Por exemplo, em Mateus: «Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor. Disse então aos seus discípulos: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto ao Senhor da messe para que envie trabalhadores para sua messe”» (Mt 9,36-38). Em Marcos: «Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas» (Mc 6,34). Ou em Lucas: «Jesus retirou-se para um lugar afastado […]. Mas as multidões, que tal souberam, seguiram-no. Jesus acolheu-as e pôs-se a falar-lhes do Reino de Deus, curando os que necessitavam» (Lc 9,10-11). E assim também em João, no passo que comentamos. 
O olhar de Jesus entrevê o Pai nos olhos de quem chega. Nem podia ser diferentemente, como diz outro trecho joânico: «… aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos dele [Cristo] este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão» (1Jo 4,20-21). É a religião de Deus na religião de todos, no sentido mais alto que a palavra tem, de “ligação” refeita e perfeita. Momento a momento e caso a caso, no mais comezinho e translúcido acontecer das coisas.
Ao olhar de Jesus se refere D. José Tolentino muitas vezes, na fecunda escrita que nos tem oferecido e continuará decerto a oferecer. Do Quarto Evangelho, precisamente, diz ser «o Evangelho da fé porque é também o Evangelho do olhar» (José Tolentino Mendonça, A mística do instante. O tempo e a promessa, Prior Velho, Paulinas, 2014, p. 186). Fazendo-nos ver Jesus como Filho de Deus, faz-nos ver a tudo na mesma luz também. A luz que brilhava nos seus olhos erguidos. Uma decisiva pedagogia do olhar, adianta o novo bispo: «Reparemos na pedagogia de Jesus: “Olhai as aves do céu”, “olhai os lírios”. É o estilo de Jesus que impressiona, porque revela o que Ele é. Jesus não diz: olhai para a pessoa mais rica, ponde os olhos na pessoa melhor sucedida, ou mesmo na mais sábia. Jesus vai mais longe. Manda-nos confrontar com aquela beleza gratuita, a beleza sem mais, que nasce do ser» (ibidem, p. 189).
Este olhar disponível e sem antolhos formula-se como bem-aventurança e promessa: «Felizes os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5,8). É desta rendição deslumbrada perante o essencial de tudo e de todos, perante o que são a partir de Deus, que brota de imediato o cuidado pelos outros, para que nenhum se perca, para que nada falte de necessário e urgente. Daqui que, erguendo os olhos para os que o procuravam, Jesus alargasse a pergunta sobre o que haviam de comer. E é por partilhar inteira e ativamente do cuidado do Pai por todos e cada um que sabe que o pão acabará por chegar e até sobrar.
Não o sabiam ainda os discípulos. Filipe fez as contas, habitualmente curtas: «Duzentos denários de pão não chegam para dar um bocadinho a cada um…». E também André: «Está aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?» Souberam-no de seguida, quando, pela certeza e a bênção de Jesus, daquele indispensável pouco sobrou um abundante muito.
Dois mil anos de Cristo no mundo confirmam – a quem realmente queira ver – a experiência mais certa da humanidade no seu todo. As grandes necessidades resolvem-se do pouco para o muito, quando a disponibilidade é total e concreta. – O que eram cinco pães, que nem sequer eram de trigo; o que eram dois peixes, pequenos como os daquele lago ainda são; e dum rapazito que pouco ou nada contava? Eram o quase nada que havia e ainda assim requerido, para que o absolutamente tudo da convicção, do olhar e das mãos de Jesus a todos saciasse e sobejasse ainda.
Onde estivermos pode sempre abrir-se o futuro, se inteiramente estivermos, como Cristo naquele dia. O bastante não se refere aos meios, mas ao coração que nos dirige o olhar.
Caríssimo D. José Tolentino: Estamos aqui hoje tantos, felizes e em ação de graças pela tua ordenação episcopal. Agradecemos ao Papa Francisco ter-te escolhido para zelar por um património único de memória criativa. Imensamente maior é o nosso mundo, com tudo o que espera ou desespera, com quanto o atinge de bom e menos bom… A tua inteligência e sensibilidade saberão partilhar o que agora é confiado ao teu bom zelo. E que assim mesmo crescerá também.
Naquele dia era de pão material que precisavam as multidões, como hoje ainda é em tantos casos, clamorosos casos. Mas o mesmo Jesus, que nos ensinou a corresponder a tal necessidade, também lembrou que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4,4). Dessa Palavra que em ti se tornou inteira vocação e magnífica expressão. Dessa Palavra que sabes distinguir em mil ressonâncias de literatura e reverberações de arte. - E assim a repartirás agora, para que chegue a muitos, para saciar a todos!       
Lisboa, Santa Maria de Belém, 28 de julho de 2018.


+ Manuel, Cardeal-Patriarca

[1] Foi celebrada a Missa do XVII Domingo do Tempo Comum - Ano B. Evangelho: Jo 6,1-15.

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