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sexta-feira, 8 de junho de 2018

Homilia do Patriarca de Lisboa: Corpus Christi

Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
É imenso o Corpo de Deus!

Quereria ser simples, sumamente simples nestas palavras de hoje. Quase tão simples como a narrativa da Ceia que acabamos de ouvir. Narrativa tão simples como fontal de toda a Liturgia autenticamente cristã: «Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos discípulos e disse: “Tomai: isto é o meu corpo.” Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho. E todos beberam dele. Disse Jesus: “Este é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens”».
Dois mil anos depois, não poderá ser outra coisa. Nem sobreposta ou distraída por algo que a desfoque. Como repetimos na lusofonia, sempre que nos reunimos em assembleia eucarística: «Ele está no meio de nós!». Assim mesmo prometeu, num trecho evangélico, já de cariz litúrgico: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt 18,20). Ou noutro passo, igualmente fundamental e também litúrgico, em que os discípulos o viram ressuscitado e no próprio dia que a sua ressurreição criou: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, […] veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco!”» (Jo 20,19). 
É certo que o tempo juntou outras palavras e gestos, mais ou menos coincidentes com a simplicidade evangélica. Felizmente, a determinação litúrgica do Concílio Vaticano II foi também neste ponto uma autêntica “reforma”, retomando a forma original e mais antiga da celebração eucarística, como a vemos no Novo Testamento e nos primeiros séculos cristãos. Nesses tempos em que nem se podiam erguer templos e bastava o templo vivo, formado pelo próprio Cristo e os cristãos. Templo vivo de que nos falava a Carta aos Hebreus. E em contraposição, aliás, com a velha liturgia do templo de Jerusalém, como há pouco ouvimos: «Cristo veio como sumo-sacerdote dos bens futuros. Atravessou o tabernáculo maior e mais perfeito, que não foi feito por mãos humanas, nem pertence a este mundo, e entrou de uma vez para sempre no Santuário. Não derramou sangue de cabritos e novilhos, mas o seu próprio sangue, e alcançou-nos uma redenção eterna».
Templo vivo que é o próprio Cristo ressuscitado e presente “no meio de nós” – e precisamente “no meio”, como também prometera. Ele mesmo, que na sua oferta ao Pai, por nós e conosco, realiza inteiramente tudo quanto os antigos sinais apenas prometiam. Rezamo-lo ainda há pouco tempo, num dos prefácios pascais: «Pela oblação do seu Corpo na cruz, [Cristo] levou à plenitude os sacrifícios antigos e, entregando-se a Vós [Pai santo] pela nossa salvação, tornou-se Ele mesmo o sacerdote, o altar e o cordeiro».
Caríssimos: É este o culto cristão e a sua essencial liturgia. Convertamo-nos à sua simplicidade, outro nome da verdade de Cristo. De Cristo que o Pai nos oferece, para por nós e por todos se retribuir ao Pai. Como concluímos a oração eucarística, oferecendo-nos com Ele, em ação de graças: «Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória…!»
E, assim mesmo, formamos com Cristo “um só corpo”. Conhecemos o trecho de São Paulo: «Pois, como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo. De facto, num só Espírito, fomos todos batizados para formar um só corpo…» (1Cor 12,12-13).
Por “corpo” não designamos algo exterior a nós. Devemos-lhe o cuidado e o respeito que nos merecemos, a nós e a cada um. É muito fraca antropologia pensar e dizer algo como: «Faço o que quiser do meu corpo…», porque o nosso corpo não é uma coisa de usar ou abusar. Somos nós mesmos, em relação positiva com os outros.
Referido a Cristo, chamamos-lhe hoje “Corpo de Deus”. E fazemo-lo justamente, pois acreditamos e confessamos que na corporeidade de Cristo é o próprio Deus que se exprime e comunica – Cristo é o Verbo de Deus, que habitou entre nós (cf. Jo 1,14).
O Papa Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum caritatis, sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, lembrou que a expressão “corpo de Cristo" tinha três acepções na antiguidade cristã, a saber, o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo. Para acrescentar: «Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja» (Sacramentum caritiatis, 15).
Esta alusão faz-nos compreender o que somos nós também, aqui e agora, como corpo eclesial de Cristo. Não apenas um grupo reunido numa cerimônia ritual, aliás bela e bem realizada. É uma imensa graça e uma grande responsabilidade. Somos sinal vivo da sua presença ressuscitada e ressuscitadora no mundo que é o nosso e que, também por nós, é o seu. Referindo-se aos discípulos disse Cristo: «Quem vos ouve é a mim que ouve» (Lc 10,16) – pois é por nós que quer falar, como seu corpo e expressão. Assimilemo-lo como Verbo de Deus, deixemo-lo incarnar e ecoar em nós. - Há tanta gente à espera desta palavra que Cristo quer dizer por nossa boca e testemunho! Palavra de paz e de esperança, palavra de consolação e de vida!
Concluindo as suas recentes catequeses sobre a Santa Missa, o Papa Francisco insistiu neste ponto, com o seu modo tão próprio e incisivo. Ligando o corpo eucarístico ao corpo eclesial de Cristo, disse assim: «Não devemos esquecer que celebramos a Eucaristia para aprender a tornar-nos homens e mulheres eucarísticos. Que significa isto? Significa deixar que Cristo aja nas nossas obras: que os seus pensamentos sejam os nossos, os seus sentimentos os nossos, as suas escolhas as nossas. E isto é santidade: agir como Cristo é santidade cristã» (L’Osservatore Romano, ed. port., 5 de abril de 2018, p. 12).           
Sem nunca esquecer que Cristo nos espera também na corporeidade dos outros, sobretudo a mais frágil e carente. Sem esquecer finalmente que é na correspondência, bem corporal e concreta, a tais carências que nos realizamos e salvamos. Como Lhe ouviremos, se matarmos fomes e sedes, se abrigarmos e revestirmos, se visitarmos doentes e presos, de tantas prisões do corpo ou do espírito: «Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).
Relembra-o o Papa Francisco, na mesma catequese: «Participar na Eucaristia compromete-nos em relação aos outros, de maneira especial aos pobres, educando-nos a passar da carne de Cristo para a carne dos irmãos, onde Ele espera ser por nós reconhecido, servido, honrado e amado» (ibid., citando o Catecismo da Igreja Católica, nº 1397).
Caríssimos: Termino como comecei, com a mesma intenção de ser simples, mencionando o Corpo de Cristo em que Deus se exprime e nos salva - e por nós aos outros. Corporeidade que, recebida de Maria sua Mãe, venceu a morte e está no meio de nós, como O vemos e celebramos na Igreja que somos. Como O havemos de reconhecer e servir no corpo de quem sofre e nos apela.
É tanto o que celebramos hoje, é imenso o Corpo de Deus!
Sé de Lisboa, 31 de maio de 2018

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


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