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sexta-feira, 13 de abril de 2018

Homilias do Patriarca de Lisboa: Semana Santa 2018

Homilia do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor
É ouvindo o brado que recebemos o Espírito

Caríssimos irmãos

Chegados à Semana Maior, entremos verdadeiramente na paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus, verdadeira substância da Páscoa. É por excelência tempo de graça, uma vez que a Liturgia nos oferece palavras e ritos essenciais, para que realmente nos transformemos com eles. Trata-se de “passar” com Cristo para o Pai, Trata-se dum caminho a percorrer. Caminho estreito, como nos foi advertido pelo Senhor, que queremos acompanhar sobremaneira nestes dias: «Como é estreita a porta e quão apertado é o caminho que conduz à vida, e como são poucos os que o encontram!» (Mt 7,14).
É certo que hoje participamos no júbilo daquele dia em Jerusalém, quando Jesus foi aclamado com ramos e hosanas. Como os jovens de então, também os de hoje O aclamarão especialmente. Mas ai de nós se nos ficamos por aí, nessa alegria imediata, que geralmente dura pouco.

Jesus dissera e fizera coisas admiráveis, e muitos esperavam que o antigo reino de David regressasse com ele, porventura mais glorioso ainda. Seria assim e seria fácil. Rapidamente se desenganaram, quando tudo refluiu para a verdade autêntica de Jesus, como a apresentaria dias depois diante de Pilatos e entre apupos da multidão. Nem sabemos quantos dos que lhe levantaram ramos se juntaram depois aos que lhe levantaram a cruz… Ilusões geram desilusões, pseudo-conversões dão grandes abandonos.
Caríssimos irmãos: A Páscoa de Jesus ou se leva a sério ou redunda em nada, no que a nós respeita. Jesus nunca recuou um passo no caminho que abriu. Nunca aligeirou a proposta de seguimento total. Aproximou-se de todos, em especial dos que ninguém queria, atacados pelas lepras do corpo ou da vida. Mas para os tirar daí, com conversões radicais ao Evangelho que propunha.

Assim conosco, sempre e também agora. Especialmente quando uma certa habituação ao calendário “cristão” lhe reduz o significado e o dilui em antigos ou requentados paganismos. Quando tal acontece, e se usa e abusa do nome de Cristo para lhe anular a cruz, nem acontece Páscoa nem se mudam as vidas. Usando um vulgarismo, ficamos “cada vez mais na mesma”, presos a equinócios primaveris, distrações variadas e especialidades da época. Mesmo quando sejam coisas relativamente boas, são absolutamente insuficientes, para nós e de nós para os outros.
Podemos chamar-lhes sonolência espiritual. Também atingiu os próprios discípulos, mesmo os que tinham estado mais perto de Jesus, do que fizera e dissera. Na hora definitiva, pediu-lhes companhia e puseram-se a dormir. Lembremos o trecho, pois é também de nós que se trata: Jesus chega ao Getsêmani e pede a Pedro, Tiago e João para ficaram ali e atentos. - O que sucedeu depois? «Foi ter com os discípulos e encontrou-os a dormir…»

O que sucedera entretanto? Precisamente o diálogo essencial de Jesus com o Pai, o âmago da oração cristã propriamente dita, como nos manda rezar no Pai Nosso: «Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu». Recordemos o trecho: «Adiantando-se um pouco, caiu por terra e orou para que, se fosse possível, se afastasse dele aquela hora: Jesus dizia: “Abá, Pai, tudo Te é possível: afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça o que Eu quero, mas o que Tu queres”». Caríssimos irmãos: Quanto rezarmos assim, em cada momento e circunstância, passamos com Jesus para o Pai e temos Páscoa. Quando o não fizermos, dormimos como os discípulos, hoje como ontem.
Reparemos que Jesus diz “Abá”, expressão da sua língua materna, referida a um Pai de ternura e intimidade. Assim mesmo o sabia e sentia, o Jesus do Getsêmani, como em toda a sua vida terrena. Disse noutro passo evangélico: «Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só…» (Jo 8,29). E ainda: «Eu e o Pai somos Um… Ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai» (Jo 10, 30.38). O segredo de Jesus, o que o leva por diante no seu propósito de salvar a humanidade que assume com a divindade que oferece, é a comunhão absoluta do cálice que o Pai lhe dá a beber, do propósito que traz para cumprir. 

Sim, vão tirar-lhe brutalmente a vida. Mas, também sim, já a queria dar. Como dissera: «É por isto que meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Tal é o encargo que recebi de meu Pai» (Jo 10,17-19).
No horto Jesus pôde estremecer por causa do sofrimento que aí vinha, mas nunca desistiu de prosseguir até ao fim. É esta a qualidade da vida divina: Inteira partilha de tudo o que se é, entre o Pai e o Filho no amor do Espírito. Foi esta a tradução que teve na cruz: O Pai entrega o Filho a cada um de nós, o Filho retribui-se por nós na entrega ao Pai. E o Espírito nos incluirá nesse lance de amor. 
Caríssimos irmãos: Não nos pareça estranho o que é afinal a verdadeira lei da vida, que apenas se garante na entrega de si. E sempre com Cristo, em qualquer Getsêmani que nos surja, digamos que sim e sigamos em frente. Acaba por ser mais uma ocasião de crescimento, com Deus para os outros e com todos para Deus.
É esta a Páscoa que Cristo nos oferece. Hoje mesmo, nas circunstâncias e vicissitudes da vida própria e alheia, não nos alheemos de nós nem dos outros. Bem pelo contrário, entreguemo-nos sempre, entreguemo-nos mais no sentido do bem. Não o conseguiremos sozinhos. A segurança está em Deus, que nos sustenta. Cristo dirige-nos as palavras que dirigiu a Simão (Pedro) e aos outros: «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora? Vigiai e orai, para não entrardes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca».
Como estamos agora? Podemos e devemos perguntar-nos ao iniciar a Semana Santa. “Santa” quer dizer de Deus, preenchida de oração e atenção espiritual. Que nada nos distraia do essencial, que é o seguimento de Cristo, da Ceia até ao Horto, do Horto até à Cruz. Aí lhe ouviremos por fim o grande brado com que expirou, ou seja, deu o Espírito. O brado que ressoa em todas as cruzes deste mundo e que teremos de acolher, no realismo dos Gólgotas de ontem e de hoje. É ouvindo o brado que recebemos o Espírito, para ressuscitar também.
Sé de Lisboa, 25 de março de 2018 


Homilia na Missa Crismal
O ano da graça da parte do Senhor

«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça da parte do Senhor».
Naquele sábado, como acabamos de ouvir, Jesus leu na sinagoga de Nazaré o anúncio do “ano da graça”, o jubileu. Mas não o leu apenas, declarou-o começado, realizando-o nele próprio e em seu redor: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Era uma marcação antiga, o jubileu, que de cinquenta em cinquenta anos deveria ser como um recomeço absoluto do Povo de Deus, fazendo jus a tal nome. Povo reconciliado com o seu Deus e entre todos e cada um dos seus membros, escravidões abolidas, terras restituídas, gente congraçada (cf. Lv 25,8ss). Um mundo como Deus não deixava de o querer, onde todos tivessem lugar primeiro, verdadeiramente irmãos.
Apesar de anunciado há tanto tempo, nunca acontecera realmente. Agora Jesus proclamava-o como certo e a acontecer de súbito. Nele próprio, com certeza, absolutamente de Deus e de Deus para todos. E o que fez a partir de então, até à cruz que lhe levantaram em Jerusalém, foi conforme ao anúncio. O jubileu concretizou-se por palavras de inteira justiça e gestos de verdadeira paz. Quando o quiseram impedir e mesmo encerrar com a grande pedra do sepulcro, ainda mais irradiou numa ressurreição que não deixa de alastrar – e de que nós próprios seremos hoje o sinal.
Por isso e só por isso estamos aqui, preparando a Páscoa e celebrando-a sempre, num tempo repleto, o ano da graça da parte do Senhor. Dizendo tradicionalmente, no “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2018”.
Caríssimos padres, caríssimos irmãos e irmãs: Lembrar as palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré da Galileia, lembrá-las em Missa Crismal, para que o Espírito e os óleos sacramentais santifiquem muitas vidas, tudo isto só pode incluir-nos ainda mais na realidade e missão de Jesus, por isso mesmo o “Cristo” (ungido).
Tudo partirá de Deus, assim recomecemos com Ele, como Jesus a partir do Pai. Não só um pouco melhor do que é costume, mas sim tudo melhor porque é de Cristo. Não negamos, antes reconhecemos, quanto de bom há neste mundo, que é constante criação divina. A humanidade não deixa de ser imagem de Deus, mesmo quando Lhe perca ou diminua a semelhança. Nem temos, nós cristãos, o exclusivo do bem, que felizmente se assinala em tantas pessoas de boa vontade. O próprio Jesus o disse a um discípulo mais cioso, que se queixava porque alguém fora do grupo praticava igualmente o bem. Advertiu-o o Mestre: «Não o impeçais, pois quem não é contra nós é por nós» (Lc 9,50). É por nós – e predisposto ao que Cristo traz como totalidade, primeira e última.
O ponto verdadeiramente cristão é retomar agora a perfeição do princípio, outro modo de dizer a intenção divina que restaura e garante a verdade das coisas. O pecado, original e originante, é, muito pelo contrário, o afastamento da Fonte, que nos resseca depois. Esquecemos o princípio e perdemos-lhe o fim, a finalidade e o sentido. Desvinculados de Deus, perdemo-nos a nós e esquecemos os outros.
O Espírito restaura-nos em Cristo, na perfeita filiação e na fraternidade autêntica. É este o ano da graça e o jubileu realizado. Onde a vida é respeitada e nunca cerceada, quando nova e quando idosa, quando saudável e quando frágil. Onde a justiça é prioritária, dando realmente a cada um o que lhe é devido, em termos de habitação e trabalho, de educação e saúde. Onde quem chega seja bem acolhido e integrado. 
Usando a linguagem do Papa Francisco, teremos de passar do pecado que nos isola à vinculação que nos refaz. Isto em relação a Deus, aos outros e à criação inteira: «O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada». Efetivamente, as coisas são boas, mas não têm em si mesmas nem a sua causa nem a sua finalidade. São ocasiões de fruição e comunhão, dando graças a Deus e repartindo com todos. Se as retemos em nós, como se fossem tudo, o resultado é triste, continua o Papa: «Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem» (Evangelii Gaudium, n. 2).
Os outros e a criação inteira são o campo total do nosso jubileu vinculativo. Para realizarmos aquela “ecologia integral” que a encíclica Laudato si’ tanto urgiu. Vinculados à vida, respeitando-a inteiramente da concepção à morte natural; vinculados aos outros na dignidade efetivamente reconhecida; vinculados à criação inteira, casa comum de todos. Acolhamos a advertência papal: «Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (Laudato si’, n. 117).    
Por isso o Papa Francisco insiste tanto na necessidade duma vinculação que previna e ultrapasse qualquer deriva egoísta. Vinculação que tenha como lugar original e pedagógico a família, para nascer, crescer e aprender a conviver.
Devemos fazer deste ponto uma prioridade irrecusável na pastoral da Igreja. O Papa está tão convencido desta prioridade de vincular as famílias para vincular a sociedade que ainda este ano insistiu, falando ao corpo diplomático acreditado no Vaticano, a 8 de janeiro: «… não se mantém de pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis, mas é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera, um caráter sacro e inviolável e uma função natural na ordem social».
Caríssimos sacerdotes e pastores do Povo de Deus no Patriarcado de Lisboa, com os nossos irmãos diáconos e todos os batizados: Os compromissos sacerdotais renovados, os óleos sacramentais abençoados, tudo se ordena ao ano da graça começado em Cristo e agora prosseguido, com o mesmo Espírito. Continua a ser a recriação do mundo, o jubileu ansiado. Aprendamos a conviver com Deus, com os outros, com a criação inteira, reforçando cada comunidade familiar por ação da Igreja, família espiritual de todos.
O que implica duas atitudes básicas, pastoralmente falando: Primeiro – e porque é a Palavra de Deus que nos suscita a fé, como lembramos e cumprimos com a Constituição Sinodal de Lisboa em plena recepção – apresentemos sempre e com toda a clareza o ensinamento de Cristo sobre o matrimónio (cf. Mt 19,1ss; Mc 10,1ss). Tal não diminui a atenção devida às situações de fragilidade neste campo, mas acompanha-as em “discernimento dinâmico”, rumo à efetivação dos ditames evangélicos. Ao mesmo tempo, é-nos pedido um reforçado empenho na preparação e acompanhamento do matrimónio e das famílias.
Numa fórmula feliz e programática, o Papa cita a seguinte proposição sinodal: «A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias» (Amoris Laetitia, n. 202). Para insistir, mais à frente: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (n. 211).
A celebração plena e coerente da Missa Crismal há de levar-nos, no Espírito de Cristo, ao cumprimento do jubileu que o mundo espera, do ano da graça da parte do Senhor, proclamado naquele sábado em Nazaré da Galileia. Trata-se da vinculação geral, outro nome da aliança plena, nossa com Deus, com tudo e com todos. Da família à comunidade cristã, da vida respeitada e promovida no seu arco existencial completo à inclusão de cada um, especialmente dos mais frágeis.
O prefácio da primeira Missa da Reconciliação proclama-o excelentemente. Dando graças a Deus por sempre nos chamar a uma vida mais feliz, continua assim: «Apesar de tantas vezes termos sido infiéis à vossa aliança, não Vos afastais de nós; antes, por Jesus Cristo, Vosso Filho, Nosso Senhor, estabelecestes entre Vós e a família humana um vínculo tão forte que nada o poderá destruir». - Da parte de Deus, o vínculo está seguro. No Espírito de Cristo, também o estará da nossa!
Sé de Lisboa, 29 de março de 2018


Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor
«Compreendeis o que vos fiz?»

Acabamos de escutar o que demoraremos a entender. Parecendo simples, ultrapassa completamente a nossa previsão – como ultrapassou a dos discípulos na Última Ceia.
Jesus levanta-se da mesa. Tira o manto e toma uma toalha, que põe à cintura… Já isto era surpreendente, sendo gesto de servo e servo humílimo. Mais ainda o que fez a seguir, deitando água numa bacia e começando a lavar os pés aos discípulos, enxugando-os coma toalha…
Foi normal a recusa de Pedro, ao chegar a sua vez: – Como podia aceitar tal inversão de papéis e que o seu Senhor se fizesse seu servo? Mais decisiva foi a resposta de Jesus: «Se não tos lavar, não terás parte comigo!» Ainda hoje será difícil de entender a atitude de Jesus, mesmo que as clivagens sociais não sejam tão profundas, legalmente falando. Ainda assim estranharíamos que o principal do grupo nos aparecesse de súbito como o último de todos e no último dos serviços.
No entanto, dois milénios cristãos já nos deviam ter convencido. Todos quantos viveram no Espírito de Cristo repetiram-lhe o gesto daquela Ceia que agora celebramos. Não só o repetiram, mas assim mesmo demonstraram ser autenticamente seus discípulos. Quando Saulo se converteu em Paulo, considerando como lixo tudo quanto fora antes, para se sujeitar a tantos trabalhos para servir a muitos com o anúncio evangélico. Quando Francisco de Assis deixou a vida abastada que levava, para servir a “Senhora Pobreza” e se tornar no menor dos irmãos. Quando, mais tarde, João de Deus albergou no seu hospital de Granada os pobres doentes que já albergara no seu coração. Quando, bem perto de nós, Teresa de Calcutá se dedicou aos últimos dos últimos, como eram os moribundos daquela cidade imensa…
Sim, já devíamos estar inteiramente convencidos. Coisa, aliás, só possível se, como eles, nos deixarmos convencer inteiramente por Cristo - pela sua verdade, que é outro nome da sua caridade.
Convenhamos que não é fácil. Desde que a humanidade se conhece, sempre tendeu a olhar Deus como se olha a si própria. Em geral, projeta a grandeza que não tem, mas gostaria de ter. Figura-se em grande, em mil e uma representações que no essencial andam em torno do mesmo. Das ruínas de antigas civilizações à moderna cinematografia, repetem-se figuras fantásticas de poder e domínio.
Esta persistência tolda-nos o horizonte e deixa-nos pouco disponíveis para a revelação divina propriamente dita. A história bíblica - de Abraão a Moisés, de Moisés aos antigos reis e destes ao tempo de Jesus - apresenta-nos uma tensão contínua entre a diferença absoluta de Deus e a insistência do povo em apropriá-Lo ao seu desejo e figura.
Não admira que alguns considerassem blasfema a afirmação de Jesus como “Filho de Deus”. – Como podia ser tão simples e tão próximo Aquele em que projetavam os seus próprios fumos de grandeza?
Não admira que Pedro, e os outros certamente, não admitissem que Aquele que já entreviam divino se apresentasse assim, não só como um deles, mas como servo de todos…
Foi preciso que Jesus insistisse com Pedro: «Se não te lavar os pés, não terás parte comigo». Ter parte é participar, partilhar a vida e o futuro de alguém a quem se quer. Assim queriam Pedro e os outros, saídos das suas terras para seguirem a Cristo. Mas foi-lhes preciso aprender o que era realmente a vida de Cristo, como modo tão imprevisto de ser Deus Conosco. Esse modo concretiza-se em humildade e serviço. Já uma inesquecível página bíblica dissera que, quando o profeta Elias reencontrou a Deus no monte Horeb, tal sucedeu em grande contraste com antigas teofanias. Nem na ventania impetuosa que fendia as montanhas e quebrava os rochedos, nem no tremor de terra, nem num grande fogo. Foi «no murmúrio de uma brisa suave» (1Rs 19,12).
É também assim que Deus está na nossa vida, humilde e quase impercetível no seu poder criador, com que agora mesmo nos faz estar aqui. Corremos o risco de não dar por isso, de não darmos por Ele, de não agradecer o seu amor – e podemos até dizer o seu serviço. Em Cristo é assim mesmo que Se apresenta: «Eu estou no meio de vós como aquele que serve» (Lc 22,27).
E com uma conclusão lógica e obrigatória: Se Deus é serviço, com Ele aprendemos o que toda a nossa vida há de ser, como serviço também. A única maneira de Lhe agradecer a vida que nos concede é reparti-la com os outros. Por isso continua Cristo: «Compreendeis o que vos fiz? […] Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também».
Viver eucaristicamente é agradecer a Deus a vida que nos concede e partilhá-la com os outros. Como Cristo nos ensinou a viver, do Pai para os outros e com todos para o Pai, no movimento do Espírito.
Do modo mais concreto e simples, no dia-a-dia da celebração e da caridade. Neste sentido, são muito claras as palavras do Papa Francisco, ainda há pouco (Audiência Geral de 7 de março): «O significado desta Oração [Eucarística] é que toda a assembleia dos fiéis se una com Cristo para magnificar as grandes obras de Deus e para oferecer o sacrifício. E para nos unir devemos compreender. Por isso, a Igreja quis celebrar a Missa na língua que as pessoas entendem, a fim de que cada um possa unir-se a este louvor e a esta grande oração juntamente com o sacerdote». Para sublinhar depois as três atitudes decorrentes: «primeira, aprender a “dar graças, sempre e em todos os lugares”, e não só em determinadas ocasiões, quando tudo corre bem; segunda, fazer da nossa vida um dom de amor, livre e gratuito; terceira, fazer comunhão concreta, na Igreja e com todos».
Concluamos serem verdadeiramente assim a Eucaristia de Cristo, o sacerdócio comum e o ministerial que a celebram, o mandato recebido e a cumprir.   
Como está anunciado, dedicaremos o próximo ano pastoral à recepção ativa do número 47 da Constituição Sinodal de Lisboa, para melhor compreendermos e vivermos a liturgia como lugar de encontro com Deus e como comunidade celebrante. Insistiremos numa «catequese mistagógica que introduza toda a comunidade na vivência dos tempos litúrgicos e na compreensão dos seus símbolos e ritos. […] As comunidades cristãs são chamadas a recuperar o sentido profundo do Dia do Senhor, pela participação na Eucaristia e pela escuta da Palavra e encontrando formas de viver a fraternidade e a alegria cristãs».
Começando agora o Tríduo Pascal, respondamos com mais certeza à premente pergunta do Senhor: «- Compreendeis o que vos fiz?» Para renovar em cada Eucaristia a disposição mais forte de agradecer e servir. Sigamo-Lo agora no rito, para O imitarmos continuamente na vida.
Sé de Lisboa, 29 de março de 2018


Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Ser da verdade, para ser de verdade

«Disse-Lhe Pilatos: “Então, Tu és rei?” Jesus respondeu-lhe: “É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”».
Um diálogo tão rápido, como este entre Pilatos e Jesus, caríssimos irmãos, é o segredo da nossa presença aqui, quase dois milénios depois. Da nossa presença aqui, quando podemos celebrar em boa paz e bom espaço a Paixão do Senhor.
Mas também – e com maior realismo ainda – a mesma celebração noutros espaços por esse mundo além, entre guerras e destruições, imensas tristezas e grandes abandonos. Tenhamos isto bem presente, e aos irmãos que aí mesmo ouvem hoje a Paixão do Senhor e nela reveem as suas próprias vidas. Assim também os nossos irmãos dos Lugares santificados pela presença terrena de Cristo, a cuja manutenção se destina a coleta deste dia. Todos estamos e queremos estar na verdade de Cristo, escutando a sua voz.
Expressão original e muito sua, que importa reter. É típica do Quarto Evangelho, como no trecho que ouvimos. Jesus veio ao mundo «a fim de dar testemunho da verdade». Modo de dizer que a verdade reside nele mesmo, como se manifesta e afirma.
A verdade do império que Pilatos figurava impunha-se pela força das armas. A verdade que Jesus testificava era a da sua própria pessoa e da adesão ao que dizia e fazia. Precisamente a que nos reúne agora aqui, sem qualquer coação e em plena consciência. Em plena consciência, ou seja, no que mais intimamente sentimos e sabemos, e por isso mesmo somos: «Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz». Para o evangelista João, a verdade subsiste em Jesus Cristo, no que diz e testemunha, tudo sendo expressão de Deus.
Aprofundemos um pouco mais estas palavras, pois traduzem a substância da nossa fé. Aprofundemo-las com a mente, mas sobretudo com o coração. Sintamo-las, para percebermos que Reino é o seu, como nos mantém vitoriosamente consigo, como estamos agora e como estaremos sempre, aconteça o que acontecer…
Noutro passo do mesmo Evangelho, Jesus compara-se a um pastor cuja voz reconhecemos e assim nos chama e reúne em seu redor: «As minhas ovelhas escutam a minha voz: Eu conheço-as e elas seguem-me. Dou-lhes a vida eterna, e nem elas hão de perecer jamais, nem ninguém as arrancará da minha mão. O que o meu Pai me deu vale mais que tudo e ninguém o pode arrancar da mão do Pai. Eu e o Pai somos Um» (Jo 10,27-30).
Trecho de suma importância para percebermos o que se passa conosco e há de passar com muitos mais, em termos de realeza de Cristo. Porque escutamos a sua voz. Escutamo-la, de facto, pois nos ressoa diferente de todas as outras, mais decisiva e profunda. Na recepção da Constituição Sinodal de Lisboa, como estamos a fazer neste ano, insistimos na Palavra de Deus como “lugar onde nasce a fé” (CSL, 38) – maneira de dizer com São Paulo que «a fé surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10,17).
Ouvida em casa, quando tivemos a graça de nascer numa família realmente cristã; ouvida na catequese e nas celebrações comunitárias; ouvida de algum amigo que verdadeiramente o foi; lida nas Escrituras que as primeiras gerações cristãs nos deixaram… A palavra de Cristo, e o próprio Cristo como Palavra de Deus, inteiramente dita e feita, tomou-nos conta do coração, esclareceu-nos a inteligência e determinou-nos a vontade. Somos seus, inteiramente seus, definitivamente seus. E ninguém nos arranca de ao pé da sua Cruz, onde divisamos todas as cruzes deste mundo, mas também o fulgor da sua vitória sobre a morte e todo o tipo de morte.
Radica também aqui a liberdade cristã. Venha o que vier, estamos seguros em Cristo, qual “mão” que o Pai nos estende. Escutamo-lo atentamente, como seus discípulos. Aprendemos sobretudo que a liberdade ganha-se com Deus, que é tudo, e não sozinhos, que seríamos nada.
A Palavra que Deus nos dirige em Cristo é tão perfeita comunhão que até da morte faz vida. Como a sua Cruz, que tanto nos eleva para o Pai como nos alarga a todos. Sendo isto mesmo a liberdade perfeita, sem cativeiros de alma que nos detenham a entrega. Noutro passo do Quarto Evangelho, diz-nos assim: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8,31-32).   
O mundo em que vivemos está tão cheio de palavras e contrapalavras, tão denso de figuras e contrafiguras, que dificilmente nos agarra já, para além dalgum alvoroço imediato. No entanto, nós estamos hoje aqui, como muitos por esse mundo além, celebrando a Paixão de Cristo, transmitida por palavras antigas que não perderam vigor e figurada numa simples Cruz, como a adoraremos de seguida. Como Ele próprio anunciara: «Quando tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que Eu sou» (Jo 8,28). E ainda: «Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» (Jo 12,32).
- Que verdade tão grande, esta que aqui nos certifica, de corpo e alma rendidos ao mistério da Cruz do Senhor. Nela nos sentimos salvos, porque nenhuma esperança e nenhum sofrimento ficaram de fora da Paixão de Cristo. Tudo inteiramente conosco, tudo inteiramente com Deus, tudo inteiramente salvo. Nele já e em nós em esperança, que é verdade garantida.
A concentração desta tarde na Cruz do Senhor não é obra nossa, mas unicamente de Deus Pai que, pelo Espírito, nos fixa em Jesus. Como também disse: «Ninguém pode vir a mim, se isso não lhe for concedido pelo Pai» (Jo 6,65). Reconheçamos agora e agradeçamos sempre o impulso divino que nos traz aqui, junto de Cristo e da sua Cruz, trono do Reino e centro do mundo.
Para que também na Cruz de Cristo divisemos a cruz do mundo, em tudo quanto nos faz sofrer – a nós e aos outros. Aí mesmo onde Cristo nos espera, para ser reconhecido e servido. Realmente, se dentro em pouco O vamos adorar aqui, é para depois continuarmos a adorá-lo e a servi-lo em quem sofra neste mundo de todos os dias, locais e circunstâncias.   
Por isso nos diz ainda São João, na sua primeira epístola: «Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade. Por isso conheceremos que somos da verdade e, na sua presença, sentir-se-á tranquilo o nosso coração» (1Jo 3,18-19).
A verdade é mais do que a simples adequação da mente ao objeto. É objetivar na vida e na convivência atenta e solidária a religião da Cruz que nos salvou. Para sermos da verdade e para de verdade o sermos sempre.
Sé de Lisboa, 30 de março de 2018


Homilia na Vigília Pascal
Mortos para o pecado e vivos para Deus

«Na morte que sofreu, Cristo morreu para o pecado de uma vez para sempre; mas a sua vida é uma vida para Deus. Assim vós também considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus».
Estas palavras que ouvimos a São Paulo, entre tantas outras que preenchem a Vigília que celebramos, pedem-nos agora uma particular atenção.
Num momento em que a graça batismal retoma a sua fonte e o seu ápice, importa considerar que significado tem em nós. Melhor dizendo, o significado que o batismo há de ganhar em cada um de nós, como sinal vivo de ressurreição para todos. Antes de mais, reparemos na própria vida de Cristo. Nada o separou de Deus Pai, nada o distraiu dos outros, especialmente dos que mais lhe urgiam atenção e serviço. Nisto mesmo demonstrou perfeita coincidência com o Pai, dispensador da vida de cada um e que nada mais quer senão que nos realizemos absolutamente todos. Como dissera a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).
Cristo recuperou em si mesmo a nossa humanidade em Deus, Fonte da Vida. Tão totalmente, que a própria morte se tornou vida. Vida pelo modo como morreu, fazendo da própria morte vida também. Geralmente a morte isola e destrói a comunhão com os outros. Muito pelo contrário, a morte de Cristo foi comunhão total: Morre a perdoar aos inimigos, morre a partilhar o seu Espírito e a sua Mãe. Morre nas mãos do Pai, que lhe sustentam a cruz. Morre também às mãos dos homens, para lhes pagar em bem o mal que lhe fizeram. E foi assim, transformado o abandono em comunhão, que venceu a morte, como O celebramos agora, irrompendo como luz no negrume de todas as noites.
Caríssimos irmãos, o caminho está aberto. O caminho que levou aquelas mulheres até ao sepulcro. Aí mesmo, onde a morte dera lugar à vida. Para ouvirem, como nós também acabámos de ouvir: «Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui».
Que será ressuscitar? Não o conseguimos abarcar totalmente agora, presos que estamos em cada lugar e duração, que tanto nos constituem um a um como nos podem isolar dos outros. E isto não se resolve apenas quantitativamente. Assim como a vida eterna não significa o tempo alongado, mas o tempo transcendido, ressuscitar não significará deixar de ser quem somos, mas sermos nós próprios doutro modo – do modo de Cristo, como absoluta comunhão com Deus, com todos e com tudo.
São Paulo disse, como ouvimos, que estaremos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus. Recebendo o seu Espírito, recebemos a sua caridade. Morrer para o pecado é morrer para a própria morte, que é o seu amargo fruto. Morte da alma que se fecha em si própria e morte do corpo que é a nossa comunicação assim desfeita. Muito pelo contrário, a caridade sempre persiste, como o verdadeiro amor que nos eterniza nos outros – e no Deus de todos.
Com Cristo e no Espírito de Cristo, tudo ressurge como vida compartilhada, outro modo de dizer Céu, plena verdade do que Deus é em si mesmo, do Pai e do Filho na unidade do Espírito. Sendo que o Filho é como que o modelo da criação inteira e da nossa condição filial, frutos que somos da benevolência divina.
É experiência certa e confirmada que todos os momentos de verdadeira caridade assinalam a vida eterna. Não nos faltam testemunhos fortes disto mesmo, como os que ouvimos a quem corresponde com generosidade às necessidades materiais e espirituais dos outros, a quem parte e a quem fica, unicamente determinado pelo bem a fazer.
A verdadeira prova da ressurreição de Cristo é a vida em ressurreição de quantos, movidos pelo seu Espírito, vão vencendo a morte pela prática do bem. Não têm pressa, senão para servir. Não têm medo, senão de ficar aquém. Não querem vida, senão para a doar e sempre mais. Assim mesmo a garantem além de si, assim mesmo a eternizam em Deus Amor.
Quem deu pela ressurreição de Cristo, naquela madrugada de Jerusalém? Pilatos já nem se lembraria de mais um dos que tão facilmente condenava ao suplício da cruz. Anás, Caifás, os outros que o condenaram também, estariam até contentes por terem vencido alguma hesitação do procurador romano. Tudo estaria resolvido e encerrado com aquela grande pedra do sepulcro… Dois milénios transcorridos, todos esses passaram, como muitos outros que condenaram inocentes para se guardarem apenas a si próprios, por segurança ou conveniência.
Entretanto, aquelas mulheres deram por isso. Também os discípulos acabaram por perceber. E assim começaram uma cadeia de vivências e testemunhos que constituem a substância da Igreja e da nossa condição batismal. Sim, a vida de Jesus venceu a morte. Sim, o seu Espírito reproduz em nós a mesma vitória. Sim, o que celebramos nesta noite tornou-se a alvorada do mundo.
E de qual mundo, podemos perguntar? Deste nosso mundo, e como cabe precisamente a cada um. Ouvimos a indicação do jovem de branco, sentado no sepulcro vazio: «Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele vai adiante de vós para a Galileia. Lá o vereis, como vos disse».
A Galileia era a terra deles, donde tinham partido. Aquela terra bem concreta, com nomes de cidades, gentes e ofícios. A terra deles, como a terra de cada um de nós, na vida de todos os dias. Onde também não faltam nomes, pessoas e tarefas, tudo aí mesmo, como está e como requer presença, atenção e cuidado. Aí mesmo nos espera o Ressuscitado. Aí mesmo O veremos e testemunharemos, precisamente agora. Aí mesmo, onde houver vida a proteger, da concepção à morte natural. Aí mesmo, onde houver pessoas a acompanhar, com prioridade para os mais pobres, mais frágeis ou mais sós. Aí mesmo, onde tantos nos esperam e o próprio Cristo nos aguarda.
Aí mesmo, em todo o tempo e circunstância que requerem testemunhas autênticas da ressurreição de Cristo. Como seremos nós e tanto mais quanto compartilharmos a sua caridade, o seu ser para os outros, maneira total de permanecermos na Vida que vence a morte, a Vida que não tem fim, porque «o amor jamais passará»! (1Cor 13,8).- Sim, caríssimos irmãos, também por nós, a ressurreição de Cristo alegrará o mundo!   
Sé de Lisboa, 31 de março - 1 de abril de 2018


Homilia do Domingo de Páscoa
Se Cristo nos espera, porque demoramos nós?

«Maria Madalena correu então e foi ter com Simão Pedro e com o discípulo predileto de Jesus e disse-lhes. “Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram.” Pedro partiu com o outro discípulo e foram ambos a sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo antecipou-se, correndo mais depressa que Pedro…»
Detenhamo-nos um pouco nesta passagem do Evangelho que ouvimos. Ou dizendo melhor, porventura, corramos também nós espiritualmente ao sepulcro, como o fizeram fisicamente os discípulos, alertados por Maria Madalena, que também correra a avisá-los.
É intencional a insistência do evangelista na pressa de qualquer deles. Como é salutar o convite a imitá-los. Para encontramos o túmulo vazio. Para sermos encontrados pelo Ressuscitado, como aconteceu com eles depois.
Desde aquela madrugada é isto mesmo que nos define como crentes, ou seja, a urgência em divisar a presença do Ressuscitado e sermos encontrados por Ele. São Paulo definia-se nesses termos, ou na mesma corrida: «… Assim posso conhecer a Cristo, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição dos mortos. Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3,10-13).
Urgência de alcançar a Cristo, que já nos alcançou a nós. Ansiou pela chegada daquela hora absoluta em que nos encontrou no mais profundo e dramático da condição humana, para nos salvar de vez. Acolhamos a exortação de Paulo, ainda há pouco ouvida: «Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra. Porque vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus».
É a afeição às coisas do alto, isso mesmo que só Cristo nos conseguiu e oferece, que explica e incita a nossa corrida espiritual de todos os dias, sempre e só ao seu encontro. E o túmulo vazio que os primeiros discípulos encontraram foi apenas o sinal da presença total com que hoje corresponde à nossa procura.
Cristão, podemos dizer, é quem anseia deparar com o Ressuscitado em cada momento da sua vida – para vir a dizer, também com São Paulo: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Para ressuscitar com o Ressuscitado. Esse mesmo que nos prometeu: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28,20).
Certamente que o Tríduo Pascal, que Deus nos concedeu celebrar mais uma vez, tanto nos encheu a alma como agora nos reforça o propósito. Graças são encargos e a graça pascal redunda em procura e missão, sempre mais urgentes. Procura do Ressuscitado nos sinais mais garantidos da sua presença; missão de os repercutir na vida do mundo, do pequeno mundo de cada um ao grande mundo de nós todos.
Lembremos brevemente os sinais garantidos da presença do Ressuscitado, como a eles devemos acorrer todos os dias, com particular referência ao Tempo Pascal que hoje começa. Falando da sua união conosco, Jesus usou esta comparação: «Eu sou a videira; vós os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto […] Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e assim vos acontecerá. Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto e vos comporteis como meus discípulos» (Jo 15,5-8).
Caríssimos: Este é o primeiro sinal que devemos ativar todos os dias: a Palavra de Cristo ouvida, meditada e assimilada. Quando tal acontece, tudo muda de figura, passando a ser visto a partir de Deus, o único que absolutamente conhece o coração do homem e o sentido das coisas. Palavra ressuscitadora, uma vez que ressoa no silêncio que fizermos, como o anúncio da Ressurreição de Cristo soou no túmulo vazio. Precisamente com esta condição silenciosa e acolhedora, todos os dias exercitada e de cada vez correspondida por Cristo Palavra de Deus.
Outro sinal – ou a decorrência do primeiro – é a Eucaristia para que nos convida. É também no Evangelho de João que encontramos esta alusão ao Ressuscitado, aparecendo aos discípulos que tinham voltado à sua faina de pescadores - mas igualmente a cada um de nós, na faina de todos os dias: «Disse-lhes Jesus: “Vinde almoçar.” E nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-lhe: “Quem és tu?”, porque bem sabiam que era o Senhor. Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe» (Jo 21,12-13).
A alusão é certamente eucarística, pelo gesto de “tomar o pão e dá-lo”. E traz outra referência importante, uma vez que o “peixe” era para os primeiros cristãos um modo de designar o próprio Cristo. Significando isto que num sacramento – na Eucaristia como em todos os outros - é da própria pessoa de Cristo que se trata, requerendo tanta correspondência e coerência da nossa parte, como da sua é a entrega.
Mais dois sinais da presença do Ressuscitado, a que devemos acorrer, encontramo-los no Evangelho de Mateus, sobremaneira eclesial. Um é mantermo-nos em oração, especialmente a comunitária: «Se dois de entre vós se unirem, na Terra, para pedir qualquer coisa, hão de obtê-la de meu Pai que está no Céu. Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no meio deles» (Mt 18,19-20).
Também, e por excelência, a caridade ativa, que nos leve ao encontro das necessidades dos outros, assim mesmo encontrando o Ressuscitado que em cada um nos espera. Mencionando as fomes que saciamos, as sedes que dessedentamos, os peregrinos que recolhemos, os nus que vestimos, os doentes e presos que visitamos, responde peremptoriamente: «Sempre que fizeste isto a um destes irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).            
- Assim sendo, caríssimos irmãos, que nos falta ou retarda, para vivermos plenamente em Páscoa, procurando e testemunhando a presença do Ressuscitado, como garantidamente se oferece? Para que também dos vazios tumulares deste mundo a sua presença irrompa, tão forte e luminosa como na madrugada daquele primeiro dia. - Se Cristo nos espera, porque demoramos nós?
Sé de Lisboa, 1 de abril de 2018

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Fonte: Patriarcado de Lisboa

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