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terça-feira, 1 de março de 2016

Raniero Cantalamessa: Acolham a Palavra semeada em vós

A segunda pregação de Quaresma do Frei Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia, no último dia 26 de fevereiro, teve como tema a Palavra de Deus, a partir da Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II.
Já publicamos a primeira pregação, centrada na Liturgia. Segue agora a segunda pregação na íntegra, traduzida mais uma vez pela Rádio Vaticano:

Pe. Raniero Cantalamessa, OFM Cap
Segunda Pregação da Quaresma - 26 de fevereiro de 2016

Acolham a Palavra semeada em vós
Reflexão sobre a Constituição Dogmática Dei Verbum

Continuamos a nossa reflexão sobre os principais documentos do Vaticano II. Das quatro “constituições” aprovadas, a que se refere à Palavra de Deus, a Dei verbum, é a única, junto com aquela sobre a Igreja, a Lumen gentium, a ter o status de “dogmática”. Isto se explica com o fato de que com este texto o Concílio pretendia reafirmar o dogma da inspiração divina da Escritura e esclarecer, ao mesmo tempo, a sua relação com a tradição. Fiel à tentativa de iluminar os aspectos mais estritamente espirituais e edificantes dos textos conciliares, limitar-me-ei, também aqui, a algumas reflexões voltadas à prática e à meditação pessoal.

1. Um Deus que fala
O Deus bíblico é um Deus que fala. “Fala o Senhor, Deus dos deuses... não está em silêncio”, diz o Salmo (Sl 50, 1-3). O próprio Deus repete inúmeras vezes na Bíblia: "Ouve, ó meu povo, quero falar" (Sl 50, 7). Nisso a Bíblia vê a diferença mais clara com os ídolos que "têm boca, mas não falam" (Sl 115, 5). Deus usou a palavra para comunicar-se com as criaturas humanas.
Mas qual significado devemos dar a expressões tão antropomórficas como: “Deus disse a Adão”, “assim fala o Senhor”, “disse o Senhor”, “oráculo do Senhor”, e outras coisas semelhantes? Trata-se evidentemente de um falar diferente do humano, um falar aos ouvidos do coração. Deus fala como escreve! “Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei em seu coração”, diz no profeta Jeremias (Jr 31, 33).
Deus não tem boca e respiração humana: a sua boca é o profeta, a sua respiração o Espírito Santo. "Tu serás a minha boca” diz Ele mesmo aos seus profetas, ou também “porei a minha palavra nos teus lábios”. É o significado da famosa frase: "Movidos pelo Espírito Santo falaram aqueles homens da parte de Deus" (2 Pd 1, 21). A expressão "locuções interiores", com a qual definimos o falar direto de Deus de certas almas místicas, aplica-se, de certo modo qualitativamente diferente e superior, também ao falar de Deus aos profetas na Bíblia. No entanto, é concebível que, em alguns casos, como no Batismo e da Transfiguração de Jesus, tem sido uma voz que soava milagrosamente mesmo fora.
De qualquer maneira, trata-se de um falar no verdadeiro sentido do termo; a criatura recebe uma mensagem que pode traduzir em palavras humanas. É tão vívido e real o falar de Deus que o profeta recorda com precisão o lugar e o momento em que uma determinada palavra "veio" sobre ele: “No ano em que morreu o rei Uzias" (Is 6, 1), "“No trigésimo ano, no quinto dia do quarto mês, quando me encontrava entre os exilados, junto ao rio Cobar” (Ez 1, 1), "no segundo ano do rei Dario, no sexto mês, no primeiro dia do mês" (Ageu 1, 1). Assim de concreta é a palavra de Deus da qual se diz que “cai” sobre Israel, como se fosse uma pedra: “O Senhor enviou uma palavra a Jacó, ela caiu em Israel” (Is 9, 7). Outras vezes a mesma concretude e materialidade é expressa com o símbolo não da pedra que golpeia, mas do pão que se come com prazer: “Quando se apresentavam palavras tuas, as devorava: tuas palavras eram para mim contentamento e alegria de meu coração” (Jer 15, 16; cf também Ez 3, 1-3).
Nenhuma voz humana atinge o homem com a profundidade com a qual atinge-o a palavra de Deus. Essa “penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração” (Hb 4, 12). Às vezes o falar de Deus é "um trovão poderoso que quebra os cedros do Líbano" (Sl 29, 5), outras vezes se assemelha ao "murmúrio de uma brisa suave" (1 Reis 19, 12). Conhece todos os tons da fala humana.
O discurso sobre a natureza do falar de Deus muda radicalmente no momento em que se lê na Escritura a frase: “A palavra se fez carne” (Jo 1, 14). Com a vinda de Cristo, Deus fala também com voz humana, audível com os ouvidos também do corpo. “O que era desde o princípio, o que nós ouvimos, o que nós vimos com os nossos olhos, o que nós contemplamos e o que as nossas mãos tocaram, ou seja, o Verbo da vida [...] nós o anunciamos também a vós” (1 Jo 1, 1).
O Verbo foi visto e ouvido! Entretanto, o que se ouve não é palavra de homem, mas palavra de Deus porque quem fala não é a natureza, mas a pessoa, e a pessoa de Cristo é a mesma pessoa divina do Filho de Deus. Nele Deus não nos fala mais por um intermediário, “por meio dos profetas”, mas pessoalmente, porque Cristo é “a irradiação da sua substância” (cf. Hb 1, 2). Ao discurso indireto, na terceira pessoa, substitui-se o discurso direto, em primeira pessoa. Não mais “Assim fala o Senhor!” ou “Oráculo do Senhor!”, mas “Eu vos digo!”.
O falar de Deus, tanto o mediado pelos profetas do Antigo Testamento, quanto o novo e direto de Cristo, depois de ter sido transmitido oralmente, acabou sendo colocado por escrito, e, assim, temos as divinas “Escrituras”.
Santo Agostinho define o sacramento "uma palavra que se vê” (verbum visibile[1]); não podemos definir a palavra “um sacramento que se ouve”. Em todo o sacramento se distingue um sinal visível e a realidade invisível que é a graça. A palavra que lemos na Bíblia, em si mesma, é um sinal material, como a água no Batismo e o pão na Eucaristia, uma palavra do vocabulário humano, não diferentes das outras. Mas, falando da fé e da iluminação do Espírito Santo, através desse sinal, entramos misteriosamente em contato com a verdade viva e vontade de Deus e ouvimos a própria voz de Cristo.
“O corpo de Cristo – escreve Bossuet – não está mais realmente presente no adorável sacramento do que quanto a verdade de Cristo está na pregação evangélica. No mistério da Eucaristia as espécies que vês são sinais, mas o que nelas se encerra é o próprio corpo de Cristo; na Escritura, as palavras que ouvis são sinais, mas o pensamento que vos dão é a própria verdade do Filho de Deus[2]"
A sacramentalidade da Palavra de Deus se revela no fato de que às vezes obra claramente além da compreensão da pessoa que pode ser limitada e imperfeita; obra quase por si mesma, ex opere operato, como se diz, dos sacramentos. Na Igreja houve e haverá livros mais edificantes do que alguns da Bíblia (basta pensar na Imitação de Cristo); mas, nenhum deles obra como obra o mais modesto dos livros inspirados.
Ouvi uma pessoa dar este testemunho em um programa de televisão do qual eu também participei. Era um alcoólatra no último estágio; não conseguia ficar mais de duas horas sem beber; a família estava à beira do desespero. Convidaram-no, junto com sua esposa, para participar de um encontro sobre a palavra de Deus. Lá alguém leu uma passagem da Escritura. Uma frase atravessou-lhe como uma chama de fogo, e deu-lhe a certeza de estar curado. Depois, toda vez que sentia a tentação de beber, corria para a Bíblia naquele ponto e só ao ler as palavras sentia a força voltar nele, até que conseguiu ficar totalmente curado.
Quando quis dizer qual era aquela famosa frase, a voz ficou entrecortada pela emoção. Era a palavra do Cântico dos Cânticos: “Teus amores são melhores do que o vinho” (Ct 1, 2). Os estudiosos teriam feito careta diante desta aplicação, mas aquele homem podia dizer: “Eu estava morto e agora voltei à vida”, como o cego de nascença dizia aos seus críticos: "Eu era cego, agora vejo" (Jo 9, 10 ss.).
Uma coisa semelhante aconteceu também com Santo Agostinho. No auge da sua luta pela castidade, ouviu uma voz que repetia: “Tolle, lege!”, toma e lê. Tendo consigo as cartas de São Paulo, abriu o livro decidido a tomar como vontade de Deus o primeiro texto que aparecesse. Era Rm 13,13ss: “Como de dia, andemos decentemente; não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes...”. “Não quis ler mais – escreve nas Confissões – nem precisava. Terminada a leitura desta frase, uma luz, quase de certeza, penetrou no meu coração e todas as trevas da dúvida se dissiparam[3]”.


2. A lectio divina
Após estas observações sobre a palavra de Deus em geral, quero concentrar-se na palavra de Deus como caminho de santificação pessoal. “É tão grande a força e a virtude da palavra de Deus – diz a Dei Verbum – que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual[4]".
A partir do cartuxo Guigo II[5], vários métodos e esquemas foram propostos para a lectio divina. Porém, eles têm a desvantagem de serem concebidos quase sempre em função da vida monástica e contemplativa, e, portanto, inadequados para o nosso tempo, em que a leitura pessoal da Palavra de Deus é recomendada a todos os crentes, religiosos e leigos.
Felizmente, a própria Escritura nos propõe um método de leitura da Bíblia acessível a todos. Na Carta de São Tiago (Tg 1, 18-25) lemos um famoso texto sobre a Palavra de Deus. Dele tiramos um esquema de lectio divina, que tem três etapas ou operações sucessivas: acolher a palavra, meditar a palavra, colocar em prática a palavra. Reflitamos sobre cada um deles.
a. Acolher a Palavra
O primeiro passo é a escuta da Palavra: "Acolham com docilidade, diz o apóstolo, a Palavra que foi semeada em vós”. Esta primeira etapa abraça todas as formas e os modos com que o cristão entra em contato com a palavra de Deus: escuta da Palavra na liturgia, escolas bíblicas, subsídios escritos e – insubstituível – a leitura pessoal da Bíblia.
"O sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» (Fil. 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras [...] Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja[6]".
Nesta fase devemos tomar cuidado com dois perigos. O primeiro é o de parar no primeiro estágio e de transformar a leitura pessoal da palavra de Deus em uma leitura impessoal. Este perigo é muito forte, especialmente nos lugares de formação acadêmica. Se alguém espera deixar-se interpelar pessoalmente pela Palavra – observar Kierkegaard – até que não resolva todos os problemas conectados com o texto, as variantes e as divergências de opinião dos estudiosos, nunca terminará qualquer coisa. A palavra de Deus foi dada para que a pratiques e não para que te exercites na exegese dos seus pontos obscuros[7].  Não são os pontos obscuros da Bíblia, dizia o mesmo filósofo, que me dão medo; são os seus pontos claros!
São Tiago compara a leitura da palavra de Deus com um olhar-se no espelho; mas quem se limita a estudar as fontes, as variantes, os gêneros literários da Bíblia, sem fazer outra coisa, é semelhante a alguém que passa todo o tempo a olhar o espelho – examinando a sua forma, o material, o estilo, a época – , sem nunca olhar-se no espelho. Para essa pessoa o espelho não executa a própria função. O estudo crítico da palavra de Deus é indispensável e nunca se é suficientemente grato àqueles que gastam as suas vidas para pavimentar o caminho para uma cada vez melhor compreensão do texto sagrado, mas isso não esgota por si só o sentido das Escrituras; é necessário, mas não suficiente.
O outro perigo é o fundamentalismo: o tomar tudo o que se lê na Bíblia literalmente, sem qualquer mediação hermenêutica. Só aparentemente os dois extremos, do hipercriticismo e do fundamentalismo, são opostos: eles têm em comum o fato de pararem na letra, descuidando o Espírito.
Com a parábola da semente e do semeador (Lc 8, 5-15), Jesus nos oferece uma ajuda para descobrir onde estamos, cada um de nós, em termos de acolhimento da Palavra de Deus. Ele distingue quatro tipos de terreno: o caminho, o terreno pedregoso, os espinhos e a terra boa. Explica, portanto, o que simbolizam os diferentes terrenos: o caminho são aqueles sobre os quais a palavra de Deus não consegue nem repousar; o terreno pedregoso, os superficiais e os inconstantes que ouvem talvez com alegria, mas não dão à palavra a possibilidade de criar raízes; o terreno cheio de espinhos, aqueles que se deixam sufocar pelas preocupações e prazeres da vida; a terra boa são os que ouvem e dão fruto com perseverança.
Lendo, nós podemos ser tentados a olhar com pressa para as três primeiras categorias, esperando chegar à quarta que, mesmo com todas as limitações, pensamos que seja o nosso caso. Na verdade – e aqui está a surpresa – a terra boa são aqueles que, sem esforço, reconhecem-se em cada uma das três categorias anteriores! Aqueles que humildemente reconhecem quantas vezes ouviram distraidamente, quantas vezes foram inconstantes nos propósitos suscitados neles pela escuta de uma palavra do Evangelho, quantas vezes se deixaram levar pelo ativismo e pelas preocupações materiais. Eis que eles involuntariamente estão se tornando a verdadeira terra boa. Que o Senhor nos conceda sermos, também nós, do seu número!
Sobre o dever de acolher a palavra de Deus e de não deixar nenhuma cair no vazio, ouçamos a exortação que dava aos cristãos do seu tempo um dos maiores estudiosos da Palavra de Deus, o escritor Orígenes:
"Vós que frequentemente tomais parte dos divinos mistérios, quando recebais o corpo do Senhor conservem-no com todo cuidado e toda veneração para que nem sequer uma migalha caia no chão, para que nada se perca do dom consagrado. Estais convencidos, com razão, de que é uma culpa deixar cair fragmentos por descuido. Se para conservar o seu corpo tendes tanto cuidado – e é correto que assim seja – , saibais que descuidar a palavra de Deus não é culpa menor do que descuidar o seu corpo[8]”.
b. Contemplar a Palavra
O segundo passo sugerido por São Tiago consiste no “fixar o olhar” na palavra, no estar por muito tempo diante do espelho, em suma, na meditação ou contemplação da Palavra. Os Padres usavam a este respeito as imagens do mastigar e do ruminar. “A leitura – escrevia Guigo II – oferece à boca um alimento substancial, a meditação o mastiga e o tritura[9]”. Quando se procura na memória as coisas ouvidas e docemente são repensadas no coração, torna-se semelhante ao ruminante”, diz Santo Agostinho[10].
A alma que se olha no espelho da palavra aprende a conhecer "como é," aprende a conhecer a si mesma, descobre suas diferenças em relação à imagem de Deus e a imagem de Cristo. "Eu não busco a minha glória", diz Jesus (Jo 8, 50): eis que o espelho está na sua frente e imediatamente você vê o quão distante está de Jesus se busca a sua glória; "Bem-aventurados os pobres em espírito": o espelho está de novo na sua frente e imediatamente lhe descobre ainda cheio de apegos e cheio de coisas supérfluas, cheio, especialmente, de si mesmo; “a caridade é paciente...” e você se dá conta do quão é impaciente, invejoso, interessado. Mais do que“escrutar a Escritura” (cf. Jo 5, 39), trata-se de deixar-se escrutar pela Escritura.
"Pois a Palavra de Deus – diz a Carta aos Hebreus – é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença” (Hb 4, 12-13).
No espelho da Palavra, felizmente, não vemos apenas a nós mesmos e a nossa deformidade; vemos, antes de mais nada, o rosto de Deus; melhor, vemos o coração de Deus. A Escritura, diz São Gregório Magno, é “uma carta de Deus onipotente à sua criatura; nela se aprende a conhecer o coração de Deus nas palavras de Deus[11]”. Também para Deus vale o ditado de Jesus: “A boca fala do que está cheio o coração” (Mt 12, 34); Deus nos falou, na Escritura, do que está cheio o coração, isto é, do amor. Todas as Escrituras foram escritas para esta finalidade: que o homem pudesse entender o quanto Deus o ama, e compreendesse isso para abrasar-se do amor à ele[12]. O ano jubilar da misericórdia é uma ocasião magnífica para reler toda a Escritura deste ângulo, como a história das misericórdias de Deus.
c. Praticar a Palavra
Chegamos, assim, à terceira fase do caminho proposto pelo apóstolo Tiago: “Sejam daqueles que praticam a palavra..., quem a pratica, encontrará a sua felicidade no pratica-la... se alguém só escuta e não coloca em prática a palavra, se assemelha a um homem que observa o próprio rosto em um espelho: depois de olhar, vai embora, e rapidamente esquece como era”.
Isso é também o que mais está no coração de Jesus: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática” (Lc 8, 21). Sem este “praticar a Palavra”, todo o resto é ilusão, construção na areia (Mt 7, 26). Nem sequer pode-se dizer que se compreendeu a Palavra porque, como escreve São Gregório Magno, a palavra de Deus se compreende realmente só quando começa a ser praticada[13].
Esta terceira etapa consiste, na prática, na obediência à Palavra. As palavras de Deus, sob a ação atual do Espírito, se tornam expressão da viva vontade de Deus para mim, em um dado momento. Se escutamos com atenção, nos daremos conta com surpresa de que não há dia sequer em que na liturgia, na recitação de um salmo, ou em outros momentos, não descobrimos uma palavra da qual devemos dizer: “Isso é para mim! Isso é o que devo fazer hoje!”.
 A obediência à palavra de Deus é a obediência que podemos fazer sempre. Obediência a ordens e autoridades visíveis, acontece só de vez em quando, três ou quatro vezes em toda a vida, caso sejam obediências sérias; mas de obediências à palavra de Deus é possível fazer uma a cada momento. É também a obediência que podemos fazer todos, súditos e superiores. Santo Inácio de Antioquia dava este maravilhoso conselho a um colega seu no episcopado: “Que nada se faça sem o teu consentimento, mas, tu, nada faças sem o consentimento de Deus[14]”. 
Obedecer à Palavra de Deus significa, na prática, seguir as boas inspirações. O nosso programa espiritual depende em grande parte da sensibilidade às boas inspirações e da prontidão com que respondemos a elas. Uma palavra de Deus te sugeriu um propósito, colocou no teu coração o desejo de uma boa confissão, de uma reconciliação, de um ato de caridade; te convida a parar um momento o trabalho e dirigir a Deus um ato de amor. Não coloque trava; não deixe passar. “Timeo Iesum transeuntem”, dizia o próprio Agostinho[15]; como dizendo: “Tenho medo da sua boa inspiração que passa e não volta mais”.
Terminamos com o pensamento de um antigo Padre do deserto[16]. A nossa mente, dizia, é como um moinho; o primeiro grão que é colocado na manhã é o que continua a moer durante todo o dia. Apressemo-nos, portanto, a colocar neste moinho, desde o primeiro momento da manhã, o bom grão da palavra de Deus, senão, vem o demônio e coloca a erva daninha que durante todo o dia fará a moedura. A palavra particular que colocamos hoje no moinho da nossa mente é o proposto como lema do ano jubilar: "Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso"”.


[1] Santo Agostino, Tratados sobre o Evangelho de João, 80, 3.
[2] J.B. Bossuet, Sur la parole de Dieu, in Œuvres oratoires de Bossuet, III, Desclée de Brouwer, Paris 1927, p. 627.
[3] Santo Agostinho, Confissões, VIII, 29.
[4] Dei Verbum, n. 21.
[5] Guigo II, Lettera sulla vita contemplativa (Scala claustralium), 3, in Un itinerario di contemplazione. Antologia di autori certosini, Edizioni Paoline, Milano 1986, p. 22
[6] Dei Verbum, n. 25.
[7] S. Kierkegaard, Per l’esame di se stessi. La Lettera di Giacomo, 1, 22, in Opere, a cura di C. Fabro, cit., pp. 909 ss.
[8] Orígenes, In Exod. hom. XIII, 3.
[9] Guigo II, Lettera sulla vita contemplativa (Scala claustralium), 3, in Un itinerario di contemplazione. Antologia di autori certosini, Edizioni Paoline, Milano 1986, p. 22.
[10] Santo Agostinho, Enarr. in Ps., 46, 1 (CCL 38, 529).
[11] S. Gregorio Magno, Registr. Epist., IV, 31 (PL 77, 706).
[12] Santo Agostinho, De catech. rud., I, 8.
[13] S. Gregorio Magno, Su Ezechiele, I, 10, 31 (CCL 142, p. 159).
[14] S. Ignazio d’Antiochia, Lettera a Policarpo 4, 1.
[15] S. Agostino, Discorsi, 88, 14, 13.
[16] Cf. Giovanni Cassiano, Conferenze, I, 18.

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